UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO CURSO DE MESTRADO EM LETRAS – LINGUÍSTICA RENATA DOS SANTOS LAMEIRA INSTRUMENTOS FORMATIVOS E REGULAÇÃO NO PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM DA ESCRITA BELÉM - PA 2012 RENATA DOS SANTOS LAMEIRA INSTRUMENTOS FORMATIVOS E REGULAÇÃO NO PROCESSO DE ENSINO/APRENDIZAGEM DA ESCRITA Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Letras, ao Programa de Pós-Graduação em Letras, área de concentração Linguística, da Universidade Federal do Pará. Orientadora: Profa. Dra. Myriam Crestian Chaves da Cunha BELÉM - PA 2012 A Vinícius e Julia, luzes da minha vida. AGRADECIMENTOS Ao meu Pai Celestial, por dar forças quando me senti exausta. Obrigada por tudo o que tenho e por tudo que conquistei. À professora Myriam pelas preciosas palavras de conselho, pelas orientações, pela motivação constante, pelo exemplo. Muito obrigada mesmo! Aos meus alunos do 7º ano A que possibilitaram a realização desse trabalho. Ao meu marido, pelo apoio, pela paciência, pela colaboração, por acreditar em meu potencial, enfim, por demonstrar o seu amor. Ao meu filho Vinícius, por proporcionar momentos de alegria e por esperar pacientemente pela mamãe que “estuda toda hora” e “tá sempre na frente do computador”. À Julia que acompanha a mamãe na escrita da dissertação desde o ventre; À minha mãe, que mesmo com grandes responsabilidades e tarefas, sempre encontra uma forma de ajudar-me. À minha irmã, pelo empréstimo do computador, e pelos olhares de orgulho que tanto me incentivam. Ao meu pai por sempre estar disposto a ajudar na realização dos meus sonhos. À D. Lina, minha sogra, pelo amor dedicado aos meus filhos que me traz a tranquilidade para estudar. ÀCAPES pela bolsa de auxílio que possibilitou uma maior dedicação ao mestrado. Aos meus professores da graduação que me fizeram acreditar na possibilidade de fazer pesquisa. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago. Pesquiso para constatar, constatando intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. Paulo Freire RESUMO O presente estudo versa sobre os instrumentos formativos e os processos de regulação na aprendizagem da produção escrita, em Português como língua materna. Inscreve-se na perspectiva da avaliação formativa de orientação francófona, que se focaliza nos processos de regulação e de autoavaliação, com a finalidade principal de favorecer a aprendizagem, de maneira que os próprios aprendentes possam detectar suas dificuldades e, a partir das atividades de análise propostas, desenvolver instrumentos para superá-las. Articula-se esta concepção da avaliação com os pressupostos de uma abordagem interacionista do ensino/aprendizagem de língua materna que visa, mediante atividades de linguagem significativas, promover a reflexão sobre o uso da língua e o desenvolvimento das competências discursivas. Neste contexto, relata-se um projeto de escrita de contos fantásticos, realizado em uma turma do 7º ano do ensino fundamental, no âmbito de uma pesquisa-ação, metodologia essa que permite a todos os participantes – professores e alunos – serem sujeitos mais efetivos na construção do conhecimento. No desenvolvimento do projeto de escrita adotou-se o procedimento Sequência Didática, tal como modelizado por Schneuwly e Dolz (2004), uma vez que tal procedimento se coaduna plenamente com os princípios da avaliação formativa. Ao longo da sequência foram sendo elaborados pelos participantes alguns instrumentos (listas, fichas...) com vistas à regulação dos contos produzidos e à progressiva apropriação das características do gênero em foco. Analisa-se aqui o processo de construção desses instrumentos formativos, sua utilização pelos aprendentes e os efeitos proporcionados na regulação da aprendizagem. Conclui-se que o uso de instrumentos formativos bem como a própria elaboração desses instrumentos contribuem para a aprendizagem da escrita, permitindo claramente a apropriação de critérios que haviam sido objeto de estudo, fazendo-se, no entanto, uma ressalva à necessidade de haver uma clara articulação dos instrumentos com o modelo didático elaborado no planejamento da sequência de atividades. Palavras-chave: Ensino/aprendizagem do Português; Regulação da aprendizagem; Instrumentos formativos; Conto fantástico. RÉSUMÉ L‟étude porte sur les instruments formatifs et les processus de régulation dans l‟apprentissage de la production écrite en Portugais langue maternelle. Elle s‟inscrit dans la perspective de l‟évaluation formative d‟obédience francophone qui se centre sur les processus de régulation et d‟autoévaluation, dans le but principal de favoriser l‟apprentissage, de manière à ce que les apprenants eux-mêmes puissent détecter leurs difficultés et, à partir des activités d‟analyse proposées, développer des instruments permettant de dépasser ces difficultés. Cette conception de l‟évaluation est articulée aux présupposés d‟une approche interactioniste de l‟enseignement/apprentissage de la langue maternelle qui vise, au moyen d‟activités langagières significatives, à promouvoir la réflexion sur l‟utilisation de la langue et le développement des compétences discursives. Dans ce contexte, on rapporte un projet d‟écriture de contes fantastiques, réalisé dans une classe de 7ème année de la scolarité brésilienne (Ensino Fundamental), dans le cadre d‟une recherche-action, méthodologie qui permet à tous les participants – professeur et apprenants – d‟être des sujets effectifs dans la construction du savoir. Pour mener à bien le projet d‟écriture on a adopté le dispositif de la séquence didactique, selon le modèle systématisé par Schneuwly et Dolz (2004), car ce dispositif s‟accorde pleinement aux principes de l‟évaluation formative. Tout au long de la séquence, quelques instruments (listes, fiches...) ont été élaborés par les participants en vue de la régulation des contes produits et de l‟appropriation progressive des caractéristiques du genre étudié. Dans cette étude, on analyse le processus de construction des instruments formatifs, leur utilisation par les aprenants et les effets produits dans la régulation de l‟apprentissage. On conclut que l‟utilisation des instruments formatifs comme leur élaboration elle-même ont contribué à l‟apprentissage de l‟écriture des contes, en permettant clairement l‟appropriation de critères qui avaient été objet d‟étude. On souligne toutefois l‟importance d‟une articulation claire des instruments avec le modèle didactique élaboré lors de la planification de la séquence d‟activités. Mots-Clés: Enseignement/apprentissage du Portugais; Régulation de l‟apprentissage; Instruments formatifs; Conte fantastique. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10 1 OBJETIVOS DO ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA .... 15 1.1 Dimensão interacionista e ensino de língua materna ............................................ 15 1.2 Noção de competência e ensino/aprendizagem de línguas .................................... 19 1.2.1 A noção de competência no âmbito da Linguística ....................................... 21 1.2.2 A noção de competência no ensino/aprendizagem de línguas ........................ 23 1.3 Gêneros textuais e ensino de línguas ....................................................................... 25 2 A AVALIAÇÃO NO ENSINO/APRENDIZAGEM .............................................. 28 2.1 Os procedimentos tradicionais de avaliação .......................................................... 28 2.2 A avaliação integrada à aprendizagem ................................................................... 32 2.3 Autorregulação e autoavaliação .............................................................................. 34 2.4 Instrumentos de avaliação e aprendizagem ........................................................... 38 3 TRABALHO COM PROJETOS E PRODUÇÃO TEXTUAL ............................ 41 3.1 A Pedagogia de projetos na Educação .................................................................... 41 3.2 Trabalho com projetos e ensino da língua materna .............................................. 44 3.3 Trabalho com projetos e sequências didáticas ....................................................... 46 3.4 O conto e o Fantástico .............................................................................................. 50 3.5 Modelo didático do conto fantástico ....................................................................... 52 4 METODOLOGIA ..................................................................................................... 55 4.1 A Pesquisa-ação ........................................................................................................ 55 9 4.2 A geração dos dados da pesquisa ............................................................................ 57 4.2.1 Local, participantes e período da pesquisa ..................................................... 57 4.2.2 A professora-pesquisadora................ ..................................................... 58 4.2.3 O projeto escolhido......................... ..................................................... 59 4.2.4 Procedimentos e instrumentos de coleta de dados........................................... 58 4.3 Descrição do corpus .................................................................................................. 62 4.4 Procedimentos de análise ......................................................................................... 63 5 ANÁLISE DOS DADOS .......................................................................................... 64 5.1 Os instrumentos no desenvolvimento da sequência didática................................. 64 5.1.1 Módulo I - Elementos característicos de um conto fantástico ........................ 64 5.1.2 Módulo II - Estrutura da narrativa .................................................................. 68 5.1.3 Módulo III - O papel do narrador ............................................................... ... 69 5.1.4 Módulo IV - O ambiente ................................................................................. 70 5.1.5 Produção final ................................................................................................. 72 5.2 O uso dos instrumentos na produção textual: estudo de um caso ....................... 74 5.2.1 A primeira produção........................................................................................ 74 5.2.2 Atividades de autovaliação e coavaliação ...................................................... 77 5.2.3 Produção final ................................................................................................. 85 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 87 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 92 APÊNDICES ...................................................................................................................... 96 ANEXOS ............................................................................................................................ 105 10 INTRODUÇÃO O ensino/aprendizagem de língua portuguesa tornou-se tema de meu interesse desde a graduação. Talvez seja porque vivenciei o ensino normativo-prescritivo e sei que ele não contribuiu de forma efetiva para o desenvolvimento de competências na leitura, na oralidade ou na escrita. Acredito, também, que esse interesse decorra do fato de considerar que a escola e, mais especificamente, as aulas de língua materna possuem uma importante função social, política e cultural. Durante a graduação, as discussões em torno do ensino/aprendizagem de língua eram muito frequentes e sempre muito coerentes. Tais discussões incentivavam a busca por uma melhor compreensão do processo “real” e do que seria “ideal” no ensino/aprendizagem de língua portuguesa. Assim, participei de projetos de pesquisa e de extensão que permitiram construir uma base teórica e desenvolvi um trabalho de conclusão de curso voltado para a prática do professor de língua materna. Como aluna de graduação e tendo as leituras de teóricos da área eu era muita segura para falar das problemáticas da escola e das aulas de língua materna, que na minha visão eram decorrentes, em sua maioria, da inabilidade e má formação do professor. Dessa forma, ao ingressar no mercado de trabalho estava muito consciente dos objetivos que as aulas de língua materna deveriam alcançar. Entretanto, ao me deparar com a realidade da sala de aula, compreendi que a minha experiência da graduação não seria suficiente para enfrentar os meus desafios de professora. Percebi que sabia falar sobre um ensino de língua materna eficaz, mas não sabia como fazê-lo. Tendo que enfrentar esse grande desafio da transposição, fui em busca de alternativas que pudessem contribuir para as aulas de língua, no que se refere ao desenvolvimento efetivo de competências discursivas nos meus alunos. No contexto desses desafios, quase diários, enfrentados por mim, tais como incentivar os alunos a serem ativos nas aulas; coordenar trabalhos em equipes em que ocorriam desentendimentos; usar livros didáticos; “prestar contas” à coordenação; estudar para preparar as aulas; preparar as aulas; formular provas e simulados; fazer pós-graduação, entre outros, é que surge esse trabalho de pesquisa. Ele é o resultado de inquietações, de uma reflexão em torno de minha própria prática docente. Assim, partindo do pressuposto de que o ensino de Língua Materna tem a responsabilidade de contribuir para assegurar aos alunos o acesso a competências relativas à 11 fala, escrita e leitura, fazendo com que desta forma os mesmos sejam capazes de produzir e interpretar os mais diferentes textos circulantes, de assumir a palavra, fazer uso dela e ser capaz de brincar com ela, busquei relacionar o ensino/aprendizagem da escrita com uma modalidade de avaliação que estivesse focada na aprendizagem. Nos PCN de língua portuguesa fica claro que, para alcançar os objetivos do ensino de Língua, as atividades na escola não devem considerar a escrita como mecânica e periférica, centrada, inicialmente, nas habilidades motoras de produzir sinais gráficos, na memorização das regras de ortografia, na construção de frases soltas, numa linguagem vazia, em que se estabelece uma escrita sem função, sem qualquer valor interacional, sem autoria, sem recepção, sendo apenas um exercício. Na verdade, o documento orienta que a unidade básica do ensino deve ser o texto. Nesse sentido, a noção de gênero acaba sendo tomada como objeto de ensino, pois ela é constitutiva do texto (BRASIL, 1998). A produção de sentidos em uma sociedade está relacionada ao repertório de discursos usados nas interações e organizados, nas diferentes esferas de utilização da língua, em gêneros do discurso, conforme teorizou Bakhtin (2000). A noção de gênero é considerada, então, essencial no ensino/aprendizagem de língua, uma vez que permite a abordagem de textos além do linguístico, mas levando em consideração os aspectos sociais e interacionais que envolvem sua produção/recepção, tendo a perspectiva de que a língua usada nos textos constitui uma forma de comportamento social (ANTUNES, 2009). O trabalho com gêneros supõe o desenvolvimento de diversas capacidades que devem ser enfocadas nas situações de ensino e constitui “uma extraordinária oportunidade de lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos no dia a dia” (MARCUSCHI, 2010, p.37). Partindo da ideia de que é possível e desejável ensinar gêneros textuais de maneira sistemática, Dolz et al (2004) modelizaram o procedimento Sequência Didática para o ensino/aprendizagem de gêneros 1 , que é um procedimento genuinamente formativo por implicar o desenvolvimento das capacidades avaliativas e autoavaliativas. Durante a realização de uma Sequência Didática, mais especificamente durante a realização dos módulos, há um conjunto de ações que tem por objetivo adequar os procedimentos e estratégias de ensino às necessidades de aprendizagem dos alunos, levando-os a regularem suas produções linguageiras. Essa regulação passa pela apropriação dos critérios de avaliação, 1 Qualquer conjunto de atividades didáticas encadeadas em função de determinado objetivo de aprendizagem constitui uma sequência didática. Ao usar a expressão Sequência Didática com maiúsculas, referimo-nos aqui à sistematização proposta por Dolz e Schneuwly (2004) para o trabalho específico com gêneros da oralidade e da escrita. 12 pela identificação dos indicadores que, no texto, apontam para o atendimento ou não a esses critérios. Na perspectiva francófona, a concepção formativa da avaliação da aprendizagem tem na mobilização de procedimentos de regulação (e autorregulação) sua principal característica (SANMARTÍ, 2009). A ideia de que a finalidade principal das atividades de avaliação desenvolvidas na sala de aula é o favorecimento do processo de regulação, permitindo aos próprios aprendentes detectar suas dificuldades e, a partir daí, desenvolver estratégias para superá-las, torna necessária uma melhor compreensão de como são desenvolvidos os instrumentos formativos, como os aprendentes os utilizam e que efeitos têm na apropriação efetiva de novas habilidades. No entanto, a literatura sobre avaliação raramente desenvolve este tema. Da mesma forma, no âmbito do ensino/aprendizagem da língua materna poucas são as reflexões dedicadas à descrição dos processos de construção dos instrumentos formativos. Sendo assim, este trabalho objetiva investigar de que forma os instrumentos formativos, desenvolvidos durante uma Sequência Didática, participam da regulação da aprendizagem. Objetivamos, de modo mais específico: 1. Analisar o processo de construção dos instrumentos formativos; 2. Identificar em que medida eles contribuem para a regulação efetiva das produções textuais; 3. Examinar de que forma esses instrumentos são utilizados pelos aprendentes. A questão da avaliação formativa da produção escrita e, mais especificamente, da regulação da aprendizagem será central ao longo deste trabalho por acreditarmos que os processos de avaliação e regulação possibilitam aos alunos serem ativos durante a aprendizagem, exercendo controle sobre seus processos cognitivos e metacognitivos, bem como favorecendo sua motivação, de modo que adquiriram, organizem e transformem as informações ao longo do tempo. Embora consideremos o desenvolvimento de competências tanto na oralidade quanto na escrita, neste estudo abordamos principalmente o registro escrito, pois trabalhamos os gêneros textuais a partir da produção de uma coletânea de contos fantásticos. A sequência didática desenvolvida em nossa pesquisa está inserida na perspectiva da Pedagogia de Projetos, pois consideramos que o projeto comunicativo pressuposto pela Sequência Didática pode estar aliado a uma mobilização mais abrangente, ou seja, pode estar inserido num projeto escolar, em que seja possibilitada aos alunos uma corresponsabilidade pelo trabalho e pelas escolhas. Além disso, a Pedagogia de Projetos é uma proposta de 13 intervenção pedagógica que pressupõe uma ressignificação dos espaços de aprendizagem de tal forma que eles se voltem para a formação de sujeitos ativos, reflexivos, atuantes e participantes (HERNANDEZ, 1998), o que nos parece perfeitamente condizente com a perspectiva formativa de trabalho com a linguagem. De fato, um projeto gera situações de aprendizagem ao mesmo tempo reais e diversificadas e possibilita que os aprendentes decidam, opinem, debatam, construam sua autonomia e seu compromisso social, formando-se assim como sujeitos culturais. No entanto, isso só ocorre à condição que se tenha clareza em relação às aprendizagens visadas. Do contrário, o projeto corre o risco de não passar de atividades lúdicas sem aquisições realmente significativas. Para o desenvolvimento da pesquisa utilizou-se a metodologia da pesquisa-ação, haja vista que uma das principais motivações que influenciaram a constituição dessa pesquisa foi a minha prática docente. A pesquisa-ação permitiu conjugar a reflexão de minha prática à ação em favor dessa prática, pois essa metodologia ocorre num processo contínuo entre planejamento de ações, ação, observação, estudo e a ação interventiva. A pesquisa ocorreu em uma turma de Língua Portuguesa na 7º ano do ensino fundamental, contexto no qual foi desenvolvida uma Sequência Didática – no período de maio a outubro de 2011 – que teve como objeto de estudo o conto fantástico. Nosso foco de análise foram os instrumentos de aprendizagem e avaliação construídos ao longo da Sequência Didática e a forma como eles participaram do processo de regulação e apropriação. Para isto nos apoiamos essencialmente nos seguintes autores: SANMARTÍ (2009); SUASSUNA (2007); CUNHA (2006); HADJI (1993) como referências em avaliação formativa de perspectiva francófona. MOTTA-ROTH (2000); BEZERRA (2010); BALTAR, (2003; 2004); GUIMARÃES (2010) e DOLZ et al (2004) no estudo dos gêneros e suas implicações para o ensino da língua materna, além de HERNÀNDEZ (1999); JOLIBERT (2007) e KLEIMAN (1999) e CAMPS et al. (2006) no ensino baseado em projetos. Nosso trabalho está organizado da seguinte forma: No capítulo 1, abordaremos os objetivos do ensino de língua materna com base em uma perspectiva interacionista de língua/linguagem, a noção de competência no ensino de línguas, bem como a importância dos gêneros textuais. O Capítulo 2 trataremos das implicações de uma avaliação tradicional, da concepção formativa de avaliação e de seus processos, tais como a autoavaliação, a regulação da aprendizagem e a construção de instrumentos de avaliação e aprendizagem. 14 No capítulo 3, faremos uma articulação teórica entre o capítulo 1 e 2, em que apresentaremos os princípios da pedagogia de projetos, os projetos no ensino de línguas e o modelo didático do gênero conto fantástico. No capítulo 4, será apresentada a metodologia utilizada em nossa investigação – a pesquisa-ação – os procedimentos de coleta de dados, a descrição do corpus e os procedimentos de análise. Finalmente, no capítulo 5, analisaremos os dados obtidos ao longo da pesquisa-ação, no que diz respeito aos instrumentos formativos, e serão expostos e avaliados os resultados do nosso estudo. 1. OBJETIVOS DO ENSINO/APRENDIZAGEM DE LÍNGUA MATERNA Nossa sociedade exige de todos os sujeitos o domínio da linguagem, em particular em sua modalidade escrita, para que ampliem sua participação social e possam exercer plenamente sua cidadania. A todo o momento são exigidos conhecimentos e habilidades para lidar com os mais diversos textos formais ou informais, na escrita, por exemplo, de cartas, e- mails, currículos, declarações, bilhetes, posts na internet para a interação com o outro por meio da escrita. A respeito da interação, Antunes (2003, p. 45) esclarece que “uma atividade é interativa quando é realizada conjuntamente, por duas ou mais pessoas cujas ações se interdependam na busca dos mesmos fins”. Nesse contexto, dentre os objetivos do ensino de língua materna está o de ampliar o domínio ativo das competências discursivas nas diversas situações comunicativas. Assim, nas aulas de língua materna deve-se valorizar o fato de que o sujeito, no processo de apropriação do conhecimento, o transforma, age sobre ele, principalmente, pela mediação com o outro. Neste capítulo pretendemos apresentar a importância da dimensão interacionista da linguagem no ensino/aprendizagem de língua materna, considerando o estudo dos gêneros textuais no desenvolvimento de competências discursivas. 1.1 Dimensão interacionista e ensino de língua materna Toda prática de ensino está permeada por uma determinada concepção de língua/linguagem, seja na definição dos objetivos de aprendizagem, seja na seleção dos objetos de estudo. Pois como afirma Geraldi (2006, p.42): Antes de qualquer consideração específica sobre a atividade de sala de aula, é preciso que se tenha presente que toda e qualquer metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria da compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados em sala de aula. Segundo o autor, há fundamentalmente três concepções de língua/linguagem que podem estar presentes no ensino/aprendizagem de língua materna: a linguagem como expressão do pensamento, a linguagem como instrumento de comunicação e a linguagem como forma de interação. 16 Em linhas gerais, a linguagem como expressão do pensamento seria a base dos estudos considerados tradicionais 2 Ela leva a afirmações de que o fato de não se expressar de forma adequada está estritamente ligado ao fato de não pensar adequadamente, uma vez que a língua é concebida como sistema de normas, acabado, fechado, abstrato e sem interferência social. Consequentemente, os estudos tradicionais consideram apenas a variedade dita padrão ou culta ignorando todas as outras formas de uso da língua. Dessa forma, é exigido ao falante que use a língua com clareza e precisão, de forma lógica, precisa, sem equívocos – tudo isso pautado nas ideias de certo e errado. Para Koch (2002), essa concepção compreende um sujeito psicológico, individual, dono de sua vontade e de seu agir, ou seja, senhor absoluto de suas ações e de seu dizer. Nesse sentido, o texto é visto como um produto – lógico – do pensamento do autor, cabendo, assim, ao leitor captar essa representação mental, juntamente com as intenções do produtor, exercendo, pois, um papel passivo. A leitura é compreendida como uma atividade de captação de ideias do autor, sem levar em consideração as experiências e os conhecimentos do leitor e a interação autor-texto- leitor; a escrita, por sua vez, é vista como uma atividade em que aquele que escreve expressa seus pensamentos, suas intenções sem levar em consideração o leitor ou a interação. Já a concepção de linguagem como instrumento de comunicação concebe a língua como um código, um conjunto de signos que são combinados por meio de regras e, assim, possibilita a transmissão de mensagens entre emissor e receptor. Entretanto, a comunicação entre emissor e receptor só é estabelecida quando ambos conhecem e dominam o código. Sendo assim, conforme Koch (2006, p. 10) essa concepção entende o sujeito como determinado, “assujeitado” pelo sistema, caracterizado por uma espécie de “não consciência” e o texto como um produto de codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte. A concepção de língua como instrumento de comunicação levou a um ensino centrado no código, que privilegiava a gramática normativa e se baseava em exercícios de seguir modelos e preencher lacunas. A respeito das implicações dessa concepção Travaglia (1997, p.22) expõe as seguintes considerações: Essa concepção levou ao estudo da língua enquanto código virtual, isolado de sua utilização - na fala (cf. Saussure) ou no desempenho (cf. Chomsky). Isso fez 2 Os estudos tradicionais neste trabalho são compreendidos como aqueles que privilegiavam o ensino normativo- prescritivo, o ensino das regras do bem falar e escrever; o estudo da gramática normativa e, portanto, não consideram os usos reais e os aspectos pragmáticos-discursivos do funcionamento linguageiro. 17 com que a Lingüística não considerasse os interlocutores e a situação de uso como determinantes das unidades e regras que constituem a língua, isto é, afastou o indivíduo falante do processo de produção, do que é social e histórico na língua. Essa é uma visão monológica e imanente da língua, que a estuda segundo uma perspectiva formalista – que limita esse estudo ao funcionamento interno da língua - e que separa o homem no seu contexto social. A terceira concepção de linguagem apresentada por Geraldi (2006) é a que entende a linguagem como interação. Nela compreende-se que “mais do que possibilitar uma transmissão de informações de um emissor a um receptor, a linguagem é vista como um lugar de interação humana” (GERALDI, 2006, p.41). Essa concepção está relacionada aos pressupostos pragmáticos – a língua como forma de ação – e sócio-interacionistas – a língua como um produto coletivo e histórico e como um fenômeno interativo e dinâmico (SANTANA, 2004). Nessa perspectiva o texto passa a ser considerado o “lugar da interação” (KOCH, 2002, p. 17). Ele não se define por ser uma mera justaposição de elementos linguísticos; ao contrário, define-se no próprio uso da linguagem. A esse respeito Koch (2002, p. 17) esclarece: [...] o texto passa a ser considerado o próprio lugar de interação [...]. Desta forma, há lugar, no texto, para toda uma gama de implícitos, dos mais variados tipos, somente identificáveis quando se tem, como pano de fundo, o contexto sociocognitivo dos participantes da interação. [...] – a compreensão deixa de ser entendida como simples “captação” de uma representação mental ou como a decodificação de mensagem resultante de uma codificação de um emissor. Ela é, isto sim, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na sua forma de organização, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédia) e sua reconstrução deste no interior do evento comunicativo. Em uma perspectiva interacionista de linguagem, a língua não é considerada um repertório de palavras, pronto e fechado, a ser apreendido por meio de exercícios de repetição, mas é compreendida em seu funcionamento discursivo. Essa concepção ampara uma metodologia de ensino da língua que vai além dos fenômenos gramaticais e inclui os aspectos semânticos, pragmáticos e discursivos nas dimensões a serem trabalhadas em sala de aula, na produção e compreensão dos textos. Nessa metodologia, ao aluno é dado um papel ativo no processo de aprendizagem, ele deixa de ser um mero reprodutor ou receptor. Ele é considerado um sujeito-aprendiz, “os sujeitos são vistos como atores/construtores sociais” (KOCH, 2002, p. 15). Assim sendo, “não se trata mais de aprender uma língua para dela se apropriar, mas trata-se de usá-la e, em usando-a, aprendê-la” (GERALDI, 2006, p. 53). 