UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ 

INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO 

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS 

 

 

 

 

 

FLÁVIA ROBERTA MENEZES DE SOUZA 

 

 

 

A NARRADORA E AS PERSPECTIVAS DO NARRAR 

EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BELÉM 

2021 

 

 

 

 


 

FLÁVIA ROBERTA MENEZES DE SOUZA 

 

 

 

 

A NARRADORA E AS PERSPECTIVAS DO NARRAR 

EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM 

 

 

 

 

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do 
Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará, 
para obtenção do título de Doutora em Letras (Área de 
Concentração: Estudos Literários) 

 

Orientador: Professor Dr. Gunter Karl Pressler 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BELÉM 

2021 


 

FLÁVIA ROBERTA MENEZES DE SOUZA 

 

A NARRADORA E AS PERSPECTIVAS DO NARRAR 

EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM 

 

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Letras e 
Comunicação da Universidade Federal do Pará para obtenção do título de Doutora em 
Letras (Área de Concentração: Estudo Literários) 

 

 

BANCA EXAMINADORA 

 

___________________________________________ 

Prof. Dr. Gunter Karl Pressler (UFPA) 

(Orientador e Presidente da Banca) 

 

__________________________________________ 

Prof. Drª. Maria Flora Süssekind (UNIRIO) 

(Avaliadora Externa) 

 

_________________________________________ 

Prof. Drª Sylvia Maria Trusen (UFPA – Campus Castanhal) 

(Avaliadora Externa) 

 

_________________________________________ 

Prof. Dr. Otávio Guimarães Tavares (UFPA) 

(Avaliador Interno) 

 

__________________________________________ 

Prof. Drª. Maria de Fátima do Nascimento (UFPA) 

(Avaliadora Interna) 

 

_________________________________________ 

Prof. Dr. Luis Heleno Montoril del Castillo (UFPA) 

(Suplente Interno) 

 

________________________________________ 

Prof. Dr. Juri Leander Jakob (Universidade de Colônia) 

(Suplente Externo) 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Para Gunter Karl Pressler 

 

& 

 

Vovó Deusa, que virou estrelinha há tão pouco tempo. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

AGRADECIMENTOS 

 

Agradeço ao meu professor, orientador e incentivador, Gunter Karl Pressler, por ter feito 
parte de toda a minha trajetória acadêmica. Com ele aprendi a ler melhor; 

 

Aos professores e pesquisadores que aceitaram ler esse trabalho e compor a banca de 
avaliação dessa tese. É uma honra contar com a presença de cada um. 

 

Ao Instituto Federal do Pará, em especial aos colegas do Colegiado de Letras, que me 
apoiaram durante o afastamento de minhas atividades docentes, em especial, à amiga 
professora Camila Prado; 

 

Ao grupo de pesquisa ANA – AMAZONIA NARRATOLOGIA ANTROPOSCENE – pelos 
momentos de estudo e reflexão em conjunto e, principalmente, por terem cedido as valiosas 
traduções utilizadas nesse trabalho de pesquisa; 

 

Aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPA, pelas aulas, pelos 
textos e pelas contribuições que me ajudaram a pensar e a repensar o meu objeto de pesquisa. 

 

À banca de Qualificação desta tese, professor Juri Jacob e professora Maria de Fátima, que 
leu o trabalho com cuidado e indicou textos importantíssimos para o andamento de minhas 
análises. 

 

Às grandes mulheres da minha vida: Deusa e Célia. Há muito das duas em cada pensamento 
meu e em cada linha que escrevi neste trabalho. 

 

Às minhas irmãs Fernanda, Vitória e à prima-irmã Lais, razões eternas de amor, 
companheirismo e riso 

 

Ao Bruno Roberto, meu irmão, e à grande amiga Natália Ribeiro pelo apoio e ajuda técnica. 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

As condições de possibilidade do conhecimento. 