18 A abordagem de ensino/aprendizagem decorrente dessa concepção considera importante o aluno se confrontar com suas dificuldades de produção e recepção textual em contextos autênticos, pois, como afirma Geraldi (2006, p. 52), “a língua só tem existência no jogo que se joga na sociedade, na interlocução e no interior de seu funcionamento que se pode procurar estabelecer as regras de tal jogo”. Embasados nessa abordagem estão os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1998). O caminho teórico assumido pelos PCN é que a linguagem existe na escola porque existe fora dela. Não é propriamente um conteúdo escolar. Na verdade, o documento define a linguagem como: [...] uma forma de ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos distintos momentos em sua história (BRASIL, 1998, p.6). Os Parâmetros partem do pressuposto de que a língua se realiza no uso das práticas sociais, no espaço em que os homens, em diferentes momentos, lugares e contextos, se apropriam de conhecimentos e os usam para se fazerem presentes, para agirem e interagirem. Por isso, essas diretrizes centram-se no uso e na reflexão sobre esse uso, pois é assim que o homem utiliza a língua, tanto oral quanto escrita, dentro de uma concreta e determinada situação comunicativa, com condições e finalidades específicas, produzindo discursos, o que significa dizendo alguma coisa a alguém, de uma determinada forma, num determinado contexto histórico e em determinadas circunstâncias de interlocução. O documento entende que não se fala, nem se escreve utilizando apenas palavras e frases soltas; antes, deixa claro que o falante se expressa, comunica, estabelece relações e age através de textos, produtos de práticas sociais orais e escritas, já que uma palavra dita só é entendida dentro de um contexto de uma conversa, de um diálogo. Dessa forma, a finalidade do ensino de língua portuguesa, segundo o documento, deixa de ser mero treinamento de habilidades desconectadas do uso, para passar a ser o domínio da competência textual além dos limites escolares, na solução dos problemas da vida, como o acesso aos bens culturais e à participação plena no mundo letrado, permitindo que a escola cumpra um de seus papéis: a construção da cidadania. ANTUNES (2003), ao direcionar a questão da percepção da linguagem ao trabalho docente, também adota essa terceira concepção de linguagem, considerando que está inserida na tendência que compreende a língua como forma de atuação social, como um sistema-em- 19 função e, assim, ligado, portanto, às circunstâncias concretas e diversificadas de sua atualização. Segundo a autora (2003, p.41): A evidência de que as línguas só existem para promover a interação entre as pessoas nos leva a admitir que somente uma concepção interacionista da linguagem, eminentemente funcional e contextualizada, pode, de forma ampla e legítima, fundamentar um ensino da língua que seja, individual e socialmente, produtivo e relevante. Foi nesta perspectiva interacionista da linguagem queresolvemos pautar a pesquisa- ação e a análise empreendidas, em nosso estudo, tendo clareza em relação ao fato que, nessa perspectiva, o ensino de língua materna busca enfatizar os conhecimentos linguísticos, a apropriação de conhecimentos que possibilitem o desenvolvimento da competência discursiva e o uso da língua nas práticas sociais. De fato, como afirma Perrenoud (1999, p. 22), “A interação social leva o indivíduo a decidir, a agir, a se posicionar, a participar de um movimento que o ultrapassa, a antecipar, a conduzir estratégias, a preservar seus interesses”. Para que o professor cumpra tal tarefa é necessário: planejar situações de interação; organizar atividades que busquem recriar na sala de aula situações enunciativas de outros espaços que não o escolar; saber que a escola é um espaço de interação social onde as práticas sociais de linguagem acontecem e se circunstanciam, assumindo características bastante específicas. Afinal, a aprendizagem deve ser feita pelo aluno, portanto, é ele que deve ser posto em atividade, para que atue sobre a linguagem e seja capaz de usá-la nas diversas situações comunicativas. Por isso, o ensino de língua materna está centrado em três variáveis: o aluno, o objeto de ensino e a mediação do professor. O professor, então, deixa de ser um único detentor do conhecimento e passa a ser um interlocutor que tem por objetivo ajudar o aprendente, oportunizando situações significativas de aprendizagem que contribuam efetivamente para o desenvolvimento de competências comunicativas. É essa noção de competência que iremos abordar agora mais detalhadamente. 1.2. Noção de competência e ensino/aprendizagem de línguas Na Educação, o conceito de competência tem sido amplamente debatido nos documentos oficiais, nas pesquisas acadêmicas e nos órgãos nacionais e internacionais. Tais debates têm suscitado uma mudança de postura em relação às práticas pedagógicas atuais, ainda que no nível do discurso. Ao colocar em evidência a noção de competências, a escola abre discussão para práticas de ensino e aprendizagem em que é enfatizada a natureza dos objetos didáticos, pois 20 as competências, em sua complexidade, envolvem saberes, saber-fazer e saber-ser. As competências abrangem, dentre outras coisas, saber identificar, avaliar e valorizar suas possibilidades, seus direitos, seus limites e suas necessidades; saber formar e conduzir e desenvolver estratégias; saber analisar situações, relações; saber cooperar, participar de uma atividade coletiva e partilhar liderança (PERRENOUD, 2000). No âmbito das línguas estrangeiras, a noção de competências apareceu em meados dos anos 70, com a abordagem comunicativa, em referência direta aos trabalhos de Dell Hymes sobre a competência comunicativa. Esse autor reagia então à noção de competência chomskiana, a qual se limitava ao conhecimento da gramática interiorizado pelos falantes. No contexto educacional brasileiro, de acordo com Veloso (2010), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei n. 9394/96, sancionada em 20 de dezembro de 1996 – foi um marco político institucional desse processo de criação, pois dentre as mudanças suscitadas pelo texto da Lei estava o foco nas competências como parte de um novo paradigma curricular que hoje é considerado marco referencial para a organização pedagógica dos diferentes níveis de ensino. De acordo com a LDB, um dos principais objetivos da escola é desenvolver a cidadania plena e preparar o indivíduo para o mercado de trabalho. Para alcançar tal objetivo defende-se o desenvolver competências, noção esta que propicia o surgimento de um novo discurso sobre a formação humana. Tal discurso promete ser capaz de responder às novas demandas do mercado de trabalho e traz um conjunto de ideias sobre como deve ser a formação do homem contemporâneo. Ainda há nela a pretensão de responder às exigências da realidade ora apresentada e de estabelecer novas práticas formativas e, assim, contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e de homens plenamente desenvolvidos. De acordo com Araújo (2004) a competência se configura a partir da articulação de três dimensões: os saberes (de diversas ordens: saber-técnico, saber-de-perícia etc.), a experiência (envolvendo habilidades e saber-tácito) e o saber-ser (envolvendo qualidades pessoais, sócio-comunicativas etc.). Assim, definem-se competências a partir do trio “saberes”, “saber-fazer” e “saber-ser”. Para se referir a essas dimensões, os PCN adotam falam em conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais. Os saberes conceituais “referem-se à construção ativa das capacidades intelectuais para operar com símbolos, ideias, imagens e representações que permitem organizar a realidade” (Brasil, 1998, p. 51). Para o documento os conteúdos conceituais são aqueles que permitem organizar a realidade, desde que seja feita a partir da 21 aprendizagem de conteúdos referentes a fatos (nomes, imagens, representações) em que aprender conceitos permite atribuir significados aos conteúdos aprendidos e relacioná-los a outros. Os PCN denominam como conteúdo procedimental aquele que consiste em “um saber-fazer, que envolve tomar decisões e realizar uma série de ações, de forma ordenada e não aleatória, para atingir uma meta” (BRASIL, 1998, p. 51). Assim, os saberes procedimentais sempre estão presentes nos projetos de ensino ainda que muitas vezes de forma equivocada por não serem tratados como objetos de ensino, ou seja, que necessitam de uma intervenção direta do professor para que ocorra de fato sua apropriação. A partir disso o documento alerta: [...] é preciso analisar os conteúdos referentes a procedimentos não do ponto de vista de uma aprendizagem mecânica, mas a partir do propósito fundamental da educação, que é fazer com que os alunos construam instrumentos para analisar, por si mesmos, os resultados que obtêm e os processos que colocam em ação para atingir as metas a que se propõem (BRASIL, 1998, p. 53). No que tange aos conteúdos atitudinais o documento esclarece que os mesmos permeiam todo o conhecimento escolar, haja vista que a escola é um contexto socializador, que permite gerar atitudes relativas ao conhecimento, ao professor, aos colegas, às disciplinas, às tarefas e à sociedade. Sendo assim, os parâmetros ressaltam que o ato de ensinar e aprender atitudes requer um posicionamento claro e consciente sobre o que e como se ensina na escola. As competências mobilizam saberes de diversas ordens, assim, não há competências sem saberes. Como afirma Perrenoud (2000, p.19): uma competência permite afrontar, regular adequadamente uma família de tarefas e de situações, apelando para noções, conhecimentos, informações, procedimentos, métodos, técnicas ou ainda a outras competências mais específicas. Além dessa compreensão do termo e da noção de competência em um âmbito mais abrangente, ou seja, o contexto no qual surge, é importante compreendê-lo também no âmbito da educação linguageira, pois permitirá um melhor e entendimento da importância do mesmo na linguística e no ensino de línguas. 1.2.1 A noção de competência no âmbito da Linguística No âmbito linguístico, o termo competência surge nos estudos de Chomsky. De acordo com Baltar (2003), o objetivo de Chomsky era descobrir as propriedades universais 22 da língua buscando relacioná-las com a natureza da linguagem e com o patrimônio inato da humanidade enquanto espécie. Ao traçar esse objetivo, Chomsky precisou abstrair muitas características das comunidades linguísticas e da vida real de seus membros. Em 1965, o teórico surge com sua teoria linguística de combate ao behaviorismo, e o termo competência é entendido como conhecimento da língua; associado a ele, temos o conceito de desempenho (ou performance) como uso efetivo da língua pelo falante. Segundo Bortoni-Ricardo (2004, p.71) na teoria chomskyana: [...] a competência consiste no conhecimento que o falante tem de um conjunto de regras que lhe permite produzir e compreender um conjunto infinito de sentenças, reconhecendo aquelas que são bem formadas, de acordo com o sistema de regras da língua. A principal crítica à noção de competência de Chomsky foi emitida por Dell Hymes, em 1966, para quem o maior problema dessa noção residia no fato de que o conceito não abarcava as questões de variação da língua, seu aspecto interindividual – entre as pessoas -, ou intraindividual – no repertório de uma mesma pessoa. Para Hymes (apud BALTAR, 2003, p. 23): Os membros de uma comunidade linguística partilham, ao mesmo tempo, de uma competência de dois tipos: um saber linguístico e um saber sociolinguístico, ou ainda, um conhecimento conjugado das normas gramaticais e das normas de emprego. O principal objetivo de Hymes, de acordo com Baltar (2003), era de descrever a natureza das capacidades que os indivíduos desenvolvem, enquanto membros de uma comunidade linguística, de estudar a organização dos recursos de fala que os falantes utilizavam e determinar a relação deste domínio dos meios de fala com a história das comunidades, com o presente e o futuro da humanidade. Para designar o que um falante sabe fazer quando usa sua língua, Hymes propôs o conceito de competência comunicativa, que, segundo Bortoni-Ricardo (2004), é um conceito bastante amplo por incluir não somente as regras que presidem à formação das sentenças, mas também as normas sociais e culturais que definem a adequação da fala. Assim, a competência comunicativa é compreendida como algo que permite ao falante saber o que e como falar com quaisquer interlocutores em quaisquer circunstâncias. Em sua proposta Dell Hymes vai além da noção da gramaticalidade defendida por Chomsky incluindo a adequação no âmbito da competência e mostrando que, quando um falante faz uso da língua, ele não só aplica as regras para obter as sentenças bem formadas, mas também 23 faz uso das normas de adequação definidas em sua cultura. Essas normas permitem ao falante monitorar sua fala de acordo com as circunstâncias nas quais está inserido. As ideias de Hymes foram significativas não só para a linguística, mas também para o ensino de línguas. No que tange a esta área foi um marco para a definição dos objetivos gerais da aprendizagem de línguas, primeiramente estrangeira e, posteriormente materna. Em línguas estrangeiras, diversas descrições já tentaram dar conta dos componentes que integram essa competência múltipla. Uma das descrições atuais da competência comunicativa é a do Quadro Comum Europeu de Referência para as Línguas (CONSELHO DA EUROPA, 2000), que inclui, além das competências gerais, três componentes: linguístico, sociolinguístico e pragmático: 1. na competência linguística estão incluídos os conhecimentos lexicais, fonológicos e sintáticos, além de outras dimensões da língua enquanto sistema, independente dos aspectos sociolinguísticos e pragmáticos e suas realizações; 2. as competências sociolinguísticas referem-se às condições socioculturais do uso da língua. Nela está incluído o conhecimento das convenções sociais, seja pelas regras de boa educação, normas que regem as relações entre gerações, gêneros, classes sociais, seja pela codificação linguística de certos rituais fundamentais para o funcionamento de uma comunidade; 3. já as competências pragmáticas dizem respeito ao uso funcional dos recursos linguísticos; elas dizem respeito ao domínio do discurso. A compreensão da noção de competência comunicativa teve diversas implicações no ensino de línguas, como veremos a seguir. 1.2.2. A noção de competência no ensino/aprendizagem de línguas É a partir de 1972 que começam a aparecer, no campo da didática das línguas estrangeiras, com a chamada “abordagem comunicativa de ensino/aprendizagem de línguas”, muitos trabalhos em que os termos “comunicação” e “competência comunicativa” surgem constantemente, bem como materiais didáticos que tinham por objetivo principal contribuir para o desenvolvimento daquela competência. O uso do conceito de competência comunicativa significou uma mudança de orientação teórico-metodológica nessa área, na qual a ênfase passou a recair no ensino da língua em uso e não mais no ensino da língua 24 como sistema descontextualizado, cujo conhecimento desembocaria automaticamente nas capacidades de uso. Vale salientar que com a noção de competência comunicativa surge a ideia de competência estratégica como um importante elemento para fomentar a autonomia do aprendente, o que não era visto nas metodologias anteriores. Assim, temos uma mudança na concepção de aluno, que passa a ter um papel mais ativo ao utilizar estratégias comunicativas para aprender. Nesse processo de aprendizagem, “a interação com os colegas e com o professor joga um papel fundamental, pois a comunicação sempre se dá a partir da interação social” (PRETTO, 2010). Além dessas definições e classificações referentes à competência comunicativa, tornaram-se muito pertinentes, no campo da Educação, os estudos de Philippe Perrenoud (1999, 2000, 2002) a respeito do tema. Para o sociólogo da Educação, uma prática de ensino adequada, embasada no desenvolvimento de competências, deve permitir aos alunos mobilizar seus conhecimentos dentro e fora da escola, em situações diversas, complexas e imprevisíveis. Para o pesquisador, são as situações reais de comunicação, as atividades legítimas de linguagem que permitem aos usuários da língua desenvolver determinados esquemas de uso. A noção de competência que nos interessa mais diretamente neste trabalho é a que Baltar (2003, p. 90) chama de competência discursiva escrita, que é definida pelo pesquisador como a competência de “mobilizar recursos de vários níveis para, através da produção e da recepção de um texto empírico, interagir sócio-discursivamente”. Baltar lembra que a mobilização desses recursos implica, dentre outras coisas, conhecimento e escolha dos gêneros textuais presentes nos ambientes discursivos; o conhecimento das estruturas estáveis que compõem esses gêneros; a capacidade de mobilizar os mecanismos de textualização e de enunciação; a capacidade de mobilizar conteúdos temáticos tendo em vista o ambiente discursivo e as posições do sujeito de seus interlocutores. Além disso, implica a capacidade de transferir saberes oriundos de um trabalho de ensino/aprendizagem em determinado ambiente escolar para poder transitar em outros ambientes discursivos. A mobilização de recursos para interagir sóciodiscursivamente nos leva a dedicar especial atenção à noção de gêneros e a seus desdobramentos para o ensino de línguas. 25 1.3 Gêneros textuais e ensino de língua Tal como a noção de competência, os gêneros textuais estão no centro das discussões acadêmicas e das propostas para a sala de aula de língua materna. Tendo por pano de fundo as discussões sobre concepção interacional de linguagem, nos últimos trinta anos pesquisadores de diferentes áreas de conhecimento têm-se dedicado mais sistematicamente ao estudo dos gêneros. De acordo com Rojo (2005, p. 184), “no Brasil, a partir de 1995, especialmente no campo da linguística aplicada ao ensino de línguas grande atenção tem sido dada às teorias de gênero (de texto/ do discurso)”. Os gêneros textuais passam a ser considerados de especial importância, a partir do momento em que se considera que é impossível comunicar verbalmente a não ser por algum texto e que todo texto pertence a determinado gênero textual, ou seja, que a comunicação verbal só é possível mediante algum gênero textual. Tal posicionamento, de acordo com Marcuschi (2010), é defendido por Bakhtin (2000) e Bronckart (1999), pois ambos tratam a língua em seus aspectos discursivos enunciativos, e não em suas peculiaridades formais. Assim, avaliamos ser pertinente embasar nosso trabalho de pesquisa a partir do posicionamento de tais pesquisadores por considerarmos a língua como uma atividade social, histórica e cognitiva, por privilegiarmos a natureza funcional e interacional da língua. A definição de gêneros que adotamos é a de Marcuschi (2010, p.19), para quem são: [...] fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social. Fruto de trabalho coletivo, os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia a dia. São entidades sociodiscursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. Para efeito didático, alguns pesquisadores, como Ramires (2005), definem quatro principais abordagens (ou escolas) para a questão dos gêneros textuais, que são: a norte- americana; a australiana (ou de Sydney), a de Genebra e a de Bakhtin. Para a autora, essas escolas têm como um dos pontos comuns o fato de reconhecerem explicitamente a primazia do social na compreensão dos gêneros e no papel do contexto. A partir dessa noção que orienta as pesquisas sobre gêneros, há uma ruptura definitiva com as abordagens tradicionais sobre língua/linguagem, que eram alicerçadas nos paradigmas da gramática tradicional, com abordagens estruturalistas que não davam conta de responder às dúvidas, inquietações, problemáticas referentes à linguagem. Assim, essa noção 26 traz à tona a diversidade textual, tida como condição indispensável em qualquer sociedade, haja vista que as pessoas têm de atender a variadas necessidades de interação verbal. Nesse contexto, o estudo dos gêneros é visto como algo essencial para compreender o funcionamento da sociedade, no que tange à linguagem, pois inúmeros gêneros orais ou escritos surgem, modificam-se e desaparecem, para dar conta das demandas sociais em eventos de letramento diversos. Para Bhatia (apud MARCUSCHI, 2008), os gêneros permitem o tratamento da intrigante e difícil questão: Por que os membros de comunidades discursivas específicas usam a língua da maneira como fazem? No que se refere à escola, desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a noção de gênero tornou-se um dos eixos centrais no debate didático sobre o Português, devido ao fato de o documento fazer uma indicação explícita dos gêneros como objetos de ensino e também de destacar a importância de se considerar as características dos gêneros, na leitura e produção de textos. O documento ressalta a assertiva bakhtiniana de que “Todo o texto se organiza dentro de determinado gênero em função das intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, os quais geram usos sociais que os determinam” (BRASIL, 1998, p.21). A noção de gênero é considerada, então, essencial no ensino/aprendizagem de língua, uma vez que permite a abordagem de dimensões outras do que apenas linguística no ensino da língua, levando em consideração os aspectos sociais e interacionais, na perspectiva de que a língua usada nos textos constitui uma forma de comportamento social (ANTUNES, 2009). Vale ressaltar que o texto já fazia parte da realidade escolar, entretanto a abordagem era restrita aos aspectos estruturais ou formais do texto. A busca de uma metodologia de ensino para favorecer o desenvolvimento da competência comunicativa levou a considerar os textos orais e escritos como objeto de estudo a partir de seus aspectos comunicativos e interacionais. É com base na convicção de que o desenvolvimento de competências interacionais não pode prescindir da realidade dos gêneros que muitos autores (DOLZ et al., 2004; ROJO, 2005; MOTTA-ROTH, 2000, dentre outros) defendem que as atividades de leitura e escrita levem em conta essa dimensão. Dolz et al. (2004, p.75) expressam essa opinião ressaltando que “os gêneros são „megainstrumentos‟ que fornecem um suporte para a atividade de comunicação e uma referência para os alunos”. De acordo com MOTTA-ROTH (2000, p. 495): Essa releitura do conceito de gêneros sistematizada, sob o ponto de vista da realidade escolar, por Schneuwly e Dolz (1999), enfatiza a questão de sua 27 utilização enquanto um instrumento de comunicação em uma determinada situação, mas, ao mesmo tempo, um objeto de ensino/aprendizagem. Tais autores desenvolvem a hipótese de que quanto mais precisa a definição das dimensões ensináveis de um gênero, mais ela facilitará a apropriação deste como instrumento e possibilitará o desenvolvimento de capacidades de linguagem diversas que a ele estão associadas. Na verdade, a principal contribuição da noção de gêneros textuais para o ensino de linguagem é “chamar atenção para a importância de se vivenciar na escola atividades sociais, das quais a linguagem é parte essencial; atividades essas às quais, muitas vezes, o aluno não terá acesso a não ser pela escola” (MOTTA-ROTH, 2000). Isso é essencial à ampliação do domínio da língua, pois, como afirma Bronckart (1999, p.103), “a apropriação de gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção prática nas atividades comunicativas humanas”. Bezerra (2010, p. 44) compartilha dessa visão: o estudo dos gêneros pode ter consequência positiva nas aulas de português, justamente por levar em conta seus usos e funções numa situação comunicativa. Com isso, as aulas podem deixar de ter um caráter dogmático e/ou fossilizado, pois a língua a ser estudada se constituirá de formas diferentes e específicas em cada situação e o aluno poderá construir seu conhecimento na interação com seu objeto de estudo. A ideia de se favorecer o desenvolvimento de competências comunicativas mobilizando a noção de gênero para articular as práticas sociais e os objetos escolares já recebe boa aceitação, mas ainda deixa em aberto a operacionalização didático-metodológica em práticas de sala de aula concretas. Desenvolver competências complexas de produção textual, em um contexto no qual, há muitas décadas, se costuma trabalhar prioritariamente com conteúdos conceituais, exige, pois, que se resolvam dois importantes problemas de base. O primeiro tem a ver com a definição de objetos de ensino e de aprendizagem de natureza procedimental, uma vez que não se trata de lidar com o conceito de gênero ou com descrições linguísticas a respeito dos mesmos. O segundo relaciona-se à escolha de atividades de sala de aula condizentes com essa natureza, de modo que haja efetiva apropriação desses conteúdos pelos aprendentes. A proposta didático-pedagógica da Sequência Didática – que, no horizonte mais amplo da Pedagogia de Projetos, articula o eixo “reflexão/aprendizagem” com o eixo “uso/ prática de linguagem socialmente significativa” –, bem como a atenção dada aos processos reflexivos da Avaliação Formativa (como os de autorregulação e autoavaliação) são as respostas que analisaremos teoricamente nos próximos capítulos, antes de nos voltar para a análise da prática realizada na pesquisa-ação empreendida. 2. AVALIAÇÃO NO ENSINO/APRENDIZAGEM Em sua perspectiva pedagógica – uma das grandes funções da avaliação da aprendizagem, ao lado da função de regulação socioinstitucional do sistema educacional 3 –, a avaliação tem como uma de suas principais dimensões promover a construção do conhecimento: afinal aprender significa, dentre outras coisas, superar obstáculos e erros no percurso em direção aos objetivos da aprendizagem. Essa superação requer, em primeiro lugar, que obstáculos e erros sejam percebidos e analisados para que, em seguida, se impulsionem mudanças. Tal superação exige, pois, uma análise dos procedimentos de ensino (adequação das atividades, dos conteúdos, dos critérios de avaliação aos objetivos de aprendizagem) e dos processos de aprendizagem por parte do professor, mas também, e principalmente, uma análise desses processos e dos produtos que deles resultam pelo próprio aprendente. Nessa perspectiva, que é a da avaliação formativa, a avaliação inserida no processo de aprendizagem terá uma repercussão na compreensão desse processo, tornando-se uma condição necessária para melhorar seus resultados. Não é esta, todavia, a concepção de avaliação que tem predominado, tradicionalmente, em nosso sistema escolar. É o que descreveremos agora, antes de voltar nossa atenção à avaliação formativa, aos processos de autoavaliação e regulação nos quais ela se apoia e, finalmente, aos instrumentos formativos que ela mobiliza. 2.1 Os procedimentos tradicionais de avaliação A escola há muito tempo vem fazendo uso de um sistema de avaliação – aqui denominado de tradicional – que pouco favorece a aprendizagem e pouco contribui para a autonomia do aluno. O que se propõe com este sistema é perceber se houve assimilação do conteúdo ou se houve erro e, quando muito, se os objetivos de aprendizagem foram atingidos. Na verdade, se avalia apenas o que foi objeto de ensino, deixando geralmente de lado o que é objeto de aprendizagem. Em geral, o modelo de avaliação tradicional busca quantificar o que 3 Ver Fernandes, (2006); Perrenoud (1999); Suassuna (2007). 29 o aluno aprendeu a partir de um ensino centrado em conteúdos programáticos, cuja natureza é predominante conceitual. Assim, o aluno passa a ser classificado e dependendo dessa classificação é aprovado ou reprovado. Essa avaliação de caráter positivista não impediu o fracasso escolar no Brasil. Ao contrário, segundo Suassuna (2007), ela tem funcionado historicamente como mecanismo legitimador desse fracasso, selecionando alguns alunos eeliminando a maioria, naturalizando, dessa maneira, o processo de exclusão social. A respeito da relação da avaliação com o fracasso escolar Perrenoud (2000, p.7) afirma: O fracasso escolar só existe no âmbito de uma instituição que tem o poder de julgar, classificar e declarar um aluno em fracasso. É a escola que avalia seus alunos e conclui que alguns fracassam. O fracasso não é a simples tradução lógica de desigualdades reais. O fracasso é sempre relativo a uma cultura escolar definida e, por outro lado, não é um simples reflexo das desigualdades de conhecimento e competência, pois a avaliação da escola põe as hierarquias de excelência a serviço de suas decisões. O fracasso é, assim, um julgamento institucional. Influenciado pelo tecnicismo norte-americano dos anos 50, o modelo tradicional de avaliação escolar tem como característica a busca pelo rigor e pela objetividade na construção de instrumentos considerados fidedignos e válidos e baseia-se em uma concepção de aprendizagem que valoriza a imitação, a repetição e a automatização. Essa concepção de avaliação, na qual predominam os objetivos de verificação e validação das aprendizagens característicos da avaliação de tipo somativo, desconsidera a diversidade dos sujeitos e de seus ritmos de aprendizagem, seus conhecimentos e suas estruturas cognitivas. Em suma, ela deixa de atender a finalidades pedagógicas da avaliação, o que enfatiza uma ação voltada para o desenvolvimento de aprendizagens relacionadas à construção de estruturas cognitivas. Essa avaliação é considerada de caráter institucional e social porque os resultados das constatações e verificações feitas quando o aluno finaliza uma unidade ou uma etapa de aprendizagem são utilizados pela instituição escolar para validar e certificar as aprendizagens e regular seu próprio funcionamento, bem como pela sociedade em geral onde essas validações e certificações fundamentam diversas decisões (admissão em empregos, por exemplo). Como consequência dessa prática desenvolve-se uma conduta em que os alunos procuram responder àquilo que é preciso para serem aprovados, ou seja, são incentivados a trabalharem em função dos conteúdos que serão avaliados (e, como vimos, correspondem prioritariamente aos objetos de ensino), mesmo que isso signifique não terem desenvolvido as 30 habilidades e competências exigidas pelos objetivos de aprendizagem e necessárias para lidar com a realidade e com as situações cotidianas. Como constata Sanmartí (2009, p. 20) “a ideia que os alunos têm do que aprenderão não depende tanto do que o professor lhes diz, mas sim do que ele realmente considera no momento de avaliar, e em relação a isso adaptam sua forma de aprender”. Nesse contexto, não se favorece o desenvolvimento de uma aprendizagem significativa. Diante desta situação, Luckesi (1995) afirma que a avaliação na prática escolar tem se constituído como um mecanismo de conservação e reprodução de uma sociedade por meio do autoritarismo. No que diz respeito mais especificamente à avaliação da aprendizagem em língua materna, a situação não é diferente. A predominância do ensino normativo-prescritivo, com predomínio das atividades de manipulação da terminologia metalinguageira como conteúdos avaliados, acaba por substituir esses conhecimentos conceituais pelos objetivos de desenvolvimento de competências linguageiras. Outro problema advindo do paradigma de avaliação tradicional é o tratamento dado ao erro. A ênfase dada aos conhecimentos conceituais leva também a dar muita importância aos erros, vistos como ausência de domínio de tais conhecimentos, isto é, dos conteúdos ensinados. Em outras palavras, o erro não é considerado como parte constitutiva do saber (SUASSUNA, 2007). Nesse processo avaliativo excludente predominam, portanto, os aspectos quantitativos em detrimento dos qualitativos, provocando a exclusão dentro e fora da escola. Afinal, as consequências ultrapassam o espaço escola e seguem em direção ao espaço vida. O professor, nessa forma de avaliar, passa a ser um julgador. Ele define os capazes, os aptos, aqueles que devem avançar e os que devem ficar retidos, separando “o joio do trigo”. E assim acaba por considerar o aluno como o único responsável por seu desempenho, por não buscar sua autoavaliação. Isso resulta em um ato de avaliar não-dialético do processo de ensino/aprendizagem, em que não há espaço para (re)pensar a prática e retornar a ela, quando, na verdade, como afirma Antunes (2003, p. 155): No processo de ensino/aprendizagem escolar, o ensino e a avaliação se interdependem. Não teria sentido avaliar o que não foi objeto de ensino, como não teria sentido também avaliar sem que os resultados dessa avaliação se refletissem nas próximas atuações de ensino. Assim, um alimenta o outro – tudo, é claro, em função de se conseguir realizar o objetivo maior que é desenvolver competências no campo que elegemos. Tal interdependência entre ensino e avaliação parece não ser levada em consideração no cotidiano escolar. O problema advém principalmente do fato de educadores perceberem a 31 ação de educar e a ação de avaliar como dois momentos distintos e não relacionados e, por isso, exercem essas ações de forma distinta (HOFFMAN, 2005). Mas é possível que a atitude do professor decorra de seu desconhecimento sobre a importância de uma avaliação formativa no ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa. Uma formação docente que levasse o professor a compreender a importância pedagógica do processo avaliativo poderia sanar esse problema ou ao menos minimizá-lo, refletindo-se diretamente na prática escolar. Afinal como explicita Hoffman (2005, p.36) “um professor que não avalia constantemente a ação educativa, no sentido indagativo, investigativo do termo, instala sua docência em verdades absolutas, pré-moldadas e terminais”. E, poderíamos acrescentar, deixa de se interessar pelo processo de aprendizagem que está em curso. A crítica a essas características e a compreensão de suas consequências para a escola têm levado os estudiosos a desenvolverem, paulatinamente, a função pedagógica da avaliação. A consciência de que ela existia veio com a criação, por Scriven, em 1967, do conceito de avaliação formativa, aplicado, primeiramente à avaliação de programas e, posteriormente, à avaliação da aprendizagem. Inicialmente, essa modalidade de avaliação, influenciada pela perspectiva behaviorista da aprendizagem (SCRIVEN, 1967; BLOOM; HASTINGS; MADAUS, 1971), pouco tinha a ver com a concepção atual de avaliação formativa. A visão mais restritiva que predominou nas primeiras décadas, era muito centrada em objetivos comportamentais e nos resultados obtidos pelos alunos. Ela era pouco interativa e, por isso, normalmente realizada após um dado período de ensino e de aprendizagem. Nela, ao aluno atribuía-se um papel passivo cabendo ao professor ser o agente principal do processo pedagógico, enquanto responsável exclusivo pela realização do diagnóstico inicial, pela adaptação das atividades didáticas em função dos resultados, pela verificação dos resultados, pela detecção dos erros, pela regulação das atividades de ensino. Desta forma, embora a denominação “avaliação formativa” passasse a ser bastante divulgada no sistema educacional não houve uma mudança profunda nas práticas, o que gerou discursos e práticas incoerentes em relação a uma proposta genuinamente formativa. Deste modo, a avaliação continuou a não ser objetivo de aprendizagem pelos alunos, o que significa que, na verdade, não assumiu seu caráter propriamente pedagógico. 32 2.2 A avaliação integrada à aprendizagem Os críticos da avaliação tradicional foram desenvolvendo a concepção do avaliar como um processo que integra plenamente a ação pedagógica e em que se relacionam o „mapear‟ e o „diagnosticar‟ em que é necessário saber quais as dificuldades, quais os obstáculos, quais os avanços e que aspectos precisam ser aperfeiçoados. Esta modalidade de avaliação é geralmente descrita como: contínua; processual; global e qualitativa. Contínua porque não intervém ao término do processo de ensino/aprendizagem ou de uma de suas etapas, mas integra plenamente esse processo. Processual porque está mais interessada pelos processos envolvidos na aprendizagem do que pelos resultados obtidos. Global por não tomar por objeto apenas as capacidades cognitivas do aprendente, mas considerar a totalidade de seus comportamentos e, finalmente, Qualitativa porque não se limita a computar desempenhos observáveis e objetivamente mensuráveis (CUNHA, 2006, p.62). Para Suassuna (2007, p.41), trata-se de uma avaliação comprometida com uma educação democrática que consiste em fazer apreciações críticas; busca qualificar o ensino e a aprendizagem; tem a função diagnóstica e exige a participação ampla das instituições e dos sujeitos envolvidos; enfatiza aspectos qualitativos; considera resultados e também os processos de produção desses resultados; favorece uma leitura dos diversos aspectos e dimensão dos processos e fenômenos educativos. Nessa perspectiva, a avaliação assume uma função importante, que é de indicar o que precisa ser feito, revisto, estudado, reelaborado, para que, dessa forma, o aprendente possa superar suas dificuldades. Essa indicação depende do professor e das atividades pedagógicas propostas, mas também precisa se tornar objetivo de aprendizagem, enquanto competência a ser desenvolvida pelos aprendentes. Essa compreensão de que as estratégias desenvolvidas pelo professor precisam incentivar o aluno a analisar e avaliar seu próprio desempenho, ou seja, incentivar a autoavaliação, foi desenvolvida no final dos anos 70, em particular nos trabalhos de pesquisadores francófonos, como Nunziati (1990). A avaliação, nessaperspectiva, objetiva envolver o aluno na aprendizagem de forma consciente, fundamentando-se na compreensão da aprendizagem como um processo construtivo, no qual o aprendente é um sujeito ativo, que o professor, como um mediador do processo, precisa ajudar a desenvolver suas próprias capacidades de regulação. Como resume Petitjean (1984) essa modalidade de avaliação tem um triplo interesse: o de facilitar os processos de aquisição; o de permitir que os alunos se familiarizem, progressivamente, com a autoavaliação; o de conduzir a uma coleta de informações que 33 permita aos alunos modificar suas práticas, fazendo da avaliação um objeto de observação e de análise do funcionamento do ensino. Estamos, assim, perante uma avaliação bem mais complexa e, num certo sentido, mais sofisticada ou mais rica do ponto de vista teórico. Trata-se de uma avaliação interativa, centrada nos processos cognitivos dos alunos e associada aos processos de feedback, de regulação, de autoavaliação e de autorregulação das aprendizagens (FERNANDES, 2006). De acordo com Allal (apud CUNHA, 2006, p. 30) a avaliação formativa objetiva: “[...] assegurar uma regulação dos processos de formação, isto é, prover informações detalhadas sobre os processos e/ou os resultados da aprendizagem do aluno, a fim de possibilitar uma adaptação das atividades de ensino/de aprendizagem”. Na realidade, para os defensores de uma avaliação que desenvolva efetivamente sua função pedagógica, a avaliação deve fornecer informações tanto para o professor quanto para o aprendente e ajudar ambos a regular suas práticas, o que a avaliação formativa tradicional deixava de fazer. Ao professor cabe observar, registrar, analisar, interpretar os resultados obtidos durante o percurso de aprendizagem, de modo a desenvolver estratégias de intervenção mais eficientes. A avaliação precisa ser, para ele, uma fonte de reinvenção da prática pedagógica, que o ajude a adequar as suas propostas pedagógicas às necessidades dos alunos. A esse respeito Sanmartí (2009, p. 20) alerta: Se a opção é promover o avanço de todos os alunos, não resta dúvida de que há de se enfrentar um duplo desafio que comporta selecionar muito bem os conteúdos que devem ser ensinados de forma que sejam muito significativos e, não menos importante, aplicar uma avaliação que seja útil para o professor em sua atuação docente, gratificante para os alunos em sua aprendizagem e orientadora para ambos em suas atuações. A intervenção depende do tipo de contrato didático estabelecido entre o professor e seus alunos. Neste contrato devem constar principalmente critérios que nortearão o desenvolvimento das atividades em sala de aula. Para Allal (apud PORTAL, 2008, p.79) a intervenção tem por objetivo desenvolver a reflexão crítica do aluno por meio de perguntas, sugestões, contraexemplos. Ela deve estimulá-lo a buscar soluções para as dificuldades encontradas durante a aprendizagem. Perrenoud (1999) salienta que para uma avaliação que se quer formativa, não bastam quantidades, testes, gráficos, percentuais, cálculos de custo. A avaliação deve, necessariamente, gerar juízos de valor e anunciar possibilidades de transformação. Mais importante do que dados numéricos é colocar a questão sobre a escola, lançar sobre ela novos olhares. Por isso, não se pode separar a reflexão sobre a avaliação de um questionamento mais 34 global acerca das finalidades da escola, das disciplinas, dos contratos didáticos e dos procedimentos de ensino e aprendizagem. As mudanças nos processos de avaliação devem ser parte de um processo mais amplo de inovação que inclua o currículo e a didática. É o que também afirma Dias Sobrinho (2002) quando considera que o que interessa, de fato, é a discussão a respeito dos conteúdos ensinados: o importante é discutir se eles constituem um corpo significativo de conhecimentos, como eles podem contribuir para a formação dos alunos e qual o sentido dessa formação. No caso do ensino/aprendizagem de línguas, a discussão da natureza dos conteúdos a serem avaliados (conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais) é particularmente importante, na medida em que os objetivos de aprendizagem correspondem a competências que abrangem esses três tipos de conteúdos. Para Perrenoud (apud PORTAL, 2008, p.79) a avaliação de caráter formativo leva a um aprofundamento das noções de observação, de intervenção e de regulação. No que tange à observação, o teórico comenta: Observar é construir uma representação realista das aprendizagens, de suas condições, suas modalidades, seus mecanismos, seus resultados. A observação é formativa na medida em que ela permite guiar e otimizar as aprendizagens em curso, sem a preocupação com classificações, certificações, seleções. 0 Sendo assim, a importância da observação está em permitir orientar a ação pedagógica, a partir do que for sendo constatado nas atitudes dos alunos, no andamento das atividades, nos processos de aprendizagem, no funcionamento do método de trabalho etc. Quanto à regulação da aprendizagem, finalmente, ela constitui o eixo principal da avaliação formativa. Devido a essa importância na discussão sobre avaliação formativa e na importância que os mecanismos de regulação têm, neste trabalho de pesquisa abordaremos a questão da regulação/autorregulação de forma mais detalhada, a seguir. 2.3Autorregulação e autoavaliação Entende-se por regulação da aprendizagem todo o ato intencional que, agindo sobre os mecanismos de aprendizagem, contribua diretamente para a progressão e/ou redirecionamento dessa aprendizagem (SANMARTÍ, 2009). No dizer da autora, “a regulação da aprendizagem é um conjunto de ações que tem por objetivo adequar os procedimentos e estratégias de ensino às necessidades dos alunos” (SANMARTÍ, 2009, p.131). Mas quando falamos em uma ação sobre os mecanismos de aprendizagem, é preciso considerar também – e, sobretudo – o papel central do aprendente. Todo e qualquer ato de 35 regulação exige, defato, a ação do aluno, haja vista que a regulação tem como objetivo principal permitir ao aluno construir seu sistema pessoal de aprendizagem para que, assim, ele consiga melhorar progressivamente, participando ativamente do seu processo de aprendizagem. Só há verdadeira regulação da aprendizagem quando há autorregulação. Para compreendermos a importância da autorregulação, é preciso considerar que a capacidade para aprender está intimamente relacionada à capacidade de autorregular a aprendizagem. Ainda nas palavras de Sanmartí (2009, p. 51), “os alunos que aprendem são fundamentalmente aqueles que sabem identificar e regular suas dificuldades e encontrar os auxílios significativos para superá-las”. Para que isso aconteça é preciso promover situações didáticas que favoreçam a interação em torno dos processos em curso e dos produtos que vão sendo elaborados, pois é preciso que o aluno tome consciência dos diferentes aspectos e momentos de sua atividade cognitiva. No início desse processo o aluno depende muito da colaboração do professor e de seus colegas até que aprenda a construir o referencial necessário para a realização e a regulação autônoma da tarefa dada. Allal (apud PORTAL, 2008, p.80) ressalta que, durante a realização de uma atividade, o aluno [...] ativa uma série de processos: sua rede funcional de representações –(onde estão as suas representações sobre os mais variados saberes)-;, os processos de reprodução (que asseguram a ele a elaboração de uma série de procedimentos para a realização da tarefa); e, finalmente, as operações de regulaçãometacognitiva – (constituem uma espécie de interface entre as representações e o processo de produção) Assim, as pessoas que melhor aprendem têm dentre suas características a capacidade de planejar sua atividade em função de um objetivo de aprendizagem, não somente da aprovação do professor. Elas são capazes de reconhecer quando algo não encaixa, quando se desvia do previsto, é incoerente ou até mesmo se o objetivo fixado não está adequado. Nessa perspectiva, o erro não é visto como um fracasso; ao contrário, na verdade, ele é um componente incontornável da aprendizagem. Geralmente, na escola, o erro é visto como algo negativo, passível de punição e que os alunos têm medo de expor, pois é, para eles, sinônimo de fracasso. No entanto, o erro deve ser visto como o ponto de partida para aprender, resultado de diversos processos de construção do conhecimento. Se há algo que precisa ser mudado na escola é o status dado ao erro. Cabe ao professor deixar de lado os aspectos normativo-prescritivos, a sua ânsia em mostrar os erros, e corrigir os desvios demonstrando ser ele, professor, detentor do conhecimento. Esse pensamento não se coaduna com o desenvolvimento de competências 36 complexas, como na produção de textos, por exemplo, em que muitos dos problemas identificados não correspondem a simples desvios em relação a uma norma. Na realidade, o erro deve ser visto como um indicador dos obstáculos com o quais se defronta o pensamento do aluno ao desenvolver novas capacidades. Isso exige, então, que o erro passe a ser um elemento estratégico. É preciso conhecer e compreender as causas das dificuldades encontradas para, enfim, ajudar os alunos a reconhecê-las e corrigi-las. Há muito se derrubou o clichê do aluno considerado uma tábua rasa, um depósito de conhecimento. Como afirma Sanmartí (2009, p. 40): “Aprender não é apenas incorporar conhecimentos a uma mente vazia, mas sim reconstruí-lo a partir de outros já conhecidos, revisando concepções iniciais e refazendo práticas”. Ainda segundo a autora, os estudantes que têm êxito na escola são aqueles que têm a capacidade de cometer erros e corrigi-los. No entanto, nem todos os alunos desenvolvem essa capacidade de modo autônomo, por isso é tarefa do professor ajudá-los. Caberá ao professor ensinar o aluno a aprender, orientar em relação às estratégias de aprendizagem. De acordo com Sanmartí (2009, p.66) “o processo de se autorregular em um processo de aprendizagem passa por perceber e representar adequadamente os seguintes aspectos: os objetivos da aprendizagem; as operações necessárias à atividade que se deveria saber fazer e os critérios de avaliação”. Isso implica ensinar os alunos a reconhecerem suas ideias e práticas, identificar se estas ideias e práticas estão relacionadas com os conteúdos introduzidos para, enfim, tomar suas próprias decisões sobre o que precisa ser mudado e o que precisa ser melhorado. Transpondo essas afirmações para a produção textual em língua materna, uma prática formativa só se efetuará na medida em que os aprendentes puderem construir uma noção clara das qualidades esperadas nos textos a serem produzidos, reconhecendo, em seus textos e nos de seus pares, os elementos que indicam a presença ou ausência de tais qualidades e sendo capazes de modificar suas produções para alcançar as características esperadas. Para Allal (1993) a autorregulação deve mover a aprendizagem quando o aluno está enfrentando um problema ou uma tarefa complexa e precisa mobilizar conhecimentos e elaborar estratégias; por isso o autor afirma que ela é uma dimensão fundamental dos processos cognitivos e contribui nas condutas e nos objetivos pedagógicos requerido nas escolas. A interação entre professor-aluno e aluno-aluno pode promover momentos significativos de aprendizagem, principalmente se permitir que ambos tenham a consciência 37 de que na aula todos avaliam e regulam. Assim, em uma aula podem ser desenvolvidas atividades que promovam a autorregulação, a corregulação, a autoavaliação e a coavaliação. Para ilustrar o processo de regulação, Sanmartí (2009, p.68) apresenta o seguinte quadro sobre os agentes da autorregulação da aprendizagem: Quadro nº 1 – Regulação da Aprendizagem Fonte: Sanmartí (2009, p.68) Se para aprender um aluno precisa tomar consciência de seu processo de aprendizagem e saber como detectar suas dificuldades e suas incoerências para tomada de decisões sobre as estratégias de aprendizagem a serem desenvolvidas, nem sempre ele conseguirá conscientizar- se do que precisa ser feito sozinho. Por isso a importância de promover estratégias orientadas em que ocorra a corregulação: afinal quando alguém examina o trabalho de outrem, não só identifica mais facilmente as incoerências, como também as estratégias para resolvê-las. Outro fator benéfico desse processo é que quando as avaliações são feitas entre pares, há possibilidades de trocas, de discussões favoráveis à elaboração de novos conceitos, o que pode não acontecer com opiniões expressas apenas pelo professor. Reconhecemos, dessa maneira, a interação em sala de aula como um recurso fundamental na construção do conhecimento, pois é nos eventos de comunicação que os alunos são colocados “em situações de confronto, de troca, de interação, de decisão, que os forcem a explicar, a justificar, a argumentar, expor ideias, dar ou receber informações para tomar decisões, planear ou dividir o trabalho, obter recursos” (PERRENOUD, 1999, p. 99). QUEM PROMOVE A AUTORREGULAÇÃO? Na aula OS COLEGAS DO GRUPO OU CLASSE (OU DA CLASSE) OS PROFESSORES O PRÓPRIO ALUNO (A) Detecta, avalia, sugere Detectam, avaliam, sugerem 38 Essas situações permitem aos alunos apoiar os outros e receber ajuda, e por isso constituem experiências ricas na reestruturação dos seus próprios conhecimentos, na regulação das suas aprendizagens e no desenvolvimento da responsabilidade e da autonomia. Entretanto, é importante ressaltar que apesar de todos participarem (professores, alunos, colegas de classe) do processo de aprendizagem nos momentos de avaliação e regulação, não podemos deixar de reconhecer que a avaliação mais importante é a que o próprio aluno realiza. A autoavaliação é considerada o processo por excelência da regulação, como veremos a seguir. 2.4 Instrumentos de avaliação e aprendizagem Quando tratamos de avaliação é imprescindível discutir a escolha dos instrumentos avaliativos, uma vez que eles se relacionam diretamente com as concepções e objetivos que permeiam o processo de ensino/aprendizagem. Afinal, no sentido da avaliação formativa, eles são, também, instrumentos de aprendizagem. De acordo com Suassuna (2007, p.111) “em linhas gerais, os instrumentos dizem respeito ao conjunto de tarefas, atividades, exercícios, testes, etc. que aplicamos com o objetivo de acompanhar a aprendizagem dos alunos”. De modo mais sintético, Pasquier e Dolz (1996, p. 39) afirmam: “A avaliação formativa entende- se, atualmente, como a criação de instrumentos de regulação do sistema que constitui a produção textual” (o grifo é dos autores). Para Perrenoud (1999), a instrumentação tem menos importância do que o quadro teórico que orienta a sua interpretação. Essa compreensão dos instrumentos nos possibilita enxergar a aprendizagem como um processo complexo. Leva-nos a compreender que os alunos, ao enfrentarem as tarefas e os desafios colocados para eles nas diferentes situações didáticas, partem de sua própria realidade. Ao professor cabe a responsabilidade de, por meio de tarefas, aproximar as situações didáticas à realidade. Para isso ele poderá fazer uso dos mais variados instrumentos de avaliação na tentativa de fazer a articulação entre os conceitos que os alunos constroem e as formas mais bem elaboradas da compreensão da realidade. “Essas articulações estão baseadas no pressuposto vygotskyano de que os sujeitos atribuem sentidos aos objetos a partir de interações com sua cultura e seu meio social” (SUASSUNA, 2009, p.112). 39 Para Hoffman (2001) as tarefas têm dupla função, tanto para o professor quanto para o aluno. Para o primeiro, elas constituem-se como elementos que permitem a reflexão sobre o que os alunos já sabem e precisam aprender e sobre o sentido da sua ação pedagógica. Já, para o segundo, elas são oportunidades de expressar e reorganizar o que foi (ou vai sendo) aprendido, o que foi (ou vai sendo) construído e sobre o seu procedimento de aprendizagem. Para Suassuna, as tarefas e/ou instrumentos têm a função de mobilizar experiências e saberes prévios, acionar estratégias cognitivas, estimular a reflexão, o questionamento, o cotejo de conhecimento. Sendo assim, no momento de formular/elaborar os instrumentos a ser utilizado, o professor deve levar em consideração que as questões postas para os alunos precisam ser instigantes, mobilizadoras. Elas devem permitir a busca por soluções de problemas considerados como tais pelos próprios aprendentes, a tomada de decisões em relação aos meios para superar as dificuldades. Devem permitir uma apropriação do que está sendo abordado. No caso da produção textual, trata-se, pois, da apropriação dos critérios de qualidade do texto. A respeito da natureza dos instrumentos formativos, vale ressaltar as reflexões de Hadji (1993) acerca do tema. Para o teórico: Não há instrumentos que não pertença à avaliação formativa. [...] a „virtude‟ formativa não está no instrumento, mas sim, se assim se pode dizer, no uso que dele fazemos, na utilização das informações produzidas graças a ele. O que é formativo é a decisão de pôr a avaliação a serviço de uma progressão do aluno e de procurar todos os meios susceptíveis de agir nesse sentido (HADJI, 1993, p. 165). Sanmarti (2009) também considera que não existem bons ou maus instrumentos de avaliação, mas sim instrumentos adequados ou não às finalidades de sua aplicação. Diante disso, o mais importante é a coerência entre a atividade de avaliação e os objetivos didáticos. Um mesmo tipo de instrumento pode ser utilizado em diferentes momentos de aprendizagem e para diferentes objetivos, o que, na verdade, se diferencia são as tomadas de decisão realizadas a partir desses instrumentos. A construção coletiva dos instrumentos avaliativos confunde-se, portanto, com o próprio processo de aprendizagem. Para que isso ocorra de forma significativa para professores e alunos, é preciso que uma negociação entre as partes, que sejam expostos e discutidos os instrumentos e seus objetivos, pois ao discutir a avaliação com os alunos, temos a possibilidade de compreender como eles significam o processo, quais são os pontos que eles consideram relevantes, para construímos junto com eles os indicadores da avaliação. Cunha (2006) chama a atenção para o fato de que não basta mudar os instrumentos, os sujeitos da avaliação, nem mesmo o momento em que se avalia, pois isso não influencia de 40 fato na natureza dos objetos avaliados e na função da avaliação praticada. Para que ocorram mudanças é necessário que elas ocorram primeiramente nos objetivos e nos objetos didáticos: É profundamente ilusório, portanto, se pensar uma regulação dialógica, mediadora e emancipatória para uma aprendizagem do português na qual “saber português” significa apenas dominar a metalinguagem gramatical, “saber ler” significa apenas decodificar o escrito e “saber escrever” codificar seguindo as normas ortográficas. Não há como se pensar uma regulação dialógica, mediadora e emancipatória em aulas de português que se constroem em torno de objetivos e objetos de ensino totalmente incapazes de conduzir os aprendentes na prática de atividades de linguagem verdadeiramente dialógicas e emancipatórias (CUNHA, 2006, p.67). Desta forma, parece claro o dever de correlacionar os problemas ligados à concepção do que seja ensinar e aprender a produzir textos e os problemas ligados à concepção de avaliação, pois tais perspectivas são indissociáveis. De fato, como já ressaltamos, faz parte da competência escrita a apropriação de critérios que permitam uma produção textual capaz de desempenhar sua função comunicativa. Isso também significa que o aluno precisa aprender a avaliar seus próprios textos. Um bom produtor de texto necessariamente é um bom avaliador. Sendo assim, é preciso que no processo de ensino-aprendizagem da escrita o saber avaliar faça parte dos objetivos da aprendizagem e que todas as atividades de sala de aula mobilizam instrumentos que contribuam para esse objetivo primordial. 3. TRABALHO COM PROJETOS E PRODUÇÃO ESCRITA Vimos, no capítulo 1 deste estudo, que a perspectiva interacionista de ensino/aprendizagem da língua materna enfatiza a articulação das práticas sociais e a construção das competências comunicativas em torno dos gêneros textuais como objeto de ensino. No capítulo seguinte, destacamos a proposta formativa de avaliação da aprendizagem, nas quais os processos de regulação se apresentam como condição da aprendizagem, mostrando seu interesse para as tarefas complexas de ensino e aprendizagem da produção escrita, em língua materna. No presente capítulo, procuramos relacionar uma concepção pedagógica – a pedagogia de projetos – com um procedimento didático que incorpora essa concepção – a sequência didática para o ensino e a aprendizagem de gêneros –, como cenário particularmente propício ao trabalho de produção escrita de um gênero e para a reflexão sobre os instrumentos formativos. Nesse contexto, situamos o gênero escolhido – o conto fantástico – e o modelo didático que pressupõe. 