Kant 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

RESUMO 

 

Trata-se de uma análise narratológica do primeiro romance publicado pelo escritor Milton 
Hatoum, Relato de um certo Oriente (1989). O segundo romance mais estudado do autor já 
conta com uma vasta recepção, mas a presença de certas lacunas e de leituras repetidas no 
discurso da crítica apontaram para a necessidade da realização de uma análise minuciosa de 
todo o texto literário. Paralelamente a essa observação, as atividades de tradução do Grupo 
de Pesquisa ANA - Amazônia Narratologia Antroposcene – do qual a autora deste estudo é 
membro, contribuíram para a identificação da base teórica e metodológica que serviria ao 
presente estudo. Durante a tradução do livro Narratology: an introduction (2010) e Elemente 
der Narratologie (2014) (versão revisada e atualizada do alemão) de Wolf Schmid, os 
conceitos-chave da Narratologia foram estudados e acolhidos na análise do texto literário. A 
presente tese de doutorado procurou responder a questões que permaneciam em aberto sobre 
o romance do ponto de vista narratológico: partindo de uma análise do texto, como a 
narradora do romance organizou “os relatos” das personagens? Que tipo de narrador 
podemos identificar no romance? De que maneira os resultados de uma análise narratológica 
podem servir a uma interpretação da obra? A análise narratológica permitiu uma observação 
mais apurada dos fenômenos presentes no texto e mostrou, por meio de procedimentos 
analíticos, o quão produtivo pode ser o estudo do texto quando lido a partir de uma teoria 
cujo objetivo é apresentar um modelo de análise. 

 

PALAVRAS-CHAVE: Milton Hatoum; Relato de um certo Oriente; Crítica literária; 
Narratologia; Wolf Schmid; Narradora; Perspectiva. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

ABSTRACT 

 

It is about a narratological analysis of the first novel published by Milton Hatoum, Tale of a 
certain Orient (1989). The second most studied novel by the author has a wide reception 
already, but the presence of certain gaps and repeated readings in the critic’s speech point to 
the need of a detailed analysis on the literary text as a whole. Furthermore, the translation 
activities of the Research Group ANA – Amazonia Antropocene Narratology – from which 
the author of this study is a member, contributed to the identification of theoretical and 
methodological bases which would be useful to this study. While translating the book 
Narratology: an introduction (2010) and Elemente der Narratologie (2014) (revised and 
updated German version) by Wolf Schmid, the key concepts of Narratology were studied 
and accepted in the analysis of the literary text. The present doctoral thesis sought to answer 
questions that remained unanswered about the novel from the narratological point of view: 
based on one analysis of the text, how did the narrator organize “the stories'' of the 
characters? What kind of narrator can we identify in the novel? How may the results of a 
narratological analysis be useful to an interpretation of the work? The narratological analysis 
provided a more refined observation on the phenomena present in the text and revealed, 
through analytical procedures, how productive the study of this text can be when its reading 
is based on one theory which its goal is to present a model of analysis. 

 

KEYWORDS: Milton Hatoum; Tale of a certain Orient; Literary criticism; Narratology; 
Wolf Schmid; Narrator; Perspective. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

RESUMEN 

 

Es un análisis narratológico de la primera novela publicada por el escritor Milton Hatoum, 
Relato de cierto Oriente (1989). La segunda novela más estudiada del autor ya tiene una 
amplia acogida, pero la presencia de ciertas lagunas y lecturas repetidas en el discurso de la 
crítica apuntaban a la necesidad de realizar un análisis exhaustivo de todo el texto literario. 
Paralelamente a esta observación, las actividades de traducción del Grupo de Investigación 
ANA - Amazonia Narratologia Antroposceno, del que es miembro el autor de este estudio, 
contribuyó a la identificación de las bases teóricas y metodológicas que servirían para el 
presente estudio. Durante traducción del libro Narratology: an introduction (2010) y 
Elemente der Narratologie (2014) (versión revisada y actualizada del alemán) por Wolf 
Schmid, los conceptos clave de La narratología fue estudiada y aceptada en el análisis del 
texto literario. La presente tesis de programa de doctorado buscó responder preguntas que 
permanecían abiertas sobre la novela desde el punto de vista narratológico: partiendo de un 
análisis del texto, ¿cómo la narradora de la novela organizó “las historias" de los personajes? 
¿Qué clase de narrador podemos identificar en la novela? Cómo los resultados de un análisis 
narratológica pueden servir a una interpretación de la obra? Análisis narratológico permitió 
una observación más precisa de los fenómenos presentes en el texto y mostró, a través de 
procedimientos analíticos, qué tan productivo puede ser el estudio del texto cuando se lee de 
una teoría cuyo objetivo es presentar un modelo de análisis. 

 

PALABRAS-CLAVE: Milton Hatoum; Relato de cierto Oriente; Crítica literaria; 
Narratología; Wolf Schmid; Narrador; Perspectiva. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

SUMÁRIO 
INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11 
2. PRINCÍPIOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS .................................................. 17 
2.1 O EXAME DOS TEXTOS DA CRÍTICA .............................................................................. 17 
2.2 A NARRATOLOGIA COMO PROPOSTA TEÓRICA PARA ESTE ESTUDO .............................. 36 
2.3 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES: NARRATIVIDADE, EVENTUALIDADE, FICCIONALIDADE . 45 
3. AS INSTÂNCIAS DA OBRA NARRATIVA .............................................................. 52 
3.1 OS NÍVEIS DE COMUNICAÇÃO NO ROMANCE ............................................................... 52 
3.2 AUTOR E LEITOR ABSTRATOS ...................................................................................... 55 
3.3 O NARRADOR FICTÍCIO............................................................................................61 
3.4 LEITOR FICTÍCIO OU DESTINATÁRIO ............................................................................ 76 
4.PERSPECTIVA DO NARRAR......................................................................................78 
4.1 OS ACONTECIMENTOS COMO OBJETO DA PERSPECTIVA ............................................... 78 
4.2 PERSPECTIVAS NARRATORIAL E FIGURAL NO ROMANCE .............................................. 83 
4.3 OS DOIS COMPONENTES DO TEXTO NARRATIVO ........................................................... 95 
5. NARRATOLOGIA E INTERPRETAÇÃO DA OBRA ............................................ 99 
5.1 INTERFERÊNCIA TEXTUAL ........................................................................................... 99 
5.2 A PRESENÇA DO AUTOR NO TEXTO ............................................................................ 106 
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 111 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 115 

INTRODUÇÃO 

Da arte poética, dela mesma e de suas espécies, da função que cada 
espécie tem, do modo como se devem compor os enredos – se a 
composição poética se destina à excelência – e ainda de quantas e 
de quais são suas partes, assim como de todas as outras questões 
que resultam do mesmo método, eis sobre o que falaremos, 
começando, como é natural, pelos princípios básicos. 

Aristóteles 

Milton Hatoum representa um dos casos felizes de escritores que alcançaram sucesso 
e grande repercussão logo na publicação do primeiro livro. O escritor, nascido em Manaus, 
estreou no cenário da Literatura Brasileira com o romance Relato de um certo Oriente, em 
1989, com trinta e sete anos de idade. Curiosamente, o escritor tem formação acadêmica em 
Arquitetura e Urbanismo pela USP. Saiu de Manaus aos quinze anos de idade e mudou-se 
para Brasília, onde concluiu os estudos no Colégio de Aplicação da UNB. Já na década de 
setenta, passou a viver em São Paulo, onde se graduou e teve suas primeiras experiências 
profissionais: chegou a dar aula na faculdade de Arquitetura em Taubaté logo que se formou. 

Em 1979, graças a uma bolsa concedida por uma instituição ibero-americana, Milton 
Hatoum vai para Madri, Barcelona, leciona português e até traduz Jorge Amado para o 
espanhol. Na década de oitenta, conseguiu uma bolsa para estudar Literatura Comparada na 
Sorbonne em Paris. Em 1984, retorna a Manaus, como professor de Língua e Literatura 
Francesa na Universidade Federal do Amazonas e, na década de noventa, vive a experiência 
de professor visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e de escritor residente na 
Universidade Yale, Stanford e Berkeley. Em 1999, ele retorna ao Brasil e se estabelece em 
São Paulo, onde vive até os dias de hoje, trabalhando em seus projetos literários e como 
colunista do jornal O Estado de S.Paulo. 