3.1 A Pedagogia de projetos na Educação A pedagogia de projetos surge no início do século XX com o advento da chamada Escola Nova, que contestava a passividade dos alunos na aprendizagem e a detenção do saber sendo prioritariamente do professor (ABRANTES, 1995; CAMPS, 2006). A Escola Nova propunha uma linha de trabalho ativo em que se valorizava a experimentação, a participação do aluno no processo de aprendizagem, a pesquisa em grupo e se incentivava uma relação mais democrática na sala de aula. De fato, os defensores dessa corrente entendiam que a prática pedagógica deve preparar o aluno para a vida que terá em sociedade desenvolvendo competências que lhe permitam atuar socialmente. É nesse contexto que John Dewey (1859-1952) defende ser a educação o único meio efetivo para a construção de uma sociedade democrática. Para o pesquisador, o conhecimento não pode ser considerado uma atividade dirigida que tem um fim em si mesmo. Para o educador, a finalidade da educação é propiciar às pessoas condições para que resolvam por si próprias os seus problemas. Essa concepção questiona o modelo de escola tradicional, principalmente em seu aspecto de formar a partir de modelos prévios, e traz aspectos 42 inovadores para a educação. De acordo com Saviani (1998) o pensamento de Dewey sofreu crítica principalmente por representar os ideais liberais e não se contrapor aos valores burgueses, acabando, assim, por reforçar a adaptação do aluno à sociedade. Apesar das críticas, suas ideias foram imprescindíveis para o desenvolvimento do trabalho com projetos na escola. Para Dewey um projeto consiste em um plano de trabalho livremente escolhido com o objetivo de fazer algo que interessa aos alunos, quer seja um projeto em que se queira resolver um problema, quer seja uma tarefa que deva ser cumprida (CAMPS, 2006). Nessa perspectiva, o processo educativo permitiria tornar os alunos mais participativos na aprendizagem. No dizer de Hernández (1998) “os projetos de trabalho contribuem para uma ressignificação dos espaços de aprendizagem de tal forma que eles se voltem para a formação de sujeitos ativos, reflexivos, atuantes e participantes”. Desta forma, um projeto é uma proposta de intervenção pedagógica que faz com que a atividade de aprender tenha um sentido novo em que as necessidades de aprendizagem aparecem ligadas à resolução de situações-problema. Um projeto gera, portanto, situações de aprendizagem ao mesmo tempo reais e diversificadas, possibilitando que os alunos, ao decidirem, opinarem, debaterem, construam sua autonomia e seu compromisso com o social, formando-se como sujeitos culturais (JOLIBERT, 1994). O principal objetivo dos pesquisadores da pedagogia de projetos, tais como Dewey e Kilpatrick (EUA), Freinet e Jolibert (França), Santomé e Hernandez (Espanha), dentre outros, é permitir a integração da escola com a comunidade. É aproximar os currículos da vida real do aluno, considerando a escola como um espaço aberto, diminuindo, dessa forma, a distância entre o modo de aprendizagem escolar e o modo de aprendizagem social. Na pedagogia de projetos os papéis desempenhados por alunos e professores são diferenciados em relação à pedagogia dita tradicional. O professor deixa de ser aquele que ensina por meio da transmissão de informações, e cuja atuação é o centro do processo. Na verdade, cabe ao professor a tarefa de criar situações de aprendizagem em que “o aluno aprende no processo de produzir, de levantar dúvidas, de pesquisar e de criar relações, que incentivam novas buscas, descobertas, compreensões e reconstruções de conhecimento” (PRADO, 2003, p. 42). Nesse sentido, o professor é um ator imprescindível, pois sua atuação, a assistência que ele dá na elaboração da pesquisa e no desenrolar das ações definirá o êxito do projeto. 43 Assim, o professor, longe de atuar como um simples informante para o aluno, constitui-se em um orientador, um propulsionador das atividades e um motivador do aluno. No que se refere ao aluno, de acordo com Jolibert e colaboradores (1994), ao participar de um projeto o aluno deixa de ser apenas um “aprendiz” do conteúdo, pois desenvolve uma atividade complexa e, nesse processo, se apropria de um determinado objeto de conhecimento cultural formando-se como sujeito, uma vez que esse tipo de atividade lhe permite envolver-se em uma experiência educativa em que o processo de construção do conhecimento está integrado às práticas vividas. Abrantes (1995) define algumas características fundamentais do trabalho com projetos: 1. Um projeto é uma atividade intencional: na constituição de um projeto há um objetivo definido e, apesar dos desdobramentos que um projeto pode sofrer, esse objetivo reflete-se no trabalho realizado. 2. A responsabilidade e a autonomia dos alunos são essenciais: os alunos são corresponsáveis pelo trabalho e pelas escolhas ao longo do desenvolvimento do projeto. 3. Um projeto envolve complexidade e resolução de problemas: o que constitui um projeto é a apresentação de um problema e a exigência de atividades que buscam uma resolução para ele. 4. A autenticidade: o problema apresentado é relevante e tem um caráter real para os alunos. 5. Um projeto percorre várias fases: escolha do objetivo central; formulação do problema; planejamento; execução; avaliação; divulgação de trabalhos. Como lembram os Parâmetros Curriculares Nacionais, a relevância desse tipo de trabalho está na premissa que os projetos favorecem o necessário compromisso do aluno com sua própria aprendizagem, pois contribuem muito mais para o engajamento do aluno nas tarefas como um todo, do que quando essas são definidas apenas pelo professor (BRASIL, 1998). O foco de interesse deixa de ser o ensino e passa a ser a aprendizagem. 44 3.2 Trabalho com projetos e ensino da língua materna No campo de ensino de línguas, a abordagem baseada em projetos inicia-se com os estudos de Freinet que prioriza as atividades expressivas e comunicativas e o trabalho cooperativo como instrumentos para o desenvolvimento pessoal e social dos alunos. As propostas dele foram bem aceitas, na medida em que o enfoque na participação ativa do aluno sempre está presente quando o assunto é produção de textos. Muitos reconhecem minimamente a capacidade motivadora desse tipo de atividade (CAMPS, 2006). Mais recentemente, no ensino de língua materna voltado para a língua em uso, o trabalho com projetos passou a ser mais divulgado por Halté (1982; 1989); Petitjean (1981; 1985); Jolibert (1994; 2007) e Camps (2006), dentre outros. Nesses estudos, o projeto aparece como o contexto no qual a atividade linguageira adquire autenticidade e se torna significativa ao aluno, embora a dimensão da aprendizagem também esteja presente. De acordo com Camps e colaboradores (2006) os projetos de língua são formulados como uma proposta de produção (oral ou escrita), com intenção comunicativa, em que serão considerados e formulados parâmetros da situação discursiva em que se está inserido, bem como a formulação de uma proposta de aprendizagem com objetivos específicos. Assim, compreende-se que o ponto de partida de todos os projetos a que se faz referência é que a língua, além de ser objeto de aprendizagem, é o meio para realizar diversas atividades. Nesse tipo de trabalho a língua é utilizada em tarefas que envolvem os alunos pessoalmente, o que favorece seu interesse e permite a eles pôr em funcionamento estratégias comunicativas necessárias para desenvolver sua competência comunicativa. Pois, em um projeto as atividades de escuta, leitura e produção de textos orais e escritos e as de análise linguística se inter-relacionam de forma contextualizada (BRASIL, 1998). Os alunos ao serem engajados no planejamento e na consecução de um projeto sentem-se mais envolvidos e mais motivados. O trabalho engajado funciona como um contrato didático, já que a classe é consciente do objetivo compartilhado por todos os envolvidos, e da natureza do produto final em função do qual todos trabalham e que terá, necessariamente, destinação, divulgação e circulação social. Em síntese, Camps e colaboradores (2006) definem algumas características gerais, presentes em maior ou menor grau nas propostas de trabalho com projetos para aprender língua. São elas: 45 1. A Motivação: é considerada o motor da atividade e é intrínseca à funcionalidade da tarefa, que dá sentido a todas as ações e operações nela envolvidas. Para os autores, essa característica está intimamente relacionada com as atitudes linguísticas, pois dificilmente se pode aprender língua se não se quer aprender. 2. A integração das quatro habilidades linguísticas: em uma atividade complexa, como um projeto, as quatro habilidades se integram completamente, uma vez que se fala para escrever e aprender a escrever, se lê e se escreve para produzir discursos orais formais, se lê para escrever e se escreve para entender melhor o que se lê, o que se escuta etc. 3. A programação de objetivos de aprendizagem específicos: Apesar dos projetos envolverem a língua em toda sua complexidade, é preciso determinar objetivos específicos de aprendizagem linguístico-discursivas que deverão ser sequenciados a fim de permitir aos alunos saberes acerca do funcionamento da língua. 4. A avaliação formativa: O trabalho por projetos é propício à avaliação formativa, que pode adotar múltiplas formas. Os professores podem aplicar estratégias pedagógicas adequadas durante o processo para detectar as dificuldades e arbitrar ajudas necessárias para superá-las. Além disso, nesse modo de trabalho, a discussão e troca de informações com os colegas permite uma melhor compreensão do objeto de estudo e a troca de papéis atua como facilitadora das tarefas complexas que uma pessoa que aprende não poderia levar adiante sozinha. 5. A diversidade de interesse e habilidades:Essa diversidade pode encontrar nesse contexto uma expressão adequada, haja vista que se oferece a possibilidade de contribuir de diferentes maneiras para o trabalho comum. 6. As relações interdisciplinares: as características do trabalho por projetos permitem relações interdisciplinares, pois a inter-relação entre o uso da língua e os conteúdos de outras disciplinas ultrapassa as possibilidades da língua e expressam conhecimentos. De acordo com os PCN, os projetos tem grande valor pedagógico por criarem a necessidade de ler e analisar grande variedade de textos, percebendo como se organizam, quais características possuem, ou seja, os projetos permitem a reflexão sobre os aspectos próprios do gênero que será produzido, o que levará os alunos a produzirem textos mais adequados às condições de produção. Outro aspecto importante é “a necessidade de refacção e de cuidado com o trabalho, pois, quando há leitores de fato para a escrita dos alunos, a 46 legibilidade passa a ser o objetivo deles também, e não só do professor” (BRASIL, 1998, p.88). Esse trabalho pode ser desenvolvido de forma individual, em duplas, pequenos grupos ou grande grupo. Em qualquer caso, é não só permitido como estimulado o intercâmbio entre os alunos e entre eles e o professor. Isso possibilita que a heterogeneidade da turma torne-se uma vantagem, com o enriquecimento do produto final, uma vez que permite a cada aluno dispor um pouco de sua experiência e conhecimento. Essa interação serve de ajuda à aprendizagem e permite desenvolver o controle consciente necessário à gestão da escrita (FORT; RIBAS, 2006). Para Bonini (2009), ao considerarmos que o domínio de gêneros textuais tem necessariamente um elemento de prática, há uma identificação imediata com projeto didático e com a sequência didática proposta pelos pesquisadores do chamado grupo de Genebra. 3.3 Trabalho com projetos e sequências didáticas A sequência didática para o ensino de gêneros é um procedimento didático divulgado pelos pesquisadores da Universidade de Genebra, em particular num artigo de Joaquim Dolz, Michèle Noverraz e Bernard Schneuwly (2004), voltado para o ensino fundamental. A proposta apresentada pelos pesquisadores parte da ideia de que é possível ensinar gêneros textuais públicos da oralidade e da escrita, ainda não dominados pelos alunos, e isso pode ser feito de forma sistematizada mediante sequências didáticas apropriadas. Segundo os autores o procedimento Sequencia Didática pode ser compreendido como: [...] um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito. [...] [Esse procedimento] tem a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97). Os autores consideram os gêneros textuais como um instrumento de comunicação que se realiza empiricamente em textos, ou seja, os gêneros estão sempre ancorados em alguma situação concreta, situados em algum contexto de produção. É a partir dessa compreensão que defendem ser conveniente, no ensino da língua, priorizar situações de uso real, nas quais se desenvolvem atividades de linguagem. 47 A finalidade de se trabalhar com Sequência Didática é proporcionar ao professor um planejamento que permita a realização de todas as tarefas e etapas para a produção de um gênero pelos alunos, de forma significativa para eles. A sequência didática que propõem tem a estrutura de base apresentada na Figura 1. O dispositivo é composto por quatro fases, ao longo das quais são implementados procedimentos de avaliação diagnóstica, formativa e somativa. FIGURA 1 – Esquema da Sequência Didática Fonte: Dolz; Noverraz; Schneuwly (2004, p. 98). Descrevendo as fases da Sequência Didática (conforme DOLZ et al., 2004) temos: Apresentação da Situação: É nessa apresentação inicial que é exposto aos alunos ou negociado com eles um projeto de comunicação bem definido, no qual a produção de um gênero textual será necessária, o que, como observam os autores, “torna as atividades de aprendizagem significativas e pertinentes” (DOLZ et al., 2004, p. 100). O projeto coletivo permite definir a situação de comunicação na qual os alunos deverão agir, daí a necessidade de o professor apresentar de maneira bastante explícita esse projeto, ou seja, dizer aos alunos o gênero que será abordado, com que intuito, a quem a produção se dirige, que forma ela assumirá e quem participará dessa produção. Além disso, o professor deverá trabalhar os conteúdos temáticos que serão mobilizados (Por ex. pesquisar sobre o problema do lixo urbano e seu tratamento no município, se for produzido um panfleto a ser distribuído aos moradores do bairro, ou ainda pesquisar sobre determinado período histórico, se a produção proposta é de um romance histórico). Isso permitirá aos alunos terem mais clareza em relação àquilo com que o projeto está relacionado. A respeito do projeto de classe ou de comunicação, os autores citam alguns exemplos (criação de uma coletânea de enigmas policiais, organização de um debate e outros), mas Apresentação da situação PRODUÇÃO INICIAL PRODUÇÃO FINAL Módulo 1 Módulo 2 Módulo n 48 também mencionam projetos fictícios ou parcialmente fictícios, mas plausíveis o suficiente para motivar a aprendizagem. A primeira produção Essa fase consiste na primeira tentativa dos alunos em produzir um texto do gênero. Nesse momento eles revelam a eles próprios e ao professor as representações que têm a respeito do gênero em questão. Essa produção permite, então, ao professor realizar uma avaliação diagnóstica, observando o que os alunos já sabem e definindo, ao contrário, quais as habilidades e competências que ainda precisam desenvolver, ou seja, essa produção inicial permite conhecer as reais necessidades dos alunos. Segundo os autores: essas produções “constituem momentos privilegiados de observação, que permitem refinar a sequencia, modulá-la e adaptá-la de maneira mais precisa às capacidades reais dos alunos de uma dada turma. Em outros termos colocar em prática um processo de avaliação formativa” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 102). Os Módulos Os módulos são definidos e construídos a partir das problemáticas evidenciadas na primeira produção. Sendo assim, eles têm como objetivo permitir aos alunos a obtenção de instrumentos necessários para superar os problemas da primeira produção, dando conta da superação dos problemas encontrados na primeira produção, sejam esses problemas de ordem linguística, pragmática, estrutural etc. Nesse momento ocorre, portanto, a sistematização do tratamento dos problemas, mediante o número de módulos julgados suficientes e/ou compatíveis com o tempo de que se dispõem. Durante os módulos os alunos são levados a refletirem sobre as diversas dimensões que levantam problemas, aprendendo ao mesmo tempo a elaborar critérios e indicadores avaliativos, com base na leitura e observação de textos pertencentes ao mesmo gênero, a avaliar o texto produzido por eles e por seus colegas e a reescrever seu texto. Por exemplo, ao reconhecerem, na avaliação diagnóstica realizada após a primeira produção, que os debatedores falaram ao mesmo tempo ou usaram argumentos pouco claros, que o desfecho do conto escrito foi muito previsível ou que o autor confundiu o leitor em relação à sequência das ações, os aprendentes estão apontando alguns dos critérios de avaliação ligados àquele 49 gênero. Estão, de certas forma,constatando que, para que um debate transcorra satisfatoriamente, se espera que cada participante possa expressar sua opinião sem ser constantemente interrompido por outros ou que os argumentos defendidos devem ser apresentados de modo que os valorizem; e que, para que um conto desperte o interesse do leitor, não pode ter um desfecho muito rápido e totalmente previsível e que as ações narradas precisam ser situadas na sequência temporal de forma clara. Construídos com o objetivo de sanar os problemas mais importantes que apareceram, os módulos vão levar os aprendentes a refletir sobre os recursos linguísticos de que podemlançar mão para distribuir os turnos ou tomar um turno, em um debate, para expressar opiniões contrárias à determinada tese ou apresentar argumentos com mais força, ou ainda para criar suspense ou dar coerência à sequência temporal em uma narrativa. Essa reflexão apoia-se prioritariamente na análise de textos em que esses pontos são bem resolvidos, embora cada texto analisado possa apresentar soluções diversas para o mesmo problema. Os módulos acontecem até que tenha ocorrido um treinamento suficiente para que os aprendentes consigam melhorar sua produção, em relação aos problemas apontados no diagnóstico, e possam produzir um texto de melhor qualidade. Produção Final Nesse momento os alunos colocam em prática os conhecimentos e habilidades adquiridos ao longo dos módulos. É essa produção que poderá ser submetida à avaliação, com base nos critérios e indicadores já amplamente solicitados ao longo dos módulos. Nessa produção final, o aluno já deve ter um maior controle sobre sua própria aprendizagem, uma vez que a reflexão empreendida nos módulos lhe permite ter mais clareza em relação ao que ele fez, como o fez e por que o fez. Assim “ele aprende a regular suas ações, suas formas de produção e seleção do gênero de acordo com a situação que ele pode ser produzido” (MARCUSCHI, 2008, p. 216). Finalmente, encerando-se o período de aprendizagem, os aprendentes podem se valer dos produtos construídos e reelaborados ao longo da sequência para realizar o projeto planejado. Em outras palavras, após ter aprendido a dominar melhor o gênero, os aprendentes podem concluir o projeto de comunicação anteriormente definido que havia motivado a sequência de aprendizagem. Embora seja possível trabalhar com projetos fictícios, percebe-se o potencial motivador do projeto, isto é, o potencial do uso da produção em situações de comunicação 50 efetivas em que os aprendentes sabem que, por exemplo, debaterão diante de uma audiência real (da escola ou de fora dela) ou que seus contos terão leitores reais, fora da sala de aula. Na pesquisa-ação aqui analisada, tivemos como projeto a realização do “I Coquetel Literário” da escola, em os alunos apresentariam suas produções a seus convidados, como explicaremos no tópico 4.2.2. A realização daquele evento como projeto de classe, embora realizado no âmbito da escola, daria um sentido especial à produção de textos que, como já mencionamos anteriormente, seriam contos ligados ao horror e terror, conforme preferência manifestada pelos próprios alunos. Uma vez definido o projeto e escolhido o conto fantástico como objeto de estudo, restava planejar as atividades de sala de aula na perspectiva da sequência didática, tendo por base um modelo didático daquele gênero. Exporemos aqui as concepções teóricas relativas ao conto fantástico em que nos apoiamos para elaborar o modelo didático, a ser apresentado posteriormente. 3.4 O Conto e o Fantástico O gênero literário conto foi escolhido como objeto de ensino em nossa pesquisa por ter sido um dos gêneros mais apreciado pelos alunos pesquisados, principalmente quando abordava histórias fantásticas. Autores como Jardim (2003) esclarecem que a literatura na adolescência preenche um espaço entre o leitor infantil e o leitor adulto, haja vista que quando o jovem entra na adolescência seus interesses e necessidades sofrem modificações, o que se reflete em suas atividades e em suas leituras. De acordo com a referida autora, “é nesse momento que a literatura juvenil atua, oferecendo obras que devem funcionar como pontes entre o mundo que está sendo abandonado pelo seu leitor e o mundo que ele prepara para enfrentar” (JARDIM, 2003, p.22). Aliado a isso, textos com extensão curta e estruturas simples tornam a leitura agradável e apropriada para leitores iniciantes, perfil dos participantes da nossa pesquisa. O surgimento do conto se dá juntamente com a arte de narrar; por isso o gênero é considerado uma das formas narrativas mais antigas, no entanto, segundo Moisés (1996), o conto – em sua forma escrita – só começa a fixar-se no século XVII com a coletânea de contos populares feita por Charles Perrault. Nesse momento há grande interesse de tornar o 51 que é oral para o escrito, pois a imprensa escrita se moderniza e ganha força. Dessa forma, da oralidade para a escrita, o conto se firma como uma forma sintética e magnetizante de contar histórias, hipnotizando o leitor e desafiando o escritor. A definição de conto não é tarefa fácil, haja vista ser o gênero um objeto tão complexo e multiforme. Para Leal (1985), do ponto de vista tipológico, há várias tentativas de classificação dos contos, mas, segundo a autora, são confusas e pouco produtivas. Assim, consideramos para este trabalho, ser mais adequado para compreender o gênero destacar as características principais, as regularidades presentes na narrativa. O conto é um gênero literário da prosa de ficção e que tem a narratividade e a brevidade como marcas essenciais. Devido a essa brevidade, na narrativa são geradas tensões condicionadoras de várias situações, narradas em certo espaço de tempo. A brevidade do conto, no entanto, é mais uma questão de tendência do que de regra, pois há contos que são tão longos quanto uma novela ou até mesmo alguns romances. É preciso, então, considerar não a concisão da narrativa, mas a constituição do seu enredo. O enredo de um conto apresenta um número restrito de personagens, a concentração do espaço e do tempo em um único relato e a ação que tende à simplicidade e à linearidade diferente do romance e da novela. Gotlib (2003) ressalta que a ação do conto costuma ser fechada e desenvolver um só conflito. No que concerne ao tratamento dado ao tempo, em um conto, não há uma determinação precisa da duração da ação ou uma localização em um contexto histórico. As expressões temporais remetem sempre ao passado, daí o predomínio dos tempos verbais no pretérito, principalmente, no pretérito perfeito. Segundo Moisés (1996, p.44): [...] os acontecimentos narrados no conto podem dar-se em um curto lapso de tempo: já que não interessam o passado e o futuro, o conflito se passa em horas, ou dias. Se levam anos: 1) ou trata de um embrião de romance ou novela, 2) ou o longo tempo referido aparece na forma de síntese dramática, que envolve, habitualmente, o passado da personagem. Da mesma forma que o tempo, a referência espacial é, na maioria das vezes, imprecisa. Essa imprecisão das referências espaciais e temporais pelo fato de não ser o onde nem o quando que interessam, mas sim o que acontece, a ação, a trama. No que tange à narrativa fantástica podemos dizer que se trata de um gênero que, ao longo dos tempos, vem despertando a curiosidade de muitos estudiosos que a ela tem se dedicado na intenção de torná-la, por assim dizer, definível. Entretanto, estes estudos têm se 52 mostrado incapazes de abarcar a totalidade de sua representação. De acordo com Rodrigues (1988), para compreendermos a literatura fantástica, precisamos entender que: o termo fantástico refere-se ao que é criado pela imaginação, o que não existe na realidade, o imaginário, o fabuloso. Aplica-se, portanto, melhor a um fenômeno artístico, como é a literatura, cujo universo é sempre ficcional por excelência, por mais que se queira aproximá-lo do real (RODRIGUES, 1988, p.9). A narrativa fantástica não se propõe a ser uma representação da realidade, mas provoca no leitor a inquietação do que vem a ser a realidade em si. O Fantástico não admite nem traz qualquer explicação, nem na realidade, nem fora dela, gerando uma grande inquietação, seja no leitor ou nas personagens. “Se o Real é aquilo que se julga ordinário, o Fantástico é tudo o que foge dessa concepção, é o extraordinário, o que está fora da ordem, o insólito, pois não se enquadra nos paradigmas” (Moreira, 2008, p. 12). Para Tzetan Todorov, o fantástico se define a partir do efeito de incerteza e hesitação provocada no leitor face a um acontecimento sobrenatural. A hesitação é para Todorov a primeira condição do fantástico. Outra abordagem do fantástico bastante difundida é a do escritor e ensaísta Lovecraft, para quem o fantástico é uma narrativa em que o sobrenatural é um tema recorrente e fornece a explicação para os fenômenos presentes no texto. O elemento fundamental na produção dos textos fantásticos seria a atmosfera e a sensação de que o texto provoca geralmente no leitor, a sensação de medo (VIEIRA, 2011). Dessa forma, a partir da compreensão do que diziam os especialistas em conto e em fantástico, iniciamos nossas leituras de contos dessa natureza para, enfim, produzirmos o modelo didático do conto fantástico. 3.5 Modelo didático do conto fantástico A construção de uma sequência didática para o ensino/aprendizagem de um gênero textual pressupõe a elaboração de um modelo didático por parte do professor, de modo a definir as dimensões ensináveis do gênero. Como lembra Gonçalves (2008, p. 51), “Esse modelo serve para apontar aspectos a serem trabalhados que adviriam a partir de uma análise a priori, isto é, sem que (neste momento específico) se levem em conta as capacidades/particularidades de uma turma de estudantes”. 53 A modelização do gênero foi uma tarefa difícil, em nosso projeto, devido à literatura especializada no tema apresentar diferentes definições, o que trouxe desafios quanto às escolhas dos textos, pois precisávamos determinar o que consideraríamos como contos fantásticos. Na busca de resolver tal problemática, consideramos contos fantásticos qualquer conto que tivesse como pano de fundo o sobrenatural, o fantasmagórico, que buscasse envolver o leitor em uma narrativa em que o medo e/ou o mistério e/ou o suspense e/ou o terror estivessem presentes. Assim, consideramos a definição de conto fantástico tal qual apresenta Lovecraft (2007, p.17): “Um conto é fantástico muito simplesmente se o leitor experimenta profundamente um sentimento de temor e de terror, a presença de mundos e poderes insólitos”. Dessa forma, o elemento fundamental na produção dos textos fantásticos seria a atmosfera e a sensação que o texto provoca no leitor, geralmente uma sensação de medo. A fim de sistematizar os elementos mais do ponto de vista linguístico e do conteúdo, selecionamos textos em português (muitos traduzidos) de autores considerados expoentes da literatura fantástica, tais como: Edgar Allan Poe, Guy de Maupassant, Charles Dickens, Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles e Murilo Rubião para fazermos a análise. Com base nessas leituras foi possível constatar que uma narrativa fantástica, além de ser constituída com elementos próprios da narrativa, possuía algumas peculiaridades, como veremos a seguir. O conto fantástico tem intenção de envolver o leitor em uma única ação que se desdobra a partir do inexplicável no mundo real, a partir de acontecimentos que fogem ao senso comum e às leis da física e não resiste a qualquer explicação de natureza cognitiva de nosso universo racional. Tal como afirma Rodrigues (1988, p.11): O texto oferece um diálogo entre a razão e a desrazão, mostra o homem circunscrito à sua própria racionalidade, admitindo o mistério, entretanto, e com ele se debatendo. Essa hesitação que está no discurso narrativo contamina o leitor, que permanecerá, entretanto, com a sensação do fantástico predominante sobre as explicações objetivas. A narrativa começa com cenas triviais, seja um jantar em família, seja um passeio entre amigas, seja a visita a uma casa, enfim, o fantástico surge no contexto de uma ação considerado normal. É o que afirma Furtado (1980) ao declarar que: [...] qualquer narrativa fantástica encena fenômenos ou seres inexplicáveis e, na aparência, sobrenaturais. Por outro lado, tais manifestações não irrompem de forma arbitrária num mundo já de si completamente transfigurado. Ao contrário, surgem em um dado momento no contexto de uma ação e de um enquadramento especial até então supostamente normais. (FURTADO, 1980, p.19). 