Onze anos depois de publicar Relato de um certo Oriente, Milton Hatoum publicou 
os romances Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Três anos mais tarde, o escritor 
lança a sua primeira novela Órfãos do Eldorado (2008) e, em seguida, a coletânea de contos 
A Cidade Ilhada (2009). Diversificando ainda mais a produção dos gêneros em prosa, lança 
o livro de crônicas Um Solitário à Espreita (2013), e retorna ao gênero romance com A Noite 
da Espera (2017) e Pontos de Fuga (2019) – títulos que integram o mais novo projeto de 
Milton Hatoum: a trilogia O Lugar mais Sombrio. O terceiro volume ainda não tem data para 
lançamento. Todo o conjunto da obra foi publicado pela Companhia das Letras, considerada 
uma das maiores editoras brasileiras. A produção literária do escritor não passou 
despercebida aos olhos da crítica, o que garantiu a Milton Hatoum o prêmio Jabuti de melhor 


romance, já com a publicação de Relato de um certo Oriente. O romance Dois irmãos foi 
traduzido para doze idiomas e adaptado para a televisão (minissérie), teatro e quadrinhos. 
Por Cinzas do Norte, Milton Hatoum recebe outra vez o prêmio Jabuti e mais ainda os 
prêmios, o de Livro do Ano, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. A novela Órfãos do 
Eldorado também saiu das páginas do livro e virou adaptação de cinema. Ao todo, é sabido 
que sua obra foi traduzida para doze idiomas e publicada em catorze países. 

Como escritor em atividade e com um romance ainda por lançar, a fortuna crítica da 
obra de Milton Hatoum se encontra em construção. As primeiras teses de doutorado e 
dissertações de mestrado começaram a ser produzidas nos anos 2000, após o lançamento do 
segundo romance do autor. Mas antes dessas produções de maior consistência acadêmica, o 
nome do escritor já aparecia em artigos de crítica em jornais e em eventos de literatura, o 
que confirma um fato: o autor, desde a primeira publicação, encontrou leitores 
entusiasmados pelo seu texto. A presente tese de doutorado é também resultado de um 
interesse despertado não só pela leitura do romance, mas pelo que é dito sobre o romance 
em eventos literários e, sobretudo, em trabalhos acadêmicos. Participativo, solícito e 
engajado, Milton Hatoum é sempre convidado para os eventos que tratam de sua obra e, de 
certa forma, a palavra do autor ali presente contribui bastante para que a crítica especule 
sobre uma série de dados para a interpretação dos textos. Evidentemente que essas 
especulações se justificam pela grande semelhança que há entre a vida e a obra do autor. Há 
muitas referências no texto que apontam para aspectos biográficos de Milton Hatoum. Sobre 
isso não há o que questionar, mas até que ponto a fala do autor em eventos que tratam de sua 
própria obra não podem direcionar a crítica para um certo viés?1 

1 Enquanto escrevemos isso, pensamos em articulações como as de Stefania Chiarelli (2017), que é uma das 
referências mais citadas em trabalhos sobre a obra de Milton Hatoum. No artigo Sherazade no Amazonas – a 
pulsão de narrar em Relato de um certo Oriente, a autora cita um trecho de uma entrevista em que Milton 
Hatoum fala de sua descendência árabe e do hibridismo cultural no qual cresceu e ela relaciona esse aspecto 
biográfico “ao modo oriental de narrar” presente em Relato de um certo Oriente. Leituras como essa se 
propagam artigos após artigo, tornando-se verdades estabelecidas. Em certo ponto do texto ela afirma que o 
próprio autor, Milton Hatoum, declarou que “Relato de um certo Oriente é história ‘narrada por uma Sherazade 
do Amazonas’”. (CHIARELLI, 2017, p. 39) 

Não pensamos no que o autor diz, mas em como suas falas são utilizadas para fazer 
certas afirmações com finalidade de interpretar a obra. A leitura, que é também um ato 
subjetivo, em alguns casos, afetivo, pode simplesmente confirmar aquilo que é obvio no 
texto ou propor leituras pautadas na análise do que está escrito, levando-se em consideração 
o mundo representado. Pensamos que essa é uma decisão que deve estar presente na leitura 
de cada crítico. Em outras palavras, pode-se apresentar uma leitura baseada em um tema 


presente na obra do escritor e justificar a presença desse tema com aspectos biográficos ou 
se pode apresentar uma análise do texto, a fim de apontar quais dados do texto revelam a um 
caminho mais próximo da objetividade, da cientificidade que deve haver no tratamento do 
texto literário. Sem isso, correremos sempre o risco de repetir sucessivas vezes frases prontas 
e rotularemos os textos que lemos, sem ao menos saber por qual razão dizemos isso ou 
aquilo. Acreditamos na necessidade de uma metodologia, de um processo para se alcançar 
um resultado e isso só pode acontecer a partir de uma teoria. A teoria dá suporte ao 
pesquisador, ao crítico, para tratar o texto. Nesse trabalho, nossa teoria de apoio é a 
Narratologia, campo de estudo que surge, na década de sessenta, no contexto do 
Estruturalismo francês. 