54 A estrutura narrativa do conto, já apresenta a situação inicial com cenas triviais e é na complicação que surgem os elementos (assombrações, medo, mistérios, terror etc) que comporão o fantástico. Dessa forma, ao produtor de textos fantásticos é necessário compreender essa mudança de etapa na narrativa. Outra característica importante em um conto de natureza fantástica é a ambientação. As ações precisam construir uma sensação de perigo, de medo. As situações em que as personagens estão inseridas devem evidenciar o terror nas circunstâncias. Tais estratégias precisam convencer o leitor. Diante disso, a descrição dos ambientes, das personagens e de suas sensações é essencial na narrativa. As palavras formam uma imagem visual, daí a necessidade de, para produzir um conto fantástico, escolher adequadamente os vocábulos, principalmente os qualificativos e advérbios. Os personagens não são o centro de atenção do escritor, pois o que está sendo evidenciado são os fatos que tais personagens vivenciam, o que sugere personagens planas, geralmente com pouca ou nenhuma complexidade psicológica. O narrador apresenta a ação recorrendo a cenas de mistério e de horror, com o objetivo de ir fomentando a inquietação e a curiosidade no leitor. Para Rodrigues (1988) no fantástico há preferência pelo narrador em primeira pessoa, pois o maior engajamento assim produzido favorece a inquietação do leitor diante do verossímil e inverossímil. Gotlib (2003, p. 21) evidencia que nos contos que apresentam terror e/ou mistério o efeito tem uma especial importância, pois “surge dos recursos de expectativa crescente por parte do leitor ou da técnica do suspense perante um enigma, que é alimentado no desenvolvimento do conto até seu desfecho”. Para a sequência didática desenvolvida em nossa pesquisa, com participantes ainda pouco experientes como produtores de textos, resolvemos limitar nossa intervenção aos aspectos estruturais – a situação inicial, a complicação, o clímax e o desfecho –, e aos temáticos – o suspense, o mistério, o terror. A pesquisa-ação desenvolveu-se como indicado no capítulo de exposição da metodologia, a seguir. 4. METODOLOGIA O estudo aqui apresentado teve por base a pesquisa-ação realizada com uma sequência didática tendo o gênero conto fantástico como objeto de ensino. Nele, procuramos compreender de que forma ocorre a regulação da aprendizagem quando se desenvolve esse tipo de prática, destacando, no processo pedagógico, a elaboração dos instrumentos de regulação da produção escrita visada. Serão apresentados agora a metodologia da pesquisa- ação em si e os diversos elementos da pesquisa-ação que foi efetivamente realizada, bem como as escolhas metodológicas que fizemos em termos de geração dos dados e análise desses dados. 4.1 A Pesquisa-ação A interação professor-aluno e a qualidade do ensino e aprendizagem ganharam relevância no começo dos anos 80. Isso motivou professores a criarem o hábito de investigar o seu próprio trabalho pedagógico, visando identificar a melhor forma de apresentar um assunto ou tópico em sala de aula e acompanhar o processo de aprendizagem dos alunos (BORTONI-RICARDO, 2008) Essa prática teve como consequência a investigação pelos professores de suas próprias turmas e, a partir disso, a troca de experiências permitindo que encontrassem achados equivalentes ou contraditórios. O aprofundamento dessas experiências culminou em pesquisas científicas que procuravam descrever as estratégias utilizadas em sala de aula. Surge, assim, a ênfase na figura do professor pesquisador, cujos trabalhos pretendem contribuir para um maior entendimento dos processos de ensino e aprendizagem. O conceito de pesquisa-ação representa um modo de pesquisa privilegiado para as discussões de um dos maiores impasses entre educadores: a relação entre teoria e prática. Como afirma Morin (2004, p.32): O tipo de saber que se procura gerar na pesquisa-ação emergirá da reflexão sobre a prática, já que o professor – como ator e pesquisador - está inserido em um campo, faz parte dele, e deve caminhar com múltiplos componentes de seu meio porque a priori não sabe o que é pertinente e o que não é em seu projeto de pesquisa. A pesquisa-ação está inserida no paradigma da pesquisa qualitativa por não considerar os sujeitos envolvidos como meras variáveis, quantidades absolutizadas, aspectos presentes 56 em pesquisas de perspectiva quantitativa de orientação positivista. Na pesquisa-ação o pesquisador não deixa dúvidas sobre a relevância conferida à prática em seu processo de investigação. Esse tipo de pesquisa tem como principal característica o fato de o pesquisador possuir uma dupla postura: a de observador crítico e de participante ativo, pois, tal pesquisa, exige uma realização concomitante da pesquisa e da ação/intervenção. Segundo Thiollent (2007, p.16): A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo. Essa metodologia de pesquisa apresenta, portanto, a intervenção como ponto em comum em todas as correntes que a constituem enquanto metodologia e envolve um plano de ação, objetivos, processos de acompanhamento, controle de ação planejada e relato desse processo, visando uma melhoria da prática (ANDRÉ, 1995). Na pesquisa-ação pretende-se refletir sobre os meios de superar um determinado problema inserido no cotidiano do pesquisador. Seu objetivo primordial é a mudança, a transformação de uma determinada realidade educacional, levando em consideração toda a complexidade que a constitui. Nessa perspectiva, a reflexão na prática constitui uma possibilidade de se abrir para a inovação e para a mudança no conhecimento pedagógico enraizado nas representações da tradição (JOLIBERT, 2007). Assim articula-se a relação entre teoria e prática no processo mesmo de construção do conhecimento. A dimensão da prática é fonte e lugar privilegiado da pesquisa. Como defende Jolibert (2007, p.19), “Muitas das práticas humanas, e entre elas, as educativas, são refinadas, reajustadas mediante a reflexão transformando-se em práxis”. Nesse sentido, os sujeitos envolvidos são considerados como construtores de seu conhecimento e não meros receptores de informação. Além disso, a própria investigação exige uma ação, uma intervenção social, possibilitando ao pesquisador uma atuação efetiva sobre a realidade estudada. Dessa forma, o que eram considerados anteriormente como polos contrapostos, tais como reflexão e prática, ação e pensamento, passam a ser acolhidos como seu princípio e seu fim último (FRANCO, 2005). Isso possibilita ao professor não se ver apenas como um usuário de conhecimento produzido por outros pesquisadores, mas também como alguém que produz conhecimentos sobre sua atuação profissional, de forma a investigar essa prática e melhorá-la. Essa 57 característica de ter o compromisso de refletir sobre sua própria prática, “buscando reforçar e desenvolver aspectos positivos e superar as próprias deficiências é o que distingue um professor pesquisador dos demais professores” (BORTONI-RICARDO, 2008, p.46) Dessa forma, a pesquisa-ação deve ser compreendida como uma estratégia para o desenvolvimento de professores e pesquisadores de modo que estes possam utilizar suas pesquisas para aprimorar seu ensino e, consequentemente, o aprendizado dos alunos (TRIPP, 2005, p. 448). A metodologia escolhida para nossa pesquisa é uma forma de ação que permite a todos os agentes – professores e alunos – se tornarem sujeitos mais efetivos na busca pelo conhecimento e, dessa forma, tornando-se capazes de mudar a sua realidade no que se refere à produção textual. 4.2 A geração dos dados da pesquisa 4.2.1 Local, participantes e período da pesquisa A pesquisa foi desenvolvida em uma escola privada de ensino fundamental e médio, localizada na Cidade Nova no município de Ananindeua, onde já venho atuando como professora de Língua Portuguesa desde 2009. A escola, que oferece ensino do 7º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, atende uma clientela de classe média baixa. Ela funciona no período matutino e vespertino, com uma média de 40 alunos em cada turma. A escola dispõe de salas climatizadas e possui equipamentos de vídeo e videoprojetores, ainda que em pequena quantidade para o número de turmas. Para a realização da pesquisa-ação, escolhi, com a devida autorização da coordenação da escola (que aprovava meu modo de trabalhar) uma turma de alunos do 6º ano do ensino fundamental. A turma, na qual eu ministrava aula duas vezes na semana, com uma carga horária total de 4 horas/aulas, era composta por 33 alunos, com idade de 10 a 12 anos. A escolha da turma não foi feita ao acaso, uma vez que eu tinha sido professora desses alunos no ano anterior e que, de certa forma, eu já conhecia seu perfil e sabia de sua receptividade a mim, à disciplina e à minha forma de trabalho. Esses alunos, em sua maioria, gostavam de ler. Desde o início do ano anunciei que teríamos momentos de leitura de contos, 58 crônicas, fábulas, cartas, poemas, dentre outros nas aulas. Os alunos demonstravam grande interesse por essa atividade e sempre sugeriam textos para serem lidos pela turma. A pesquisa-ação que resolvemos empreender foi realizada de maio a outubro de 2011. Esse tempo relativamente longo ocorreu devido a fatores externos à pesquisa, em particular numerosas interrupções das aulas provocadas por eventos que aconteceram na escola tais como: festa junina, jogos internos, semanas de provas, Feira da Cultura. 4.2.2 A professora-pesquisadora Sou formada em Letras com habilitação em Língua Portuguesa desde 2007, mas minha atuação na sala de aula teve seu início quando estava na graduação. Ainda na universidade tive a oportunidade de participar de projetos de ensino, pesquisa e extensão. Na pesquisa, participei de iniciação científica; no ensino, de projetos voltados para o vestibular e na extensão, atuei como coordenadora setorial do programa alfabetização solidária. Após a formatura, atuei como professora na interiorização da Universidade do Estado do Pará no curso de Letras e Pedagogia. Somente em 2009 tive a minha primeira oportunidade de trabalhar com turmas de ensino fundamental. Essa atuação exigiu voltar aos estudos com outros olhos, pois até então lia os teóricos da área de ensino/aprendizagem sem conhecimento de causa, o que resultava em meras repetições do que diziam os livros. Na prática docente, o grande desafioera transpor para a sala de aula o que havia estudado. No ensino fundamental sempre tive como auxílio livros didáticos de cuja abordagem discordava. A escola em que trabalhava tinha a ânsia pela inovação, mas o tradicionalismo estava sempre presente por trás das aparentes mudanças. Atualmente, ministro aulas no ensino fundamental há 4 anos. Nessas atuações sempre transformei minha prática em fonte de pesquisa, a princípio para o trabalho de conclusão do curso de especialização e, agora, para o mestrado. Essa motivação, para mim, foi importante uma vez que o trabalho com projetos é árduo. O planejamento e, principalmente, a execução de um projeto de escrita, era extremamente cansativo, pois, apesar do interesse dos alunos em participar, havia neles uma juventude, uma inquietude, um desejo de rebeldia característico da adolescência, que os fazia se dispersarem muito rápido e demorarem em voltar ao foco. Em todos os projetos que desenvolvi na escola tive o auxílio da coordenação pedagógica, no entanto as atividades sempre foram minhas e nunca da escola, o que acabava 59 exigindo muito mais do que minha atuação habitual como professora. Apesar disso, os resultados obtidos em sala de aula foramgeralmente bem satisfatórios. Os alunos costumavam demonstrar interesse pelos projetos e estavam dispostos a participar das sequências didáticas. É claro que, nem sempre, com a mesma motivação, mas ainda dessa forma contribuíam. 4.2.3 O projeto escolhido Quando lhes apresentei a ideia de realizarmos, naquele semestre, um evento intitulado “I Coquetel literário”, no qual eles publicariam textos de sua autoria a um público de convidados, os alunos mostraram-se bastante empolgados. Resolvemos então que no evento – cuja data fixamos para o início do mês de dezembro 4–, os alunos fariam a leitura dos textos produzidos especialmente para o evento e que serviriam um pequeno coquetel (sucos, doces e salgados) a seus convidados: pais e membros da comunidade escolar. Naquele momento, também foi negociado com eles o gênero que seria produzido, uma vez que este gênero seria também objeto de aprendizagem para eles, ao longo das semanas seguintes. Como demonstraram particular interesse por textos do universo fantasmagórico, sobrenatural, assombroso, a escolha recaiu no conto fantástico. Ficou claro para eles, então, que a sequência de atividades que desenvolveríamos visava à apropriação daquele gênero. A escolha desse gênero foi um desafio para a mim, pois, em pouco tempo, preciseirealizar intensa pesquisa para construção do modelo didático de gênero como também para a escolha dos textos a serem lidos em sala de aula. 4.2.2 Procedimentos e instrumentos de coleta de dados A realização de uma sequência didática para a aprendizagem do gênero conto fantástico foi desenvolvida a partir do modelo divulgado por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), cuja estrutura de base reproduzimos em 3.3. Essa sequência constituiu, ao mesmo tempo, um 4 O evento ocorreu de fato no dia 10 de Dezembro de 2011, em uma sala de aula, na presença da coordenação da escola, de vários pais de alunos e de alguns outros professores da escola. Dias antes, elaboramos com a turma a programação do evento, incluindo ali a fala de duas mães de alunos que haviam pedido para se manifestar em relação ao projeto. 60 dispositivo de ensino/aprendizagem e um procedimento da pesquisa-ação, já que possibilitou gerar numerosos dados. Além da sequência de atividades, a observação participante, que pude realizar enquanto atora do processo e pesquisadora, possibilitou a observação das atitudes, reações, comentários, ações dos envolvidos. Ao exercer concomitantemente essas duas funções, pude observar os fenômenos na totalidade de seu desenvolvimento e também procurar compreender o processo em curso, embora alguns fatos analisados, em particular os problemas advindos da construção dos instrumentos, só foram melhor percebidos posteriormente, ao escrever a presente dissertação. As ocorrências das aulas foram anotadas num diário de campo, além das impressões da pesquisadora em relação a esses eventos. Nossa experiência corrobora a afirmação de BORTONI-RICARDO (2008, p. 62) segundo a qual as anotações no diário suscitam uma maior reflexão em relação ao andamento da experiência: Um momento muito importante da coleta de dados é quando o pesquisador passa a limpo suas anotações. Ele deve despender na reescrita pelo menos o mesmo tempo que despendeu na observação no campo. A atividade de reescrita favorece a reflexão e permite que elementos que passaram despercebidos mereçam mais atenção. Passaremos agora a uma rápida apresentação da sequência didática realizada com a turma. Na apresentação inicial, além da negociação do projeto, foi explicado que, durante um período, nas aulas de língua materna seriam desenvolvidas diversas atividades sobre contos fantásticos para que os alunos pudessem produzir melhor seu texto. Logo em seguida, foi solicitada a produção inicial para a qual não houve qualquer intervenção ou orientação específica, além da leitura de um conto fantástico. A avaliação diagnóstica dessa produção inicial, realizada com base no modelo didático anteriormente construído (ver seção 3.5), permitiu notar as seguintes dificuldades: os alunos desconheciam as características de um conto fantástico; as ações dos textos não se sucediam; os personagens apresentados eram característicos dos contos de fadas ou das fábulas. Além disso, o mistério – aspecto tão importante na narrativa fantástica – não estava presente nos textos. Com essas primeiras análises foram planejados quatro módulos de atividades que permitissem abordar os principais dificuldades identificadas na primeira produção dos alunos. Tivemos como foco, portanto: - analisar o que constitui um conto fantástico, pois percebemos que os alunos haviam produzido contos que não poderiam ser considerados fantásticos; 61 - abordar os aspectos estruturais da narrativa, uma vez que a produção de muitos alunos não apresentava a complicação e o clímax, se restringindo apenas à situação inicial e ao desfecho; - trabalhar a descrição do ambiente e dos personagens na construção do terror e do mistério; - Outro aspecto que consideramos relevante abordar foi a importância do narrador na construção do mistério fosse ele personagem ou observador. A sequência pode ser resumida de acordo com o Quadro nº 2: QUADRO nº2 Sequência didática e instrumentos desenvolvidos para a aprendizagem do conto fantástico Etapas Conteúdos / Objetivo Instrumentos utilizados Autor dos instrumentos Apresentação da situação Negociação do projeto, escolha do gênero e leitura de um conto fantástico --- --- Primeira produção Avaliação diagnóstica das competências já instaladas Modelo didático do gênero Professora M ó d u lo s Módulo I Elementos característicos de um conto fantástico Check-list com características do conto fantástico Alunos em equipes e coletivamente Módulo II Estrutura da narrativa Quadro com os diferentes momentos da narrativa Professora Módulo III O papel do narrador Discussão oral sobre a atuação dos personagens Alunos individualmente e, depois,coletivamente Módulo IV A descrição na construção do mistério - Quadro de referência - Ficha de avaliação - Alunos coletivamente - Professora Produção final Reescrita do conto Ficha-sintese Alunos e professora coletivamente Realização do projeto Leitura pública dos contos produzidos no “I Coquetel Literário” ---- ---- Outro procedimento do qual lançamos mão, neste trabalho, foi a realização de um estudo de caso, com base nas diversas reescritas de uma aluna da turma. Essa aluna, que é aluna da escola desde o 6º ano, tem 11 anos. Nas atividades de reescrita, ela esforçava-se para melhorar a qualidade de seu texto, levando em consideração as sugestões e apontamentos dados pelos colegas de classe. Ao longo da pesquisa-ação, ela realizou todas as atividades de reescrita e coavaliação e participou ativamente das discussões, razão pela qual foi escolhida. Já que não teríamos a possibilidade de analisar o escrito de vários alunos, escolher alguém 62 que se envolveu na tarefa nos garantia que as eventuais falhas observadas no uso dos instrumentos não pudesse ser interpretadas como desinteresse da aluna. 4.3. Descrição do corpus A pesquisa tem como corpus as produções textuais dos alunos que foram desenvolvidas durante a sequência didática sobre o ensino do gênero conto fantástico. Como o procedimento foi desenvolvido em quatro módulos, os alunos, em sua maioria, produziram cinco textos entre escrita e reescrita, contando-se a produção inicial a produção feita depois da conclusão de cada módulo e a produção final. Além dessas produções temos como corpus os questionários, os quadros de referência e os check-lists desenvolvidos em sala de aula com os alunos. Os instrumentos desenvolvidos em sala de aula – conforme apresentados no Quadro 1 acima – objetivavam promover momentos de regulação (co e autorregulação), permitindo que os alunos ao utilizá-los se apropriassem do que estava sendo objeto de aprendizagem. Os questionários, os quadros de referências e os check-lists tinham por intuito permitir momentos de autoavaliação, coavalição e, consequentemente, autorregulação da aprendizagem por serem produzidos e utilizados pelos alunos em momentos de produção escrita e análise do texto dos colegas de classe. Para isso, tanto na construção quanto no uso dos instrumentos promovemos diversas modalidades de trabalho (trabalhos em equipes, em duplas e individuais), pois consideramos que as trocas de informações, discussões coletivas ou interações em duplas contribuíam no processo de regulação da aprendizagem. Esse aspecto foi relevante para os alunos, pois eles tiveram que ouvir as opiniões apresentadas, argumentando e contra- argumentando em relação a elas. A construção de instrumentos de avaliação e aprendizagem foi uma tarefa bastante árdua dada a dificuldade de obter informações sobre o gênero visado e referências sobre instrumentos de avaliação formativa. Além disso, os instrumentos deveriam ser construídos em sala de aula com a participação ativa dos alunos. Isso exigiu que fosse feito um planejamento e procurou-se suscitar uma forte motivação para que os alunos pudessem construir e fazer uso dos instrumentos. Como já mencionado anteriormente a turma em que foi desenvolvida a pesquisa era composta por 33 alunos, o que resultou em número significativo de textos, exigindo um recorte para a análise dos dados. 63 Como a cada módulo desenvolvido tínhamos momentos de autoavaliação, coavaliação e reescrita – tarefas essenciais para regular a aprendizagem – iremos analisar em que medida os instrumentos construídos contribuíram (ou não) na produção textual dos alunos. Aliadas aos textos dos alunos, temos as anotações da pesquisadora no diário de campo. Todos esses itens serão relacionados para que juntos contribuam para o alcance da pesquisa que procura compreender em que medida os instrumentos desenvolvidos em uma sequência didática contribuem para a autorregulação da aprendizagem. 4.4. Procedimentos de análise Os dados obtidos foram analisados na perspectiva de dois eixos principais. O primeiro, que diz respeito à construção dos instrumentos, permitiu observar o modo de participação dos alunos nas atividades de elaboração coletiva ou em grupos quando eram elaborados os referidos instrumentos. Na descrição da SD, que inicia a nossa análise, procuramos evidenciar essas atitudes da turma como um todo, mas também focalizamos mais especialmente o engajamento de uma das alunas, cujas produções serão analisadas, no âmbito de um estudo de caso. O segundo eixo é relativo ao efeito dos instrumentos nas produções, no que tange aos tópicos trabalhados. Como já anunciado, nessa análise serão avaliadas as produções da aluna escolhida, de modo a perceber os efeitos dos processos de regulação possivelmente provocados pelos instrumentos. Passaremos agora à essa análise. 5 ANÁLISE DOS DADOS Neste capítulo, pretendemos mostrar como os instrumentos formativos, desenvolvidos durante a sequência didática em torno do gênero conto fantástico, participaram da regulação da aprendizagem. Conforme anunciado em 4.4., foram escolhidos dois eixos para a análise dos dados levantados em torno da construção e do uso dos instrumentos de regulação das produções textuais. O primeiro nos levou a observar o processo de construção desses instrumentos: ao descrever o desenvolvimento da sequência didática, ressaltamos o que ocorreu nos diversos momentos de elaboração e utilização dos instrumentos (fichas, listas etc) mencionados no Quadro nº1. Em um segundo momento, analisamos a evolução da produção de uma aluna, de modo a avaliar como utilizou os instrumentos e a verificar que efeito o uso desses instrumentos teve em sua produção. Observamos os textos produzidos por essa aluna desde a primeira produção até a produção final para perceber se e em que medida os instrumentos de avaliação possibilitaram o desenvolvimento de algumas competências redacionais, no que tange à escrita do conto fantástico. 5.1 Os instrumentos no desenvolvimento da sequência didática 5.1.1. Módulo I - Elementos característicos de um conto Objetivos 1. 2. Identificar um conto fantástico 3. Explorar as principais características do conto fantástico. 4. Avaliar e reescrever a produção inicial com base nessas características Foi solicitado aos alunos que formassem cinco equipes. Cada equipe recebeu quatro textos 5 para ler e analisar, com a tarefa de definir se os mesmos pertenciam ao gênero conto fantástico. Cada equipe expôs a avaliação dos textos que havia feito. Foi unanimidade que o 5 Os textos eram: O rato e o eremita; O cruzeiro do telégrafo; A velha contrabandista e a escola dos bichos (ver anexos) 65 texto “o cruzeiro do telégrafo” pertencia ao gênero fantástico. Uma equipe considerou “a escola dos bichos” como conto fantástico, afirmando que se tratava de algo irreal; no entanto outras equipes contra-argumentaram por identificarem a presença da moral da história, característica da fábula. A irrealidade também foi lembrada no conto “A velha contrabandista”, mas foi contra-argumentado que não havia elementos suficientes que definissem o texto como fantástico. Essa análise, que pareceu interessar a todos, propiciou debate e troca de ideias em sala de aula, permitindo aos alunos uma participação efetiva na melhor apreensão das características do gênero estudado. Na aula seguinte, com o mesmo objetivo de explorar as principais características do conto fantástico, foram distribuídos entre as cinco equipes quatro novos textos do gênero fantástico 6 . A principal tarefa dos alunos deveria ser buscar o que havia de comum nos textos para que fosse feita uma lista de características de um conto fantástico. Este era o primeiro instrumento produzido, que seria utilizado posteriormente na análise das primeiras produções. Para que todos participassem da atividade tive o cuidado de determinar tarefas individuais ainda que fosse um trabalho em equipe. Cada equipe possuía um coordenador (responsável pela organização); um secretário (responsável pelas anotações da lista desenvolvida); expositores (responsáveis por expor o que foi discutido pela equipe) e leitores (responsáveis pela leitura dos contos). A partir da leitura dos contos, as equipes construíram a própria lista de características. O quadro nº 2 apresenta o resultado inicial do trabalho dos grupos: QUADRO Nº 2 – Características de um conto fantástico – 1ª versão EQUIPE EQUIPE 1 EQUIPE 2 EQUIPE 3 EQUIPE 4 EQUIPE 5 LISTA PROPOSTA Monstros Mistério Terror Mitos Sonhos Sobrenatural Vingança Personagem Dragões Personagens Mundo diferente Comédia Magia Suspense Armas Coragem Terror Dragões Mistério Vozes estranhas Personagens Medo Espanto Coisas irreais Magia Assombrações Morte Fantasia Medo Morte Narrativa Monstros Magia Heróis Vilões Coisas irreais Sobrenatural Sinistra Monstros Objetos irreais Narrativa Magia Morte Fantasia Sonhos Armas Missão Violência Suspense 6 A casa sem sono; Os olhos que comiam carne; O mistério da árvore; Uma criança sonhou com uma estrela (ver anexos). 66 Á medida que as equipes apresentavam suas listas eu anotava as características no quadro. Após a apresentação da lista por todas as equipes, propus que as listas fossem discutidas, para que enfim, fosse criada uma lista única. Dessa forma, cada item foi sendo analisado e discutido e, após essas discussões foram sendo eliminados alguns itens da lista em comum acordo, pelo fato de os alunos considerarem que não fazia parte do gênero fantástico. Chamaram a atenção os itens comédia, que foi reconhecida pela própria equipe como inadequada, e coragem, proposto pela equipe 2, mas desconsiderado pelas demais. Para argumentar a favor do item “coragem” a equipe 2 defendeu que, para que ocorra a complicação e, por conseguinte, o suspense na narrativa, é necessário que alguém tenha coragem de fazer algo (entrar na casa, abrir a porta, olhar pela janela etc.), argumento que acabou sendo aceito pelas demais equipes: o termo incorporou, portanto, a lista final. Nesse momento não intervi nas discussões sobre os itens, participando do debate apenas como mediadora, fato que foi extremamente significativo, pois os alunos demonstraram grande interesse pelo debate sem que houvesse o temor pelo erro ou a busca incessante em agradar a professora. Eles estavam envolvidos na atividade de tal forma que o foco estava completamente voltado para a construção de uma lista coerente. Entretanto, vale ressaltar que o debate não foi sempre ameno, pois a equipe 4 demonstrou grande dificuldade em aceitar as críticas das outras equipes, fato que nos fez refletir sobre a dificuldade de se construir o conhecimento de forma coletiva quando existem um ambiente de competição, ainda que não fomentado pelo professor. O resultado dessas análises e debates foi a seguinte lista: QUADRO Nº 3 -– Características de um conto fantástico – 2ª versão O QUE ENCONTRAMOS EM UM CONTO FANTÁSTICO? 1. ASSOMBRAÇÕES 2. COISAS IRREAIS 1. CORAGEM 2. FANTASIA 3. MEDO 1. MISTÉRIO 2. MONSTROS 1. MORTE 2. NARRATIVA 3. PERSONAGENS 4. SINISTRO 5. SOBRENATURAL 6. SUSPENSE 7. TERROR 67 Com base nesse quadro (nº 3), formatei uma ficha de avaliação (Apêndice B) que tinha por intuito permitir aos alunos analisarem, ainda que de forma incipiente, os próprios contos e os escritos pelos colegas, no sentido de verificar se atendiam às exigências do gênero. Ressaltei que, apesar da lista conter vários itens, não necessariamente os textos tinham que apresentar todos. A princípio, os alunos realizaram uma atividade de autoavaliação a partir da ficha de avaliação. A partir da mesma ficha e dos referentes incluídos nela foi realizada uma tarefa em duplas. Cabia às duplas fazerem a troca dos textos e a avaliação dos mesmos, sugerindo modificações para que o texto avaliado se enquadrasse melhor no gênero fantástico. Nessa atividade nem sempre as sugestões dos colegas avaliadores foram consideradas relevantes e, às vezes, os produtores dos textos demonstraram dificuldades em aceitar as críticas. Interpretamos o fato considerando que estavam acostumados a escrever para agradar a professora e receber uma boa nota, mas não para ter um “igual” lendo o texto e avaliando aspectos negativos. A princípio essa falta de receptividade levou alguns alunos a ignorarem senão por completo, boa parte das sugestões. Essa reação exigiu que eu intervisse ressaltando que um texto não pode ser considerado pronto e acabado em sua primeira versão. Expus aos alunos que grandes escritores da literatura brasileira tinham o trabalho de escrever e reescrever o texto, na expectativa de torná-los melhores, assim, os alunos aceitaram melhor a tarefa e as sugestões. Após esse processo de coavaliação, cada autor reescreveu seu texto. Nesse primeiro momento, a elaboração do instrumento, que levou à depreensão em grupos e, depois, coletivamente, dos critérios de identificação do gênero, foi muito positiva para a elaboração do conhecimento: embora com falhas, os grupos conseguiram identificar os pontos principais: o narrativo (não detalhado, mas pressupondo complicações e tentativas de resolução por parte de personagens “corajosas”); elementos como o ambiente fantasmagórico com um ambiente que provoca medo no leitor; eventos que fogem ao andamento habitual do mundo (presença de assombrações, coisas irreais, fantasia). No que diz respeito à regulação, no entanto, o instrumento não pareceu satisfazer, pois seu uso suscitou reações contrárias. Pode-se fazer a hipótese de que a atividade de coavaliação, mais do que o instrumento em si, provocou rejeição por parte dos produtores, talvez por falta de hábito de submeter seus trabalhos à apreciação dos pares. 68 5.1.2 Módulo II – Estrutura da narrativa Objetivo: - Identificar os momentos da narrativa: situação inicial; complicação; desenvolvimento e desfecho, de modo a desenvolver cada um na produção. Para alcançar os objetivos desse módulo foi feita a leitura e análise dos contos “A casa sem sono” e “A moça tecelã”. Aos alunos foi solicitado que lessem individualmente os contos e identificassem os diferentes momentos da narrativa. Na leitura do conto “A moça tecelã” foi solicitado que descrevessem as sequências de ações e/ou descrições principais. Feito isso, equipes foram formadas para que comparassem a sequência de ações encontrada por cada membro do grupo e apresentassem suas considerações à turma toda, posteriormente. Os alunos não tiveram dificuldades em descrever as principais ações do texto “A moça tecelã” de Marina Colassanti. Isso possibilitou que eu abordasse a estrutura composicional da narrativa: situação inicial, complicação, desenvolvimento e desfecho. À medida que explicava esses elementos, os alunos identificavam a estrutura nos contos lidos. Em outro momento, distribuí aos alunos o texto “O mistério da casa mágica” e pedi que analisassem os momentos da narrativa, a partir do que havia sido discutido na aula anterior. Para isso, foi apresentado a eles um quadro (Apêndice C) em que deveriam identificar os momentos da narrativa e, em seguida, transcrever os trechos do conto que correspondiam aos momentos (situação inicial, complicação, clímax, desfecho). Para dar continuidade ao conteúdo deste módulo, os alunos leram suas produções individualmente para identificarem em suas narrativas a estrutura composicional, mais detidamente, a quebra da situação inicial e a complicação que, como já mencionamos, são importantes aspectos da narrativa fantástica. A principal dificuldade dessa tarefa foi identificar, nos próprios textos, o clímax da narrativa. A identificação dos momentos da narrativa na produção escrita pelos próprios alunos permitiu a percepção de falhas no esquema narrativo ou porque precisavam ser acrescentados ou mais bem desenvolvidos. Isso contribui para que os textos apresentassem uma narrativa com elementos fantásticos ou porque houve melhora na quebra da situação inicial com uma complicação mais adequada à narrativa fantástica (portas batendo, luzes apagando, aparecimento de vultos, barulhos na cozinha etc) ou porque o desfecho inquietava o leitor. O desfecho foi o momento de grande melhora na produção dos alunos, pois para a maioria dos 69 alunos uma narrativa deve sempre acabar com o final feliz porque se tinha a ideia de que a necessidade de resolução de um conflito se dá por meio da felicidade dos personagens, quando, na verdade, na narrativa fantástica o desfecho pode suscitar dúvidas no leitor ou esclarecer o mistério ora apresentado. Feita a autoavaliação, solicitamos uma coavaliação que consistia em analisar a estrutura composicional do texto do colega e, caso necessário, sugerir elementos para a reescrita do conto. Nessa tarefa de coavaliação os alunos receberam um quadro com uma coluna vazia que poderia ser preenchida com sugestões. No mesmo quadro caberia aos autores descreverem o que haviam feito com as sugestões dos colegas (Apêndice D). Isso permitiu a percepção do que não havia sido atentado pelos autores, bem como a análise das sugestões. 5.1.3 Módulo III – O papel do narrador Objetivos: Compreender a importância do narrador no desenvolvimento da narrativa; 1. Distinguir o narrador em 1ª pessoa ou 3ª pessoa 2. Introduzir a voz do outro na narrativa. Para este módulo foram selecionados os contos “Natal na Barca” de Lygia Fagundes Telles e “Testemunha Tranquila” de Stanislaw Ponte Preta. Solicitei aos alunos que durante a leitura dos contos observassem a figura do narrador, verificando se ele era interno ou externo à obra, ou seja, se ele apenas contava a história, “uma espécie de sabe-tudo”, ou se ele participava ativamente da narrativa. Após a leitura, os alunos conseguiram identificar que, como narrador-personagem que era, em ambos os textos o narrador estava vivenciando os fatos narrados. No conto “Natal na barca” observamos que o fato de o narrador ser personagem produzia uma maior aproximação com os fatos narrados. Além disso, durante o módulo pedi aos alunos que observassem como as ações eram descritas e, principalmente, como eram introduzidas as falas dos personagens. O objetivo dessa tarefa era que eles percebessem o uso do discurso direto e indireto e os efeitos que esse uso produzia em relação à ação no texto. Os alunos expuseram que no conto “Testemunha tranquila” não havia diálogo, prevalecendo a descrição do narrador-personagem; já, no conto 70 “Natal na barca”, apesar do narrador ser personagem havia diálogos e, consequentemente, o uso do discurso direto. Alguns alunos expuseram que a presença do diálogo tornava a narrativa mais interessante, pois a leitura se tornava menos cansativa, por não haver a necessidade de uma descrição excessiva. Na conclusão do módulo, realizamos as atividades de reescrita do conto, em que os alunos deveriam levar em consideração os recursos analisados nas aulas anteriores. Para este módulo não fizemos um instrumento de avaliação, porque os alunos expuseram que tal conteúdo estava sendo estudado na disciplina Redação e, por isso, não havia necessidade de fazermos uma abordagem mais sistemática. Apesar de os alunos não possuírem grande motivação para cumprir a atividade por considerá-la repetitiva, as observações que fizemos apenas oralmente contribuíram para a produção do texto. Os alunos consultavam uns aos outros e consultavam a mim nos momentos de inserção dos diálogos. 5.1.4 Módulo IV – O ambiente Objetivo: 1. Compreender a importância da descrição no desenvolvimento do mistério. Neste módulo retomamos a leitura do conto “Natal na barca” com intuito de perceber como os personagens e o ambiente eram construídos a partir da descrição. Após a leitura questionei a respeito dos personagens e como se caracterizavam. Os alunos perceberam que havia sete personagens, mas apenas eram descritos com mais detalhes o velho, a mulher e a narradora. À medida que eles iam expondo as características encontradas eu as anotava no quadro. Após as anotações, expus o que eles haviam citado e perguntei qual era a importância para o leitor do texto saber aquela característica dos personagens e como era o ambiente em que a história acontecia. A resposta dos alunos foi “tornava o texto coerente”; “para entender melhor o texto”; “para imaginar a história e fazer um filminho em nossa cabeça”. Na aula posterior fizemos a leitura do conto de Stanislaw Ponte Preta intitulado “Conto de Mistério”. O conto escolhido é um bom exemplo de como pode ser construído o mistério em uma narrativa e de como o leitor é levado a construir interpretações, pois o texto, 71 muito envolvente, provoca o leitor a imaginar explicações para o mistério até o desfecho, que o surpreende bastante. As ações narrativas foram previamente divididas e foram apresentadas em slides, no videoprojetor, para que os alunos fossem percebendo melhor os recursos usados, ao longo do texto, para a construção do mistério. Foi realizada uma leitura comentada para verificar a compreensão. O final surpreendente foi colocado no último slide para que eles não tivessem nenhuma pista sobre o fim da história. Os alunos ao lerem o final tiveram suas expectativas derrubadas e alguns até riram por conta de todo o mistério ter sido criado por causa de um quilo de feijão. Após a leitura do texto, retomei o título do conto para que eles compreendessem o propósito do autor que era de criar um tom de mistério na narrativa. A partir disso, perguntei aos alunos o que havia no texto que eles consideravam que permitia a construção do mistério e fui anotando no quadro. Eles citaram: O dinheiro O beco A casa O pacote A escuridão A voz O sujeito da barba O agricultor parecer estar com medo O silêncio A aba do paletó e o chapéu para baixo O jeito de andar O sujeito mal encarado que leva o homem para o beco A mulher O sinal feito a outro homem A pressa em chegar em casa Após a construção da lista verifiquei que eles citavam fatos, pessoas e lugares sem dizer por que traziam um tom de mistério. Assim fui indagando o que havia de misterioso nos elementos citados. Dessa forma, a lista foi reformulada: A preocupação do homem desde o momento que sai de casa até a compra do pacote; O beco mal iluminado, silencioso e deserto; O homem mal encarado; A voz baixa e suspeita; O pacote do qual não se sabia o que era; A escuridão; A casa esfumaçada e escura. No primeiro momento da atividade, a construção da lista não permitiu que os alunos identificassem os recursos que contribuíam para a construção do mistério. A refacção dessa lista, orientada por mim, objetivou levar os alunos a perceberem mais especificamente as causas da impressão de mistério: personagens não identificadas (“ele”, “um sujeito”, “era aquele”...), falta de informações (“o homem”, “um pacote”...), a adjetivação negativa (os 72 cantos são escuros, o sujeito mal-encarado, a voz cava, a rua mal iluminada, o silêncio sepulcral...), as atitudes suspeitas (senhas, sinais combinados, caminhar rente às paredes...). Tivemos como instrumento de autoavaliação neste módulo o quadro (Apêndice E) em que os alunos avaliaram a descrição dos personagens e dos ambientes verificando em que medida contribuíam para a narrativa. Posteriormente a isso tivemos a coavaliação (Apêndice F) que consistiu em analisar e sugerir levando em consideração os mesmos aspectos de descrição, mas no texto de outrem. Essa atividade foi bastante pertinente para a reescrita do conto, pois os alunos puderam verificar que a ausência de descrições compromete o objetivo do conto fantástico que é promover o medo e/ou o terror. Apesar dessa compreensão muitos alunos não conseguiram escrever uma descrição que contribuísse para a construção do mistério. As descrições feitas por eles ainda estavam nos aspectos físicos (loira, alta, magra, jovem, feliz etc). 5.1.5 Produção Final Objetivo: 2. Utilizar o referente construído coletivamente. Neste módulo, desenvolvemos uma ficha-síntese (Ver Apêndice G) que visava avaliar o que foi objeto de ensino nos módulos anteriores. Por meio dessa ficha os alunos formaram duplas e avaliaram o texto de outra dupla de aluno para que, posteriormente, essa avaliação fosse discutida. Após a discussão os alunos, finalmente, fariam a produção final do conto. De um modo geral, a maioria dos textos apresentou melhora. Os alunos pareceram geralmente aceitar melhor as reescritas. Após ter intervindo diversas vezes sobre os seus textos e os dos colegas, ainda pareciam motivados a modificar a versão final, provavelmente por se darem conta de que este esforço não era vão. Nessa tarefa consultavam frequentemente a ficha-síntese para a reescrita do conto. Os alunos que participaram ativamente da sequência didática compreendiam mais facilmente a ficha-síntese porque haviam construído os critérios contidos nela nos momentos de elaboração dos instrumentos. Esses conhecimentos construídos ao longo da sequência foram ativados a partir da ficha. Vale ressaltar que, apesar da ficha, ter como objetivo sintetizar o que havia sido estudado ela não era um instrumento 73 que poderia ser utilizado de forma atemporal e fora de contexto, por isso alguns alunos que não tinham participado de todas as atividades tiveram dificuldades em compreender o conteúdo da ficha e, consequentemente, dificuldades na escrita de um conto fantástico. O fato de trabalharmos com contos fantásticos na sequência didática foi um aspecto motivador para os alunos, porque eles estavam aprendendo o que haviam escolhido, o que facilitou bastante o processo seja nos momentos de leitura, de discussões, de escrita ou reescrita, pois havia o desejo de ter contato com a narrativa fantástica. Outro aspecto motivacional – a ideia de que as produções escritas realizadas em classe seriam socializadas em um evento na escola – tornava a tarefa mais importante e permitiu que houvesse um maior envolvimento. Esse envolvimento foi extremamente necessário no trabalho, pois o conhecimento deveria ser construído pelos alunos, a autorregulação deveria fazer parte do processo, embora os alunos não tivessem muito o hábito de reescrever seus textos, nem de discutir sua avaliação dos textos com seus autores. Assim, os alunos analisavam os textos, debatiam, discordavam entre si, se tornavam sujeitos do seu dizer para que, enfim, produzissem os instrumentos formativos, como elaboração de fichas que serviriam para a análise das próprias produções. Nesse sentido, o conhecimento não foi tratado como um produto já previamente estruturado pelo professor, a ser consumido pelo aluno, mas foi sendo constituído ao longo do processo, por sucessivas aproximações. A aula não consistia na apresentação de conceitos de forma teórica para, em seguida, serem “aplicados” aos textos lidos ou produzidos. Na verdade, o que havia era uma construção feita pelos próprios participantes, orientados pela professora, na qual os conceitos iam sendo percebidas no texto enquanto fenômenos ou recursos, não enquanto conceitos. De fato, falar de desfecho, clímax, situação inicial, quando se está percebendo a necessidade de organização da narrativa de modo a captar a atenção do leitor e despertar nele sentimentos de apreensão, dúvida ou outros, quando se está encontrando problemas para criar um texto que não seja previsível ou em que o mistério não desapareça assim que foi criado, reveste-se de significado real. Não se trata nem de longe de conceitos a serem aprendidos e sim de operações a serem realizadas no escrito para que este atinja seu objetivo junto ao público visado. Mesmo sabendo que é preciso tornar este tipo de atividades mais frequente, para que os alunos mudem radicalmente de atitude em relação à produção textual, podemos dizer que a elaboração dos instrumentos formativos contribuiu para a maior autonomia dos alunos, até 74 porque o trabalho em duplas ou em grupos os transformava em produtores do conhecimento e sujeitos da avaliação, quebrando a tradicional dependência em relação ao professor. No início da sequência didática, ficou claro que, apesar da preferência pela narrativa fantástica, muitos alunos não sabiam como produzi-la, sobretudo, tinham dificuldade de definir as características do conto fantástico, mas, a partir da construção e do uso dos instrumentos, foram paulatinamente se tornando capazes de descobrir essas características e mobilizar esse conhecimento. No entanto, é importante ressaltar que não podemos ter certeza de que toda regulação foi um resultado direto do uso dos instrumentos, mas que é razoável pensar que os instrumentos, longamente elaborados e discutidos, participaram desta regulação. 5.2 O uso dos instrumentos na produção textual: estudo de um caso Neste momento, efetuaremos o estudo de caso na produção de uma aluna, a fim de analisar, de modo mais minucioso, como o processo de regulação ocorreu. A aluna será identificada aqui com o nome fictício de Mariana. 5.2.1 A primeira produção Em sua primeira produção Mariana apresentou um texto que não se caracterizava como um conto fantástico, como se pode constatar na leitura (ver Documento 1). O que havia do universo fantástico era apenas o desfecho da narrativa. Na sua narrativa, as ações não estavam organizadas segundo a estrutura composicional de um conto. A narrativa tinha em sua situação inicial grande parte do enredo, não havia um elemento complicador da ação – que, como já afirmamos, possibilitaria o aparecimento do fantástico – e o desfecho era incoerente com as ações anteriores a ele. Ao fazer a leitura do conto, percebe-se que não há o elemento intrigante, contribuindo para a construção do mistério. A narrativa não permite que o leitor experimente a sensação de temor ou terror apontada como essencial por Lovecraft (2007). O elemento fantástico não é a motivação da narrativa nem o elemento principal, pois o que é evidenciado é o aniversário da personagem Marta. 75 Entretanto, é importante ressaltar que já na primeira produção há uma pequena compreensão de que na escrita de um conto fantástico devem ser inseridos elementos sobrenaturais que surgem a partir de situações cotidianas, tal qual defende Rodrigues (1988). A boneca que fora presente de aniversário de Marta é assombrada; há uma maldição advinda dela. DOCUMENTO 1 Produção inicial de Mariana Outro elemento a ser considerado no conto de Mariana é o conto ser desencadeado a partir de única ação – o aniversário, além de comportar poucos personagens. 77 5.2.2 Atividades de autovaliação e coavaliação A partir do instrumento desenvolvido no primeiro módulo, a aluna avaliou seu próprio texto por meio de uma ficha individual (ver Documento 2). Tal ficha tinha por objetivo permitir aos alunos verificar no texto a presença ou não de características do conto fantástico considerando as leituras e as análises realizadas na sala de aula e, caso negativo, quais as possíveis soluções para permitir ao conto ter tais características. DOCUMENTO 2 Ficha de autoavaliação 78 Nessa atividade, Mariana considerou que o seu texto apresentava mistério, terror, personagens, coisas irreais, morte, narrativa e sinistro como características pertencentes ao conto fantástico. Em sua análise constatou que em seu texto não havia monstros, coragem, medo, assombrações, nem fantasia, apresentando como soluções possíveis inserir esses elementos no texto. A atividade de autoavaliação, por meio da ficha, permitiu a reflexão, ainda que inicial, a respeito do texto produzido. Consideramos inicial por concluirmos que a aluna compreendeu a atividade como verificação da presença/ausência de todas as características, no entanto no quadro – soluções possíveis – a expectativa não era que os alunos simplesmente tivessem como solução a inserção das características ausentes, mas refletissem sobre o que seria inserido, quando e onde seria adequado e qual estratégia utilizariam. Essa compreensão também levou-me a questionar se o instrumento utilizado estava sendo suficientemente claro. A conclusão foi que, embora o instrumento não fosse totalmente adequado, apresentado sob forma de uma lista sem maiores explicações, os próprios alunos, por não fazerem uso de instrumentos formativos no seu cotidiano, não sabiam como proceder e, a princípio, não compreendiam de que forma o uso da ficha poderia contribuir na construção da narrativa, o que motivou uma explicação suplementar por minha parte. Congregado a isso tivemos a atividade de coavaliação do texto (ver Documento 3). Nela se considerou que no texto de Mariana não havia suspense, mistério, terror, monstros, medo, assombrações, fantasia e sinistro, mas que havia elementos sobrenaturais, personagens, morte, narrativa e parcialmente a coragem. As soluções propostos pela coavaliadora foi que, para que houvesse suspense, a protagonista – Marta – deveria ver a boneca matando seus pais; para que houvesse mistério, Marta deveria ter seguido a boneca e ficar aterrorizada diante do que fazia a boneca, mas demonstrar coragem em tentar impedir a boneca de agir. Quanto aos itens monstros, assombrações e fantasia, a coavaliadora considerou que não era necessário para a narrativa criada. 79 DOCUMENTO 3 Ficha de coavaliação de Mariana Após receber a opinião das colegas, Mariana procurou a professora para questionar as sugestões feitas por elas, pois considerava que não eram pertinentes. A aluna compreendeu, posteriormente, que deveria analisar as sugestões dos colegas. Assim, em suas atividades de reescritas ficou nítida a incorporação de determinadas sugestões e ignorou outras. Essa tomada de decisão só é possível quando há apropriação de critérios, 80 conhecimentos produzidos. A própria discussão com o coavaliador a respeito das sugestões feitas por ele participa dessa apropriação. A partir das atividades de autoavaliação e coavaliação, a aluna preencheu a ficha de acompanhamento da reescrita do conto com as sugestões feitas pela colega de classe e o que havia feito com elas (ver Documento 4). Assim, a sua nova versão incorporou algumas das sugestões dadas, o que tornou seu texto mais próximo de um conto fantástico. Essa tomada de consciência do que é ideal e o que se faz – produzida pelo uso dos instrumentos de regulação. DOCUMENTO 4 Ficha de acompanhamento da reescrita do conto de Mariana DOCUMENTO 5 Reescrita 1 No que se refere aos outros conteúdos abordados nos módulos seguintes, Mariana ainda levou em consideração as sugestões propostas nas atividades de coavaliação e fez uso dos instrumentos de regulação desenvolvidos nesses momentos. No entanto, até o Módulo III, Mariana não havia realizado grandes modificações no seu texto, como se pode constatar no Documento 5 O que ela havia feito eram inserções de aspectos característicos de um conto fantástico, mas sua narrativa ainda não possuía uma sequência de ações de forma coerente, não era apresentado ao leitor um ambiente e personagens que trouxessem a ideia de fantástico. Não havia um tom de mistério ou terror na narrativa, a aluna não havia compreendido que o elemento fantástico não era um mero elemento presente na narrativa, mas o principal. 82 DOCUMENTO 5 Reescrita 2 de Mariana Mariana – a partir do momento que compreendeu a importância dos instrumentos – sempre analisou seriamente as sugestões propostas pelos seus colegas, mas uma delas era que deveria inserir mais falas dos personagens. Ela contra-argumentou (ver Documento 6) que em seu conto havia um narrador-observador, o que não exigia com tanta frequência a presença de diálogos, ignorando, assim, a sugestão, mas justificando a recusa de forma coerente. 83 DOCUMENTO Nº 6 Reações de Mariana às sugestões de sua coavaliadora A produção final da aluna mostra uma mudança significativa no conto. Como já citado anteriormente, antes da produção final os alunos deveriam realizar uma autovaliação e participar de uma atividade de coavaliação por meio de uma Ficha de Avaliação (verDocumento 7). Mariana considerou que o seu texto não era um conto fantástico – fato que questionei, pois o coavaliador de seu texto havia considerado como conto fantástico. A aluna explicou que, na verdade, tinha marcado equivocadamente. Na ficha ficou considerado que o texto apresentado por ela descrevia parcialmente os personagens e o espaço o que impossibilitava que a história se tornasse intrigante e misteriosa. A partir do que foi exposto na ficha de avaliação, Mariana fez sua produção final. 84 DOCUMENTO 7 Ficha-síntese 85 5.2.3 Produção final Quando confrontamos a produção inicial com a final (ver Documento 8) percebemos um claro progresso no texto. Mariana descreve a protagonista da história e situa o leitor em um ambiente que o prepara para ter sensações de medo. Para a descrição do ambiente, a aluna faz uso de elementos (casa estranha; boneca amaldiçoada, sexta-feira 13) que trazem o mistério para o conto. Outro fato a ser destacado é a presença de uma provável inquietação com a boneca, pois o leitor deixa-se influenciar pela ideia de que há algo de errado com a boneca, justamente por ela estar em um lugar inóspito, abandonado, como um porão. A descrição das ações acontece de forma coerente, o desfecho da narrativa faz sentido ao leitor, devido às pistas dadas anteriormente e, ao mesmo tempo, é surpreendente por não trazer todas as respostas, algo característico do conto fantástico. É claro, que muitos problemas ainda podem ser observados no texto final. Alguns por não terem sido objetos de ensino, outros pela falta de elementos que foram abordados na Sequência Didática e outros, provavelmente, por falhas dos próprios instrumentos utilizados. Uma das hipóteses que permitem explicar a permanência de alguns problemas pode ser que, em sua elaboração, esses instrumentos se limitaram em apontar critérios e não dedicaram espaço suficiente para os indicadores dos critérios em questão. Outra ficha de trabalho poderia ter sido construída com os alunos, a fim que expressassem, com suas palavras, tais indicadores, o que certamente teria levado a um grau maior de apropriação dos recursos linguísticos que permitiam melhorar o texto. Outra hipótese é que este tipo de trabalho exige continuação: é preciso escrever e reescrever, analisar muitos textos, de gêneros diferentes, para ir se familiarizando com os processos de elaboração e uso dos instrumentos, o que não era o caso nem de Mariana, nem de seus colegas. Mas de um modo geral, percebe-se um melhor domínio do gênero. DOCUMENTO 8 Produção final de Mariana CONCLUSÃO Dentre os objetivos do ensino de língua portuguesa está o de possibilitar que os alunos atuem socialmente por meio da escrita. Nesse sentido, não é aceitável que a escrita na escola ainda seja abordada de forma mecânica e periférica tendo um caráter artificial e inexpressivo, desvinculada de qualquer contexto comunicativo. Ao professor, então, é dada a responsabilidade de ensinar de forma a capacitar os alunos a fazerem usos da língua de forma criativa, clara e elaborada de acordo com os propósitos interacionais. Na tentativa de encontrar caminhos teórico-metodológicos que viabilizassem um fazer educativo significativo para a aprendizagem da escrita dos meus alunos e, com isso, me permitisse contribuir para um melhor conhecimento dos processos de regulação, ao refletir sobre a minha prática e aprimorá-la, nasceu a pesquisa-ação que acaba de ser analisada. Tendo em vista a realização de um evento “literário” para a comunidade escolar, foi criada uma sequência didática cujo objetivo era desenvolver competências no que se refere à produção escrita do gênero conto fantástico. O estudo do gênero conto fantástico foi um desafio tanto para a turma quanto para a professora. Para a professora, porque não havia muitos teóricos da literatura que abordavam o gênero e as perspectivas dos teóricos encontrados eram bastante distintas, exigindo que fossem lidos variados contos para, enfim, definir o que seria fantástico. Para os alunos, foi desafiadora porque escrever contos fantásticos – um gênero literário – quando não se tem grandes habilidades na composição de textos é uma atividade complexa que, no caso específico, exigiu escrita, reescrita, debates, argumentações. A análise da ação desenvolvida em sala de aula teve como base a compreensão conjugada dos seguintes suportes teóricos: - o sujeito da aprendizagem, tal qual é preconizado na pedagogia de projetos, como aquele a quem as atividades desenvolvidas em sala garantem uma participação ativa no processo de construção do conhecimento; - a perspectiva formativa de avaliação em língua, que toma como objeto de aprendizagem a elaboração e apropriação dos critérios de análise dos textos, como fator primordial no processo de regulação da aprendizagem da produção textual; - a perspectiva interacional do ensino/aprendizagem do Português, que valoriza procedimentos metodológicos nos quais a reflexão linguístico-linguageira parte do uso da 88 língua e retorna a ela, de modo a levar em consideração as dimensões discursivas, textuais e enunciativas presentes em toda interação. Essa análise nos levou a evidenciar diversos aspectos que destacaremos a seguir: quanto à atividade escolar de produção escrita; quanto aos instrumentos formativos – objetos de reflexão maiores deste trabalho – e seu impacto na competência dos aprendentes; finalmente, quanto ao projeto de comunicação em si. No que diz respeito à aprendizagem da produção textual, observamos um ganho essencial: o da motivação dos alunos. A produção de textos estava entre as tarefas que eles menos apreciavam, pois para a maioria deles tais atividades não despertavam o menor interesse. Na verdade, estavam acostumados a escrever na e para a escola, apenas para realizar uma atividade em que seria atribuída nota, ou seja, escreviam porque “valia ponto”, mas não se preocupavam em aprender realmente e, muito menos, em avaliar o que eles ou os colegas escreviam. Isso era tarefa do professor, no contrato didático a que estavam acostumados. Os resultados da pesquisa comprovam o que muitos defensores da abordagem interacional de ensino da língua afirmam: a produção escrita, quando realizada por meio de propostas de que possuam objetivos claros e sejam inscritas em determinada situação de comunicação, se torna mais eficiente e pertinente, embora não seja milagrosae não transforme as capacidades dos aprendentes de um dia para o outro. Os alunos ficaram bastante motivados pelo projeto de socialização da escrita para a comunidade escolar, projeto esse que constituía uma finalidade real e, com isso, se envolveram em atividades de aprendizagem que não eram tão diferentes daqueles que sempre realizam nos textos em sala de aula (observar, localizar, identificar, classificar). No entanto, as tarefas a que passaram a se submeter de bom grado correspondiam, dessa vez, à busca de soluções para problemas concretos de escrita com os quais tinham se defrontado e que eles tinham identificados eles mesmos. No início da sequência didática os alunos demonstraram certa resistência às atividades de reescrita, pois para a maioria deles, uma única escrita com pequenas correções baseada no que estava sendo ensinado já era o suficiente. No entanto, à medida que íamos avançando na sequência didática eles percebiam a importância de um trabalho mais sistemático sobre seu texto. A grande maioria deles acabou, como Mariana, reescrevendo completamente seu conto, após ter tomado consciência das dificuldades que levantava. Poderiam limitar-se a retocar os textos, de modo a contentar a professora, mas, percebeu-se 89 que já não estavam tão preocupados com o ritual escolar e sim com o resultado a ser apresentado publicamente: não só reescreveram o texto como se envolveram nos momentos de leitura e análise dos diversos contos propostos. Dessa forma, atentaram para os aspectos inerentes ao conto fantástico, fizeram leituras mais atentas dos contos de grandes autores e dos que haviam sido produzidos por seus colegas de classe, passando a valorizar os momentos de elaboração dos instrumentos formativos. Em relação a esses instrumentos e a seu efeito, também foram patentes os benefícios do miniprojeto aprovado. Olhando para o lado da apropriação dos critérios, percebe-se que o trabalho proposto parece ter tido maior alcance do que a qualidade dos instrumentos poderiam deixar pensar. A elaboração dos instrumentos em grupos obrigou os alunos, em diversos momentos, a discutir, debater, argumentar, para conseguir chegar a uma formulação coletiva do instrumento. Essas elaborações certamente levaram os alunos a afinar mais suas representações sobre o gênero. Tanto que, quando passaram a avaliar a produção de outros alunos, com base na fiche produzida inicialmente, notamos, como nas coavaliadoras de Mariana, por exemplo, que suas recomendações foram muito além da ficha utilizada, mostrando que interpretavam de modo mais sofisticado as características ali elencadas: percebiam que não se tratava de características obrigatórias, sugeriam modificações que teriam impacto sobre a estrutura narrativa, reequilibrando suas diferentes fases etc. O trabalho de elaboração dos descritores dos critérios, ainda imperfeito na ficha, parece ter sido realizado, pelo menos em parte, mentalmente pelos alunos. Olhando para o lado da regulação, que dependia de uma autoavaliação correta das produções, também percebemos resultados muito positivos. A construção dos instrumentos tornou os alunos mais autônomos, mais propensos a se considerar capazes de enfrentarem outros desafios textuais, embora a dependência de ajudas externas, principalmente dos professores, fosse uma das características mais acentuada da turma quando iniciou o projeto. As atividades de autoavaliação produzidas pelos instrumentos formativos possibilitaram aos alunos a autorregulação nas suas produções, como percebemos no estudo de caso. No uso dos instrumentos os alunos iam percebendo problemas estruturais, de escolhas vocabulares, de ambientação das narrativas e a identificação desses problemas permitia a busca por soluções. As situações de interação em duplas também possibilitaram trocas preciosas de informações, uma vez que o parceiro coavaliador do texto constituia em leitor da produção de textos de outro e podia contribuir com sugestões para a escrita do conto. 