A Narratologia é a base teórica das atividades desenvolvidas pelo grupo de pesquisa 
ANA2 – Amazonia Narratologia Anthropocene – que atualmente se ocupa da tradução do 
livro Narratology: an introduction, título em inglês, e Elemente der Narratologie, título em 
alemão de Wolf Schmid. O trabalho de Schmid apresenta os mais de cinquenta anos de 
debate em torno da teoria, tendo como grandes interlocutores os textos de Gérard Genette e 
Tzvetan Todorov, além de outros estudiosos eslavos que não se tornaram populares entre os 
brasileiros, em função da falta de tradução e de diálogo com esses trabalhos. Não se trata 
apenas de uma revisão de tudo o que já foi produzido, o que já seria um grande feito, mas de 
um trabalho de problematização de conceitos, seguidos de propostas mais bem ajustáveis a 
exemplos reais extraídos de textos literários. Tais atividades de tradução e de estudo do texto 
de Schmid subsidiaram toda essa tese sobre o romance de Milton Hatoum. Todas as citações 
do texto de Schmid são tomadas desse trabalho3 de tradução feito em grupo, ao qual 
reiteramos nossa gratidão. Sobre essas citações, precisamos esclarecer: o trabalho de 
tradução para o português se realiza tanto pela edição em inglês, de 2010, quanto pela edição 
em alemão, de 2014, uma vez que a segunda é a mais atualizada. Nesta tese, as referências 
feitas ao texto de Schmid tomarão como base principal o texto em inglês de 2010, só 
recorrendo ao texto em alemão quando os trechos não existirem na edição em inglês. 

2 O grupo, que é coordenado por Gunter Karl Pressler, foi criado e registrado no CNPq em outubro de 2016 e 
é formado pela autora desta tese, por Natália Ribeiro, Lucília Pinheiro, Patrícia da Cruz, José Francisco 
Queiroz, Rosanne de Castelo Branco, Aline da Silva, Thaís Amorim e conta com a colaboração estrangeira de 
Christiane Hauschild. 

3 Infelizmente, a publicação da tradução não saiu antes do fim dessa tese e, por essa razão, as citações em 
português farão referência aos anos e páginas das edições em inglês e em alemão. 

Feito esse esclarecimento, introduziremos essa tese confirmando nosso objetivo de 
apresentar uma análise narratológica do romance de Milton Hatoum. Em vídeo conferência 


com o professor Wolf Schmid, realizada na ocasião do Seminário do grupo de pesquisa, em 
dezembro de 2020, indagamos sobre a inexistência de um estudo que tenha se utilizado 
unicamente da narratologia para o estudo de uma obra específica. Os estudiosos que se 
preocuparam em desenvolver essa teoria, utilizam-se de várias obras, vários trechos e, 
quando se pensa na exequibilidade dessa abordagem teórica, com objetivo de interpretar o 
texto, imediatamente vem uma questão: aonde chegaremos com o apoio da narratologia em 
relação à interpretação da obra? O próprio trabalho de Schmid é construído em cima de uma 
série de exemplos de contos e romances russos, dentre eles, trechos de textos de Pushkin, 
Dostoievsky, Chekhov, Tolstói, Andrej Bitov, Tomachevski, e não se dedica ao estudo de 
uma obra específica. O estudioso respondeu que ele era um narratólogo e que estava 
interessado na análise, nos resultados da análise. Entendemos, então, que esse método de 
estudo do texto, de fato, tenha se identificado mesmo com a sua qualidade teórica e 
conceitual. O próprio Tzvetan Todorov, no tão conhecido texto Análise estrutural da 
narrativa, deixa muito claro que o objetivo de sua proposta de análise não visa ao 
conhecimento de uma obra específica, em função do caráter do estudo não ser descritivo, 
mas teórico. Ele explica que “A obra será sempre considerada como a manifestação de uma 
estrutura abstrata, da qual ela é apenas uma das realizações possíveis; o conhecimento dessa 
estrutura será o verdadeiro objetivo da análise estrutural” (TODOROV, 2006, p. 79). O 
objetivo de alcançar a literatura virtual por meio da análise estrutural difere do desejo de 
entender a literatura real, muito embora Todorov frise que para se chegar ao conhecimento 
dessa literatura virtual seja necessário o conhecimento empírico preciso, isto é, o 
conhecimento da obra concreta. 