90 Essa capacidade de avaliar o próprio texto e o texto de outrem tem uma importante função na aprendizagem por permitir aos alunos identificar, nos textos concretos, recursos linguísticos e textuais com os quaispossam desenvolver suas próprias capacidades de escrita. Constatou-se que esse tipo de trabalho, com instrumentos formativos diversificados, favoreceu a reflexão e análise e estimulou a busca autônoma de soluções e a apropriação dos critérios. Os instrumentos formativos foram efetivamente utilizados pelos alunos, nos processos de reescrita, principalmente, por aqueles que tinham sugestões do coavaliador. A situação de troca de opinião sobre o texto exigia que os alunos consultassem os instrumentos, a fim de verificar se a sugestão estava adequada ao texto e como poderia ser inserida. Dentre os instrumentos, o mais utilizado pelos alunos foi o último (a ficha-síntese). Consideramos que esse fato deve-se ao instrumento ser o que abarcava melhor os critérios relativos ao conto fantástico, mesmo que imperfeitamente, como já comentamos. Ainda que em nossa pesquisa alguns instrumentos sejam considerados falhos em relação ao que tinham se proposto, foi notória a melhora nos textos dos alunos, o que pode nos levar a supor que a prática sistemática de elaboração e uso de instrumentos de avaliação dos textos traria grandes benefícios em médio prazo. Essa melhora não pode ser atribuída somente aos instrumentos em si, mas certamente a reflexão que eles exigiam era o ponto alto do processo. Outro aspecto relevante, que podemos observar nos instrumentos elaborados,aofinal desta análise, é que não havia uma relação sistemática dos mesmos com o modelo didático, que, por diversos motivos, havia sido construído apenas parcialmente no início da pesquisa- ação. A falta de relação orgânica entre ambos fez com que os alunos nem sempre tenham sido orientados, na confecção dos instrumentos, no sentido de encontrarem qualidades (critérios e seus descritores) que o modelo didático já apontava. Este ponto, da coerência entre o modelo didático e os instrumentos, aliás, no parece ser uma pista de reflexão importante para investigações futuras. Apesar disso, a pesquisa permite-nos concluir que os instrumentos formativos podem contribuir significativamente para a regulação efetiva das produções textuais por permitirem aos próprios alunos se debruçarem na reflexão, porém vindo da ação e voltando para ela, em torno da escrita do conto fantástico. Isso lhe possibilitou intervirem em seus textos de forma mais madura. 91 O último aspecto a ser destacado é o da realização do projeto em si que, para os alunos, estava dando significado a todo esse esforço de melhora dos textos. Embora, pelos motivos institucionais já apontados, a experiência tenha demorado tempo demais, a nosso ver, a realização de um evento literário em que eles divulgariam seus textos como autores sustentou a motivação dos participantes. O I Coquetel Literário da escola acabou sendo um franco sucesso. Duas mães, que tinham pedido para falar, naquele evento, ressaltaram a motivação dos filhos e o fato de que haviam constatado uma sensível melhora no texto deles. A coordenação da escola também considerou o processo bastante positivo, o que nos deixou abertura para continuar a realizar este tipo de trabalho. Ao término da análise desta experiência, ainda incipiente, tanto para a professora quanto para os alunos envolvidos na pesquisa-ação, aparece que a atividade cognitiva e metacognitiva dos alunos são as grandes beneficiárias dos processos de elaboração e utilização dos instrumentos formativos, o que sustenta o desenvolvimento de suas competências textuais e discursivas. Com isso, certamente, conseguimos caminhar mais um pouco em direção a nosso sonho de desenvolver com nossos alunos um trabalho, em Língua Portuguesa, que fizesse mais sentido para sua educação e para sua vida. REFERÊNCIAS ABRANTES, Paulo. Trabalho de projetos e aprendizagem da matemática. In: Avaliação e EducaçãoMatemática, RJ:MEM/USU – GEPEM, 1995. ANDRÉ, Marli E. D. A. Etnografia da prática escolar. Campinas, SP: Papirus, 1995. ANTUNES, Irandé. Aula de Português: Encontro e Interação. São Paulo: Parábola, 2003. _________. Língua, texto e ensino: outra escola é possível. São Paulo: Parábola, 2009. 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Acendeu um charutinho. - É você que estuda medicina? - perguntou soprando a fumaça na minha direção. - Estudo direito. Medicina é ela. A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho. Vou mostrar o quarto, fica no sótão - disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. - O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles. Minha prima voltou-se: - Um caixote de ossos? A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada. - Mas que ossos tão miudinhos! São de criança? - Ele disse que eram de adulto. De um anão. - De um anão? é mesmo, a gente vê que já estão formados... Mas que maravilha, é raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí - admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal: ―Tão perfeito, todos os dentinhos!‖. - Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge. Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada. Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa. - Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele. Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria. - De onde vem esse cheiro? - perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. - Você não está sentindo um cheiro meio ardido? - É de bolor. A casa inteira cheira assim - ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama. No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho. - Que é que você está fazendo aí? - perguntei. - Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo? Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar. - São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida - estranhei. - Só de ida. Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama. - Está debaixo dela - disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico - Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool. - Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora. - Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vem fuçar aqui. Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho. - Esquisito. Muito esquisito. - O quê? - Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui? - Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão. Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho. Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, a procura delas. Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto. Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei: - E as formigas? - Até agora, nenhuma. - Você varreu as mortas? Ela ficou me olhando. - Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu? - Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo... Mas então quem?! Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava. - Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo. Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto, mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica. - Elas voltaram. - Quem? - As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta. - E os ossos? Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo. -Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão...estão se organizando. - Como, organizando? Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol. - Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e... Venha ver! - Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso? Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia. Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro. - Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia - ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso. - Estou com medo. Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir. - Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam? Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga. - Voltaram - ela disse. Apertei entre as mãos a cabeça dolorida. - Estão aí? Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz. Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava... - Que foi? Fala depressa, o que foi? Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama. - Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui. - Você está falando sério? - Vamos embora, já arrumei as malas. A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados. - Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim? - Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta. - E para onde a gente vai? - Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto. Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito? No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra. A ESCOLA DOS BICHOS Rosana Rizzutti Conta-se que vários bichos decidiram fundar uma escola. Para isso reuniram-se e começaram a escolher as disciplinas. O Pássaro insistiu para que houvesse aulas de vôo. O Esquilo achou que a subida perpendicular em árvores era fundamental. E o coelho queria de qualquer jeito que a corrida fosse incluída. E assim foi feito, incluíram tudo, mas… cometeram um grande erro. Insistiram para que todos os bichos praticassem todos os cursos oferecidos. O Coelho foi magnífico na corrida, ninguém corria como ele. Mas queriam ensiná-lo a voar. Colocaram-no numa árvore e disseram: ―Voa, Coelho‖. Ele saltou lá de cima e ―pluft‖… coitadinho! Quebrou as pernas. Coelho não aprendeu a voar e acabou sem poder correr também. Pássaro voava como nenhum outro, mas o obrigaram a cavar buracos como uma topeira. Quebrou o bico e as asas, e depois não conseguia voar tão bem, e nem mais cavar buracos. Sabe de uma coisa? Todos nós somos diferentes uns dos outros e cada um tem uma ou mais qualidades próprias dadas por Deus. Não podemos exigir ou forçar para que as outras pessoas sejamparecidas conosco ou tenham nossas qualidades. Se assim agirmos, acabaremos fazendo com que elas sofram, e no final, elas poderão não ser o que queríamos que fossem e ainda pior, elas poderão não mais fazer o que faziam bem feito. RESPEITAR AS DIFERENÇAS É AMAR AS PESSOAS COMO ELAS SÃO A velha contrabandista Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da Alfândega – tudo malandro velho – começou a desconfiar da velhinha. Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal perguntou assim a ela: - Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco? A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restavam e mais os outros, que adquirira no odontólogo, e respondeu: - É areia! Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás. Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com muamba, dentro daquele saco maldito. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia. Diz que foi aí que o fiscal se ―chateou‖: - Olha vovozinha, eu sou fiscal de Alfândega com quarenta anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista. - Mas no saco só tem areia! – insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs: - Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias? - O senhor promete que não ―espaia‖? – quis saber a velhinha. - Juro – respondeu o fiscal. - É lambreta. Stanislaw Ponte Preta. O rato e o eremita Autor: Narayna VIVIA. NO BOSQUE DA PENITÊNCIA CONSAGRADO ao grande Gautama, um eremita chamado Maátapas. Um dia, encontrou esse eremita um ratinho que ia sendo carregado por um corvo. O eremita, compassivo por natureza, alimentou-o com grãos de arroz e passou a criá-lo. Até o dia em que surgiu um gato correndo atrás do rato para comê-lo. Ao vê-lo, correu o rato a se esconder no colo do eremita. Disse então o eremita: — Rato, transforma-te tu em gato. Transformado em gato, porém, fugia o animal ao ver um cão. Disse então o eremita: — Se tens medo do cão; transforma-te tu também em cão. Transformado em cão, porém, tinha o animal medo do tigre. Transformou então o eremita o cão em tigre. Para o eremita, entretanto, aquele tigre era tido como rato. Assim também era para os que viam o eremita e o tigre, que diziam: — Foi este eremita que transformou o rato em tigre. Ouvindo tais palavras, pensou um dia o tigre: — Enquanto vida tiver este eremita, vida terá a infamante história da minha forma primitiva. Depois de assim refletir, correu o tigre para matar o eremita. Percebendo-lhe a intenção, disse então o eremita: — Retorna tu a tua forma de rato. E assim se fez. Tradução de Celina Portocarrero O CRUZEIRO DO TELÉGRAFO Todo bairro suburbano que se preze tem o seu ―cruzeiro‖ – grande cruz, geralmente de madeira, colocada em um ponto estratégico do bairro e no qual os moradores acendem velas ou fazem orações em homenagens aos seus mortos, aos seus santos protetores ou, finalmente, às almas. Via de regra, tais cruzeiros têm a fama de serem locais de assombrações e aparições fantásticas. Entre muitos outros bairros, o telégrafo Sem fio tem também o seu cruzeiro, localizado na rua Curuçá, em frente ao Grupo Escolar Princesa Izabel. Tal cruzeiro foi colocado pelos padres da Igreja de São Raimundo, como marco dos festejos das santas missões, no ano de 1958. E até hoje está lá. Conta-nos Luis Figueiredo, antigo morador do bairro, que certa vez o senhor José, residente na Rua Curuçá, próximo à passagem Goiabal, voltava cerca de 23:30 horas para sua residência. Vinha de seu emprego, onde fizera algumas horas extras. Pensando nos cruzeirinhos a mais a receber, cantarolava uma canção. José era um homem sóbrio: não bebia e dificilmente participava das rodas que se faziam nos cantos para discutir futebol. Chefe de numerosa família vivia arquitetando mil e uma maneiras de complementar o parco salário, que mal dava para mitigar a fome de seus familiares. Na impossibilidade de conseguir outros ―bicos‖, trabalhava horas extras na firma, onde, embora não fosse muito o que ganharia, era, contudo, infalível. - Mais vale o pouco certo do que o muito duvidoso, pensava. Ao aproximar-se de sua casa, divisou um vulto perto do cruzeiro. Como na época ladrões andavam pelas imediações, José resolveu verificar o que o indivíduo fazia ali, já próximo ao meio da noite. Conhecido por todos e a todos conhecendo se fosse algum estranho daria o alarme. Ao chegar perto, notou o traje diferente: batina> Despreocupado, avançou para saldar o sacerdote. Porém, ao aproximar-se ainda mais, não quis acreditar no que seus olhos viam. Esfregou-os. Olhou de novo. Continuava a ver a mesma coisa> calafrios. Suores. - Meu Deus, não é possível. E, dizendo isto, José mais uma vez esfregou os olhos e olhou. No relógio, meia-noite! De pé, junto ao cruzeiro, estava o sacerdote, batina negra, e neste instante ajoelhava- se. Apenas – e muito simplesmente – o Padre não tinha cabeça. Lá estava o seu corpo, seu pescoço e no lugar da cabeça, o vácuo. José não teve mais dúvidas desta vez. Saiu em desabalada carreira, meteu o pé na porta de sua casa, colocando-a abaixo. Aos seus familiares narrou o fato, justificando o gesto pelo pavor que o acometera. MONTEIRO, Walcyr. Visagens e Assombrações de Belém. A casa „sem sono‟ A rua, em alameda, toda de prédios novos, com a montanha ao fundo, alta e frondosa, agradou-me logo de entrada. Aprazível e quieta com seus jardins cuidados, fresca e trescalando docemente as silvas, realizava o meu ideal de serenidade bucólica: silêncio para o espírito e recreio para os olhos fatigados, como se achavam, dos rumores atordoantes da cidade da vista das avenidas e ruas, com o casario denso, sempre atravancadas de veículos e transeuntes. Ali eram chilreios de pássaros, ziar de insetos, de longe sons dormentes de pianos. Àquela hora não havia viv’alma. Os meus passos soavam estrepitosos. Guiado pelo anúncio fui ter à casa. A primeira impressão foi de espanto. Através do gradil escalavrado avistei o terreno que fora, outrora, jardim. Todo era mato, de erva alta, recortado por uma vereda sinuosa. Mamoneiros, carregados de frutos híspidos, fechavam uma das passagens laterais. Os muros, cobertos de trepadeiras selvagens, tinham o aspecto intonso de altas sebes. Abri o portão e foi um trabalho para levá-lo dentro, escarvando a terra. Caminhando era-me preciso parar, por vezes, para afastar galharias espinhosas, ramos; o solo úmido era balofo; em certos meus pés topavam em bordos de antigos canteiros afogados pela vegetação agreste. A casa, cuja pintura externa descascava, era triste, com a varada enxadrezada em ladrilhos, alguns já deslocados, oscilando ao piso. Para abrir a porta tive de forçar a chave, martirizando os dedos. A muito custo consegui dar volta e, com forte impulso, fazendo crepitantemente a madeira, abri-a, recebendo no rosto úmido bafio, hálito nidoroso da casa despertada. Que esforço para abrir as janelas, todas perras! Conseguindo luz bastante para o exame, pus- me a percorrer os aposentos amplos. O soalho começava a apodrecer em certos pontos, fendendo-se em frinchas; a barra cobria-se de tisne de umidade; manchas esparralhavam-se nas paredes. Toda a casa tresandava a bolor. Entretanto, com o sol que entrava pelas janelas, que eu conseguira abrir, pareceu-me alegre. Pus-me a notar a construção — havia até capricho: o salão nobre, pintado a óleo, com floreios de estuque, era rico; a sala de jantar, com o teto de madeira envernizada, frisa para cerâmica e louça, soalho encerado; ampla cozinha, banheiro magnífico. Os dormitórios vastos e arejados e, embaixo, dois salões nos quais logo imaginei instalar-me, trabalhando em um e arranjando em outro a biblioteca. Ainda que tal ―tapera‖, para tornar-se habitável, exigisse obras de certa monta, decidi-me falar ao proprietário, propondo-lhe um acordo razoável. O ponto agradava-me e os cômodos satisfaziam-me. Com algumas reformas e substituição de madeiramento, pintura, papel novo em certas peças, e refeito o jardim, ficaria um paraíso. No terreno ao fundo, que percorri, espantando lagartos, havia árvores pomareiras, algumas em flor. Uma delícia para as crianças. Ao tornar com a chave ao taverneiro da esquina, informei-me das condições do aluguel e da residência do proprietário. Junto ao poste, à espera do bonde, compunha eu mentalmente os arranjos da casa, quando ouvi meu nome em exclamação alegre. Voltei-me. Era o Dimas, antigo colega de Academia, que abandonara o curso no terceiro ano para dedicar-se ao comércio, onde chegara a constituir uma das mais importantes firmas, decaindo, porém, com sucessivos desastres durante a guerra. Em todo o caso sempre lhe ficara o bastante para viver folgado, e até com alguma representação. — Tu por aqui, no subúrbio! Que isto? Amore…? — Casa, meu amigo, suspirei. Ando à procura de casa. A minha está a cair e o senhorio, todos os meses, aumenta-me uns tantos por cento. Demais, quero justamente o que me oferece esta rua — largueza e silêncio. Achei aqui uma casa, que me convém. Está um pouco estragada, mas com alguns consertos ficará um brinco. Dimas recuou encarando-me d’olhos muito abertos, com tal espanto na fisionomia que, deveras, me impressionou. — Quê! Naquela casa! tu!? — Então? Que tem? — Que tem? Ora essa! Bem se vê que não frequenta o bairro. Sabes como é conhecida aquela casa, em que morei uma semana, uma semana! Entendes? E fincou o indicador. É conhecida pelo nome de casa ―sem sono‖. Nunca ouviste falar? — Não. — Pois os jornais já trataram do caso, até com fotografias. — Não vi. Mas casa ―sem sono‖ por quê? Assombramentos, fantasma…? — Não. Apenas isto: ali não se dorme. — Como não se dorme!? — É como te digo. O sono não entra naquela casa. Passei uma semana. Pois meu caro, nem eu, nem pessoa alguma da família, até animais, ninguém conseguiu pregar o olho. — Por quê? — Sei lá. Dizem que é a ―sina‖ da casa. — Lenda. — Lenda ou não, a verdade é que eu posso dar testemunho do fato. Essa casa pertencia a uma viúva doente, foi, por ela, hipoteca a um tal Silva, tipo de avarento que, segundo é voz pública, fez a fortuna à custa de sangue e lágrimas. Esperto e trapaceiro, como todos os de sua laia, enredou a pobre senhora em tais dificuldades que acabou ficando-lhe com a propriedade. Começou, então, o fadario do prédio. O primeiro que o habitou foi um engenheiro da Central. Não esteve ali quinze dias. Vieram outros. O que mais se demorou não chegou a completar um mês. O último fui eu. Resisti uma semana. Mudei-me há quase dois anos e ela está vazia até hoje. — Mas, afinal, que viste? Por que te mudaste? — Ora, porque… Porque ninguém dormia. Passávamos as noites em claro. A principio atribuímos ao cansaço dos trabalhos de mudança e arranjos da casa. Passaram-se dias e a insônia persistiu. Recorremos a calmantes, consultamos médicos. Nada! Ah! meu amigo, não imaginas o suplício de toda uma semana de vigília, todos acordados, desde minha mãe, com seus oitentas anos, a andarejar arrastadamente pela casa, até o meu caçula de oito meses, resmungando, choramingando no berço. Os próprios animais — era o cão no jardim farejando os canteiros, a uivar lamentosamente, era os pássaros nas gaiolas. Às vezes deitávamo-nos, com a casa toda apagada. De repente ouvíamos passos, vislumbrávamos claridade: era alguém que levantara, acendera a luz e andava à toa, a fazer sono. Pouco depois estavam todos de pé e víamos nascer a manhã. Sabes lá que é isso! Sentir a gente o sono em volta de si, todas as casa sem silêncio, a rua inteira quieta, a natureza adormecida e nós… É horrível! Podes compreender que, em noite plena, escura, haja algum ponto iluminado pelo sol? pois era a impressão que tínhamos, impressão de que o dia não nos deixava, sempre conosco, sempre! Anoitecia. Pouco a pouco ia-se fazendo o silêncio, fechavam-se as casas. De quando em quando um rumo longínquo e as vozes noturnas: coaxos de sapos, latidos de cães, até o primeiro cantar dos galos, o amiudar dos poleiros, os ruídos espertos da madrugada, a claridade, o sol… E nós com a luz lívida das lâmpadas, acordados, olhando-nos sem compreender aquele desvelar que nos consumia. Ao cabo de seis dias parecíamos espectros. Andávamos aos cambaleios, tontos, atordoados, mas sem sono. Minha mãe que descobriu o mistério e, uma manhã, denunciou-o: ―O sono não entra nesta casa. Não entra. É alguma maldição‖. Ainda insisti dois dias. Nada. Então veio o pavor. Uma tarde — e foi a última — eu fui para a casa de um cunhado. — E dormiste? — Se dormi!? Dormimos todos, quase vinte horas, e, se não nos despertassem, creio que teríamos enfiado dois dias e duas noites. Estávamos atrasadíssimos. Só lá tornei para fazer a mudança. E eis porque uma casa como aquela, neste tempo, nesta rua, e por preço relativamente módico, está vazia há dois anos. É que todos a conhecem, é a casa ―sem sono‖, one não se dorme. — E a que atribuis essa história? — Sei lá! Essas coisas não se explicam. Olha o bonde. Vamos. É pena que não venha ser meu vizinho, mas por tal preço, não quero. Isso não! Sem sono não se vive e ali nunca o terias, juro! Coelho Neto 1923 CONTO “FLOR, TELEFONE, MOÇA‖ (Carlos Drummond de Andrade) Não, não é conto. Sou apenas um sujeito que escuta algumas vezes, que outras não escuta, e vai passando. Naquele dia escutei, certamente porque era a amiga quem falava, e é doce ouvir os amigos, ainda quando não falem, porque amigo tem o dom de se fazer compreender até sem sinais. Até sem olhos. Falava-se de cemitérios? De telefones? Não me lembro. De qualquer modo, a amiga – bom, agora me recordo que a conversa era sobre flores – ficou subitamente grave, sua voz murchou um pouquinho. -Sei de um caso de flor que é tão triste! E sorrindo: -Mas você não vai acreditar, juro. Quem sabe? Tudo depende da pessoa que conta, como do jeito de contar. Há dias em que não depende nem disso: estamos possuídos de universal credulidade. E daí, argumento máximo, a amiga asseverou que a história era verdadeira. -Era uma moça que morava na rua General Polidoro, começou ela. Perto do cemitério São João Batista. Você sabe, quem mora por ali, queira ou não queira, tem de tomar conhecimento da morte. Toda hora está passando enterro, e a gente acaba por se interessar. Não é tão empolgante como navios ou casamento, ou carruagem de rei, mas sempre merece ser olhado. A moça, naturalmente, gostava mais de ver passar enterro do que não ver nada. E se fosse ficar triste diante de tanto corpo desfilando, havia de estar bem arranjada. Se o enterro era mesmo importante, desses de bispo ou de general, a moça costumava ficar no portão do cemitério para dar uma espiada. Você já notou como coroa impressiona a gente? Demais. E há a curiosidade de ler o que está escrito nelas. Morto que dá pena é aquele que chega desacompanhado de flores – por disposição da família ou falta de recursos, tanto faz. As coroas não prestigiam apenas o defunto, mas até o embalam. Às vezes ela chegava a entrar no cemitério e a acompanhar o prestígio até o lugar do sepultamento. Deve ter sido assim que adquiriu o costume de passear lá por dentro. Meu Deus, com tanto lugar para passear no Rio! E no caso da moça quando estivesse mais amolada, bastava tomar um bonde em direção à praia, descer no Mourisco, debruçar-se na amurada. Tinha o mar à sua disposição, a cinco minutos de casa. O mar, as viagens, as ilhas de coral, tudo grátis. Mas por preguiça, pela curiosidade dos enterros, sei lá por quê, deu para andar em São João Batista, contemplando túmulo, coitada! -No interior isso não é raro ... -Mas a moça era de Botafogo. -Ela trabalhava? -Em casa. Não me interrompa. Você não vai pedir a certidão de idade da moça, nem sua descrição física. Para o caso que estou contando isso não interessa. O certo é que de tarde costumava passear – ou melhor, "deslizar" pelas ruinhasbrancas do cemitério, mergulhada em cisma. Olhava uma inscrição, ou não olhava, descobria uma figura de anjinho, uma coluna partida, uma águia, comparava as covas ricas às covas pobres, fazia cálculos de idade dos defuntos, considerava retratos em medalhões – sim há de ser isto que ela fazia por lá, pois que mais poderia fazer? Talvez mesmo subisse ao morro, onde está a parte nova do cemitério, com as covas mais modestas. E deve ter sido lá que, uma tarde, ela apanhou a flor. -Que flor? -Uma flor qualquer. Margarida, por exemplo. Ou cravo. Para mim foi margarida, mas é puro palpite, nunca apurei. Apanhou com esse gesto vago e maquinal que a gente tem diante de um pé de uma flor. Apanha, leva ao nariz – não tem cheiro, como inconscientemente já se esperava –, depois amassa a flor, joga para um canto. Não se pensa mais nisso. Se a moça pegou a margarida no chão do cemitério ou no chão da rua, quando voltou para casa, também ignoro. Ela mesma se esforçou mais tarde por esclarecer esse ponto, mas foi incapaz. O certo é que já tinha voltado, estava em casa quietinha havia poucos minutos, quando o telefone tocou, ela atendeu. -Alôoo ... -Quedê a flor que você tirou de minha sepultura? A voz era longínqua, pausada, surda. Mas a moça riu. E, meio sem compreender: -O quê? Desligou. Voltou para o quarto, para as suas obrigações. Cinco minutos depois o telefone chamava de novo. -Alô. -Quedê a flor que você tirou de minha sepultura? Cinco minutos dão para a pessoa mais sem imaginação sustentar um trote. A moça riu de novo, mas preparada: -Está aqui comigo, vem buscar. No mesmo tom, lento, severo, triste, a voz respondeu: -Quero a flor que você me furtou. Me dá minha florzinha. Era homem, era mulher? Tão distante, a voz fazia-se entender, mas não se identificava. A moça topou a conversa: -Vem buscar, estou te dizendo. -Você bem sabe que não posso buscar coisa nenhuma, minha filha. Quero a minha flor, você tem obrigação de devolver. -Mas quem está falando aí? -Me dá minha flor, estou te suplicando. -Diga o nome, senão eu não dou. -Me dá minha flor, você não precisa dela, e eu preciso. Quero a minha flor, que nasceu na minha sepultura. O trote era estúpido, não variava, e a moça, enjoando logo, desligou. Naquele dia não houve mais nada. Mas no outro dia houve. À mesma hora, o telefone tocou. A moça inocente foi atender: -Alô! -Quedê a flor... Não ouviu mais. Jogou o fone no gancho, irritada. Mas que brincadeira é essa! Irritada, voltou à costura. Não demorou muito, a campainha tinia outra vez. E antes que a voz lamentosa recomeçasse outra vez: -Olhe vire a chapa. Já está pau. -Você tem que dar conta da minha flor – retrucou a voz de queixa. – Pra que foi mexer logo na moinha cova? Você tem tudo no mundo, eu, pobre de mim, acabei. Me faz muita falta aquela flor. -Esta é fraquinha. Não sabe de outra? E desligou. Mas, voltando ao quarto, já não ia só. Levava consigo a idéia daquela flor, ou antes a idéia daquela pessoa idiota que a vira arrancar uma flor no cemitério, e agora a aborrecia pelo telefone. Quem poderia ser? Não se lembrava de ter visto nenhum conhecido, era distraída por natureza. Certamente se tratava de voz disfarçada, mas tão bem que não se podia saber ao certo se de homem ou de mulher. Esquisito, uma voz fria. E vinha de longe, como de um interurbano. Parecia vir de mais longe ainda... Você está vendo que a moça começou a ter medo. -E eu também. -Não seja bobo. O fato é que aquela noite ela custou a dormir. E daí por diante é que não dormiu mesmo nada. A perseguição telefônica não parava. Sempre à mesma hora, no mesmo tom. A voz não ameaçava, não crescia de volume: implorava. Parecia que o diabo da flor constituía para ela a coisa mais preciosa do mundo, e que seu sossego eterno – admitindo que se tratasse de pessoa morta – ficara dependendo da restituição de uma simples flor. Mas seria absurdo admitir tal coisa, e a moça, além do mais, não queria se amofinar. No quinto ou sexto dia, ouviu firme a cantilena da voz e depois passou-lhe uma bruta descompostura. Fosse amolar o boi. Deixasse de ser imbecil (palavra boa, porque convinha a ambos os sexos). E se a voz não se calasse ela tomaria providência. A providência consistiu em avisar o irmão e depois o pai. (A intervenção da mãe não abalava a voz). Pelo telefone, pai e irmão disseram as últimas à voz suplicante. Estavam convencidos de que se tratava de algum engraçado absolutamente sem graça, mas curioso é que quando se referiam a ele diziam 'a voz". -A voz chamou hoje? – indagava o pai, chegando da cidade. -Ora. Era infalível – suspirava a mãe, desalentada. Descomposturas não adiantava, pois, ao caso. Era preciso usar o cérebro. Indagar, apurar na vizinhança, vigiar os telefones públicos. O pai e o filho dividiram entre si as tarefas, passaram a freqüentar as casas de comércio, os cafés mais próximos, as lojas de flores, os marmoristas. Se alguém entrava e pedia licença para usar o telefone, o ouvido do espião se afiava. Mas qual. Ninguém reclamava flor de jazigo. E restava as redes de telefone particulares. Um em cada apartamento, dez, doze no mesmo edifício. Como descobrir? O rapaz começou a tocar para todos os telefones da rua General Polidoro, depois para todos os telefones das ruas transversais, depois para todos os telefones da linha dois-meia... Discava, ouvia o alô, conferia a voz – não era – , desligava. Trabalho inútil, pois a pessoa da voz devia estar ali por perto – o tempo de sair do cemitério e tocar para a moça – e bem escondida estava ela, que só se fazia ouvir quando queria, isto é, a certa hora da tarde. Essa questão de hora também inspirou à família algumas diligências. Mas infrutíferas. Claro que a moça deixou de atender telefone. Não falava mais nem para as amigas. Então a voz, que não deixava de pedir, se outra pessoa estava no aparelho, não dizia mais "você me dá a minha flor", mas "quero a minha flor", "quem furtou a minha flor tem de restituir", etc. Diálogo com essas pessoas a voz não mantinha. Sua conversa era com a moça. E a voz não dava explicações. Isso durante quinze dias, um mês, acaba por desesperar um santo. A família não queria escândalo, mas teve de queixar-se à polícia. Ou a polícia estava muito ocupada em prender comunista, ou investigações telefônicas não eram sua especialidade – o fato é que não se apurou nada. O pai correu à Companhia Telefônica. Foi recebido por um cavalheiro amabilíssimo, que coçou o queixo, aludiu a fatores de ordem técnica... - Mas é a tranqüilidade de um lar que eu venho pedir ao senhor! É o sossego de minha filha, de minha casa. Serei obrigado a me privar de telefone? - Não faça isso, meu caro senhor. Seria uma loucura. Aí é que não se apura mesmo nada. Hoje em dia é impossível viver sem telefone, rádio e refrigerador. Dou-lhe um conselho de amigo. Volte para sua casa, tranqüilize a família e aguarde os acontecimento. Vamos fazer o possível. Bem, você já está percebendo que não adiantou. A voz sempre mendigando a flor. A moça perdendo o apetite e a coragem. Andava pálida, sem ânimo para sair à rua ou para trabalhar. Quem disse que ela queria ver enterro passando. Sentia-se miserável, escravizada a uma voz, a uma flor, a um vago defunto que nem sequer conhecia. Porque – já disse que era distraída – nem mesmo se lembrava da cova de onde arrancara aquela maldita flor. Se ao menos soubesse ... O irmão voltou do São João Batista dizendo que, do lado por onde a moça passeara aquela tarde, havia cinco sepulturas plantadas. A mãe não disse coisa alguma, desceu, entrou numa casa de flores da vizinhança, comprou cinco ramalhetes colossais, atravessou a rua como um jardim vivo e foi derramá-los votivamente, sobre os cinco canteiros. Voltou para casa e ficou à espera da hora insuportável. Seu coração lhe dizia que aquele gesto propiciatório havia de aplacar a mágoa do enterrado – se é que os mortos sofrem, e aos vivos é dado consolá-los, depois de os haver afligido. Mas a voz não se deixou consolar ou subornar. Nenhuma outra flor lhe convinha senão aquela, miúda, amarrotada, esquecida, que ficara rolando no pó e já não existia mais. As outras vinham de outra terra, não brotavam de seu estrume – isso não dizia a voz, era como se dissesse. E a mãe desistiu de novas oferendas, que já estavam no seu propósito. Flores, missas, que adiantava? O pai jogou a última cartada: espiritismo. Descobriu um médium fortíssimo, a quem expôs longamente o caso, e pediu-lhe que estabelecesse contato com a alma despojada de sua flor. Compareceu a inúmeras sessões, e grande era a sua fé de emergência, mas os poderes sobrenaturais se recusaram a cooperar, ou eles mesmos eram impotentes, esses poderes, quando alguém quer alguma coisa até sua última fibra, e a voz continuou, surda, infeliz, metódica. Se era mesmo de vivo (como às vezes a família ainda conjeturava, embora se apegasse cada dia mais a uma explicação desanimadora que era a falta de qualquer explicação lógica para aquilo), seria de alguém que houvesse perdido toda noção de misericórdia; e se era de morto, como julgar, como vencer os mortos? De qualquer modo, havia no apelo uma tristeza úmida, uma infelicidade tamanha que fazia esquecer o seu sentido cruel, e refletir: até a maldade pode ser triste. Não era possível compreender mais do que isso. Alguém pede continuamente uma certa flor, e essa flor não existe mais para lhe ser dada. Você não acha inteiramente sem esperança? -Mas, e a moça? -Carlos, eu preveni que meu caso de flor era muito triste. A moça morreu no fim de alguns meses, exausta. Mas sossegue, para tudo há esperança: a voz nunca mais pediu. Contos do Quintal: O mistério da Casa Mágica ARIANE BOMGOSTO Há muito tempo, na pequena vila de Águas Claras, todos viviam em perfeita harmonia. As crianças brincavam juntas perto do riacho e, à noite, se reuniam em frente a uma casa abandonada, no alto da colina. A casa era o mistério da vila: nunca alguém havia entrado lá. Mas Molly era muito curiosa e quando passava em frente à velha casa, dava uma espiadinha. Os pais diziam que lá não morava ninguém. A garota sabia que não era verdade, pois sempre sentia um cheiro gostoso saindo dali. Molly nunca tinha visto a dona da "casinha mágica" - como ela gostava de chamar -, até que um dia tomou coragem e bateu à porta: - Quem é? - respondeu de dentro uma voz cansada. - Sou eu, a Molly - disse a pequena. - Meus pais dizem que aí não mora ninguém, mas eu sei que a senhora existe e gostaria de conversar. - Vá embora. Nenhum dos pais nunca deixará que seus filhos conheçam a minha velha casa. - Não vou, não - retorquiu Molly. - O cheiro que vem daí é muito bom e eu estou faminta. Se abrir, posso comer um pedaço de bolo e depois eu vou embora. Ninguém vai descobrir. Uma velhinha com cara bondosa abriu devagar a porta. Quando a pequena Molly olhou ao redor, ficou maravilhada. Havia biscoitos em forma de coração por toda a casa, chocolate borbulhando nas panelas e umas bolachas dentro de uns potinhos. Ainda tinha mel escorrendo de dentro das vasilhas em formato de ursinhos. Mas o que mais surpreendeu Molly foram as árvores no fundo do quintal, cheinhas de frutas fresquinhas, que podiam ser tiradas do pé e saboreadas na hora. - Por que a senhora não abre a sua casa para que todos venham aqui ver todos estes quitutes maravilhosos? - indagou Molly. - Ah, pequena Molly, infelizmente nem todas as pessoas pensam como você. Elas acham que o ato de cozinhar por puro prazer é um pecado... - Pois falarei a todos que no alto deste vale existe uma pessoa com mãos de fada. E todos, crianças e adultos, virão aqui provar estas iguarias. Molly organizou uma festa e não disse que as comidas seriam preparadas pela senhorinha misteriosa. Todos amaram as comidas: o amor dava o gosto especial aos alimentos. Desde então, sempre havia alguém na casa da senhora para aprender a arte da culinária ou simplesmente comprar alguma das delícias. E a pequena vila agora se chama "Casa Mágica". Ariane Bomgosto é jornalista e escritora e entre suas paixões estão os contos infantis CONTO “A MOÇA TECELÔ (Marina Colasanti) Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear. Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte. Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava. Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela. Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza. Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado. Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio do ponto dos sapatos, quando bateram à porta. Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida. Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar. — Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer. Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. — Para que ter casa se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira. Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre. — É para que ninguém saiba do tapete — ele disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu: — Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou em como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela. A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte. Natal na barca (Lygia Fagundes Telles) Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu. O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga. Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio. Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal. A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água. — Tão gelada — estranhei, enxugando a mão. — Mas de manhã é quente. Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade. — De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando. — Quente? — Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas? Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta: — Mas a senhora mora aqui perto? — Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje... A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu- lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno. — Seu filho? — É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar. — É o caçula? Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce. — É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos. Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo. — E esse? Que idade tem? — Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou. Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los. — Seu marido está à sua espera? — Meu marido me abandonou. Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes. — Há muito tempo? Que seu marido... — Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bilaenfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora. Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar. — A senhora é conformada. — Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou. — Deus — repeti vagamente. — A senhora não acredita em Deus? — Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas... Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão: — Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim. Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto. Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim . — Estamos chegando — anunciou. Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia: - Chegamos!... Ei! chegamos! Aproximei-me evitando encará-la. — Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão. Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho. — Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre. — Acordou?! Ela sorriu: — Veja... Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar. — Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço. Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite. Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo izinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente. Texto extraído do livro “Para gostar de ler – Volume 9 – Contos”, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 67 OS OLHOS QUE COMIAM CARNE HUMBERTO CAMPOS Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando. Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem. Comprimiu o botão da campainha. E esperou. Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta. - Entra, Roberto. O criado empurrou a porta, e entrou. - Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento. - Não, senhor. Está até acesa.. - Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama. - Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta. - A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia. - Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto. Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos. A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos. A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires. Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achava-se Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão. Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem. Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões. Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente: - Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. . O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu. O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade. Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta. E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas. Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem. Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre. Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura. Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto. Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino. - Abra os olhos! - diz o doutor. O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro! De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo. A Armadilha Murilo Rubião Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez. Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana. Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul. Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante: — Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada. O outro teve que insistir: — Afinal, você veio. Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto: — Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome. — Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces. — Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria. Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam. Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que tem muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.— Nada?Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso: — Calculava, porém desejava ter certeza. Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam. O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse. Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa: — Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver. — Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!— Não posso.— Não pode ou não quer?— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala. Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão. Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave. Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário: — Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.A fúria de Alexandre chegara ao auge:— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aprédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos. E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo: — Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos. TESTEMUNHA TRANQÜILA STANISLAW PONTE PRETA O CAMARADA chegou assim com ar suspeito, olhou prós lados e — como não parecia ter ninguém por perto — forçou a porta do apartamento e entrou. Eu estava parado olhando, para ver no que ia dar aquilo. Na verdade eu estava vendo nitidamente toda a cena e senti que o camarada era um mau caráter. E foi batata. Entrou no apartamento e olhou em volta. Penumbra total. Caminhou até o telefone e desligou com cuidado, na certa para que o aparelho não tocasse enquanto ele estivesse ali. Isto — pensei — é porque ele não quer que ninguém note a sua presença: logo, só pode ser um ladrão, ou coisa assim. Mas não era. Se fosse ladrão estaria revistando as gavetas, mexendo em tudo, procurando coisas para levar. O cara — ao contrário — parecia morar perfeitamente no ambiente, pois mesmo na penumbra se orientou muito bem e andou desembaraçado até uma poltrona, onde sentou e ficou quieto: — Pior que ladrão. Esse cara deve ser um assassino e está esperando alguém chegar para matar — eu tornei a pensar e me lembro (inclusive) que cheguei a suspirar aliviado por não conhecer o homem e — portanto — ser difícil que ele estivesse esperando por mim. Pensamento bobo, de resto, pois eu não tinha nada a ver com aquilo. De repente ele se retesou na cadeira. Passos no corredor. Os passos, ou melhor, a pessoa que dava os passos, parou em frente à porta do apartamento. O detalhe era visível pela réstea de luz, que vinha por baixo da porta. Som de chave na fechadura e a porta se abriu lentamente e logo a silhueta de uma mulher se desenhou contra a luz. Bonita ou feia? — pensei eu. Pois era uma graça, meus caros. Quando ela acendeu a luz da sala é que eu pude ver. Era boa às pampas. Quando viu o cara na poltrona ainda tentou recuar, mas ele avançou e fechou a porta com um pontapé... e eu ali olhando. Fechou a porta, caminhou em direção à bonitinha e pataco... tacou-lhe a primeira bolacha. Ela estremeceu nos alicerces e pimpa... tacou outra. Os caros leitores perguntarão: — E você? Assistindo aquilo tudo sem tomar uma atitude? — a pergunta é razoável. Eu tomei uma atitude, realmente. Desliguei a televisão, a imagem dos dois desapareceu e eu fui dormir. Conto de mistério Com a gola do paletó levantada e a aba do chapéu abaixada, caminhando pelos cantos escuros, era quase impossível a qualquer pessoa que cruzasse com ele ver seu rosto. No local combinado, parou e fez o sinal que tinham já estipulado à guisa de senha. Parou debaixo do poste, acendeu um cigarro e soltou a fumaça em três baforadas compassadas. Imediatamente um sujeito mal-encarado, que se encontrava no café em frente, ajeitou a gravata e cuspiu de banda. Era aquele. Atravessou cautelosamente a rua, entrou no café e pediu um guaraná. O outro sorriu e se aproximou: Siga-me! - foi a ordem dada com voz cava. Deu apenas um gole no guaraná e saiu. O outro entrou num beco úmido e mal-iluminado e ele - a uma distância de uns dez a doze passos - entrou também. Ali parecia não haver ninguém. O silêncio era sepulcral. Mas o homem que ia na frente olhou em volta, certificou-se de que não havia ninguém de tocaia e bateu numa janela. Logo uma dobradiça gemeu e a porta abriu-se discretamente. Entraram os dois e deram numa sala pequena e enfumaçada onde, no centro, via-se uma mesa cheia de pequenos pacotes. Por trás dela um sujeito de barba crescida, roupas humildes e ar de agricultor parecia ter medo do que ia fazer. Não hesitou - porém - quando o homem que entrara na frente apontou para o que entrara em seguida e disse: "É este". O que estava por trás da mesa pegou um dos pacotes e entregou ao que falara. Este passou o pacote para o outro e perguntou se trouxera o dinheiro. Um aceno de cabeça foi a resposta. Enfiou a mão no bolso, tirou um bolo de notas e entregou ao parceiro. Depois virou-se para sair. O que entrara com ele disse que ficaria ali. Saiu então sozinho, caminhando rente às paredes do beco. Quando alcançou uma rua mais clara, assoviou para um táxi que passava e mandou tocar a toda pressa para determinado endereço. O motorista obedeceu e, meia hora depois, entrava em casa a berrar para a mulher: - Julieta! Ó Julieta... consegui. A mulher veio lá de dentro enxugando as mãos em um avental, a sorrir de felicidade. O marido colocou o pacote sobre a mesa, num ar triunfal. Ela abriu o pacote e verificou que o marido conseguira mesmo. Ali estava: um quilo de feijão. Sérgio Porto - Stanislaw Ponte Preta APÊNDICE A Descrição da Sequência Didática ETAPAS OBJETIVOS ATIVIDADES MATERIAL DURAÇÃO Apresentação da situação Dar sentido ao conjunto de atividades Discutir o projeto de culminância da sequência didática. Realizar a primeira produção. 1. Leitura coletiva do conto “As Formigas” de Lygia Fagundes Telles para apresentar o conto fantástico. 2. Escrita individual de um conto fantástico sem orientação. Reprodução do conto As formigas 90 minutos Módulo I – O que é um conto fantástico? Identificar um conto fantástico Explorar as principais características do conto fantástico. Avaliar e reescrever a produção inicial 1. Leitura de narrativas de gêneros diferentes; 2. Leitura de contos fantásticos 3. Construção de um quadro de referência para os componentes de um conto fantástico. 4. Coavaliação da primeira produção a partir do quadro de referência; 5. Reescrita do conto com base no quadro de referência. Reprodução dos seguintes textos: A escola dos bichos (fábula); A velha contrabandista (conto); O rato e o eremita (conto fantástico); O cruzeiro do Telégrafo (conto fantástico). Reprodução dos contos “O mistério da árvore” A casa sem sono Flor, Telefone, moça. Os olhos que comiam carne A sentença; A armadilha 6h/a de 45 minutos Módulo II – O conto é uma narrativa. O que compõe uma narrativa? Identificar os momentos da narrativa: situação Inicial; complicação; desenvolvimento e desfecho; 1. Leitura dos contos “A moça Tecelã” e “O Mistério da casa Mágica” [usa uma única norma para as maiúsculas nos títulos, aqui e nas outra colunas] para a compreensão da estrutura narrativa; 2. Preenchimento da ficha de acompanhamento para identificação dos momentos na narrativa; Reprodução dos Contos: A moça Tecelã e “O mistério da casa mágica” Quadro a ser preenchido pelos alunos 4h/a de 45 minutos 3. Coavaliação 4. Reescrita Módulo III – O papel do narrador Compreender a importância do narrador no desenvolvimento da narrativa; Distinguir o autor do narrador e narrar em 1ª pessoa ou 3ª pessoa Introduzir a voz do outro na narrativa. 1. Leitura dos Contos “Natal na Barca” e “Testemunha Tranquila” observando se o narrador é interno ou externo à obra; 2. A partir da leitura os procedimentos para introduzir outras vozes na narrativa; 3. Observação e análise do narrador e o ritmo da narrativa nos contos lidos. 4. Coavaliação 5. Reescrita Leitura dos Contos: “Natal na Barca”; e “Testemunha Tranquila” 4h/a de 45 minutos Módulo IV - A descrição na narrativa na construção do mistério Compreender a importância da descrição no desenvolvimento do mistério. 1. Releitura do Conto “Natal na Barca” observando o papel da descrição no desenvolvimento da ação; 2. Leitura do Texto “Conto de Mistério”! Analisando como a descrição do cenário das ações ou a caracterização dos personagens contribui para a construção do mistério. 3. Co-avaliação 4. Reescrita Releitura do Conto “Natal na barca” e leitura do Conto “Conto de Mistério” 4h/a de 45minutos Produção final Escrever um conto fantástico a partir do que foi apropriado. Escrita do texto definitivo - 4h/ade 45 minutos APÊNDICE B FICHA INDIVIDUAL ALUNO (A): DATA: TAREFA: Verificar se o texto criado tem características de Conto Fantástico e, caso seja necessário mudanças, como fazer tais modificações. Lista de Características de um conto fantástico Minha avaliação + /+ou- /- Soluções Possíveis SUSPENSE MISTÉRIO TERROR SOBRENATURAL PERSONAGENS MONSTROS CORAGEM MEDO COISAS IRREAIS ASSOMBRAÇÕES FANTASIA MORTE NARRATIVA SINISTRO APÊNDICE C FICHA DE COAVALIAÇÃO PRODUTOR DO TEXTO: COAVALIADOR: DATA: TAREFA: Verifique se o texto produzido pelo seu colega apresenta as características de Conto Fantástico e, caso negativo, faça sugestão para a reescritura do texto. Lista de Características de um conto fantástico Minha avaliação + /+ou- /- Soluções Possíveis SUSPENSE MISTÉRIO TERROR SOBRENATURAL PERSONAGENS MONSTROS CORAGEM MEDO COISAS IRREAIS ASSOMBRAÇÕES FANTASIA MORTE NARRATIVA SINISTRO APÊNDICE C FICHA DE ACOMPANHAMENTO Aluno (a):______________________________________________________________ Construindo aspectos da estrutura do texto Trechos do Conto Aspecto Revela o final da história, a solução para o conflito, sendo que este fim poderá ser de vários modos: triste, alegre, surpreendente, engraçado, e até mesmo... trágico!!! Representa a parte em que se desenvolve o conflito. O conflito é o momento em que algo começa a acontecer, e nós, como leitores, ficamos surpresos à espera do que está por vir. – É o momento mais tenso da narrativa, pois tudo pode acontecer, podendo ser aquilo que esperávamos ou não. Constitui o início da história a ser narrada. Neste momento, o narrador apresenta os fatos iniciais, os personagens e, na maioria das vezes, o tempo e o espaço. Situação Inicial/ exposição – Complicação – Clímax – Desfecho APÊNDICE E Na atividade anterior, percebemos que a descrição é muito importante para a narrativa fantástica, principalmente a descrição dos ambientes e das reações dos personagens. Com base nesse conhecimento, analise o texto e verifique se as descrições contribuem para a sua narrativa e, caso não contribuam, dê sugestões ao seu colega. Descrição no conto fantástico Descrição Colabora com a narrativa Sugestões de melhora Personagens Sim Não 1. 2. 3. 4. Ambiente Sim Não Sugestões de melhora 1. 2. 3. 4. APÊNDICE F Ficha de coavaliação Objetivo: Analisar no conto se as descrições (personagens, ambiente) contribuem para a narrativa ser de natureza fantástica. REESCRITA DO CONTO FANTÁSTICO NOME (COAVALIADOR/ AVALIADO): DATA: Sugestões para a escrita do conto O que fiz com as sugestões APÊNDICE G FICHA-SÍNTESE Critérios Avaliação pelo próprio autor Avaliação pelo par Sim Não Parcialmente Sim Não Parcialmente O texto pode ser considerado um conto Fantástico? Há apresentação das personagens e do espaço e a descrição dos mesmos de forma a possibilitar um maior entendimento e construção do mistério Um acontecimento modifica a situação apresentada Surge uma situação a ser resolvida, que quebra a estabilidade de personagens e acontecimentos Existe um ponto de maior tensão na narrativa Há solução do conflito (complicação) sem necessariamente ser um final feliz O narrador (personagem ou observador) narra a história de forma a chamar atenção do leitor Uso adequado do discurso direto e indireto A história é intrigante e traz um aspecto misterioso O final é interessante ou intrigante