Lembrando as duas possibilidades de abordagem, interna e externa da literatura, 
inscritas na Teoria da Literatura de Warren e Wellek, Todorov afirma que a análise 
estrutural seria considerada uma abordagem interna, mas adverte que, em função do seu 
caráter essencialmente teórico e não descritivo, ela se encaixaria entre as abordagens 
externas. Ele coloca: 

Por exemplo, quando os marxistas e os psicanalistas tratam de uma obra literária, 
não estão interessados no conhecimento dessa obra ela mesma, mas no 
conhecimento de uma estrutura abstrata, social ou psíquica, que se manifesta 
através dessa obra. Essa atitude é pois, ao mesmo tempo, teórica e externa. Por 
outro lado, um New Critic (imaginário), cuja abordagem é visivelmente interna, 
não terá outro objetivo senão o conhecimento da obra ela mesma; o resultado de 
seu trabalho será uma paráfrase da obra, que pretende revelar seu sentido melhor 
do que a obra ela mesma. (TODOROV, 2006, p. 79) 


Todorov conclui que a análise estrutural não cabe nem nos exemplos de abordagem 
externa, nem nos exemplos de abordagem interna: 

A análise estrutural é diferente de cada uma dessas duas atitudes. Não se satisfaz 
com uma pura descrição da obra, nem com sua interpretação em termos 
psicológicos ou sociológicos, ou mesmo filosóficos. Em outros termos, a análise 
estrutural da literatura coincide (em grandes linhas) com a teoria da literatura, com 
a poética. Seu objeto é o discurso literário mais do que as obras literárias 
(TODOROV, 2006, p. 79) 

 

Citamos essa passagem do texto de Todorov, porque, no início desta tese escolhemos 
adotar uma dessas posições sugeridas por Warren e Wellek com o objetivo de especificar a 
diferença entre a nossa proposta de estudo do romance de Milton Hatoum e as outras já 
existentes. A identificação de uma lacuna na fortuna crítica da obra movimentou nosso 
interesse por um estudo do texto, da estrutura narrativa. Sabemos, entretanto, que, ao 
fazermos uso da Narratologia para compreender certos aspectos da obra, não estamos 
realizando uma análise estrutural no sentido proposto por Todorov, uma vez que não é nosso 
objetivo extrair do romance um modelo ou um conjunto de propriedades, a fim de identificar 
esse modelo ou conjunto de propriedades em outras obras. Em um ponto, o objetivo de 
nossos estudos está de acordo com os objetivos da análise estrutural de Todorov, pois 
também consideramos que “a literatura deve ser compreendida na sua especificidade, 
enquanto literatura, antes de se procurar estabelecer sua relação com algo diferente dela 
mesma” (TODOROV, 2006, p. 80). 

Nesse sentido, organizamos esta tese da seguinte maneira: na primeira seção, 
intitulada Princípios teórico e metodológico, apontamos os textos de crítica e trabalhos 
acadêmicos com que dialogamos ao longo da tese, evidenciando as lacunas e questões 
levantadas por esses textos e que justificam a nossa entrada no debate crítico em torno do 
romance Relato de um certo Oriente. Nessa seção também apresentamos a teoria que ampara 
nossa leitura do romance e introduzimos os conceitos que fundamentam o tratamento do 
texto narrativo por Wolf Schmid, expondo com brevidade o histórico do desenvolvimento 
da Narratologia e sua atual situação no contexto acadêmico brasileiro. 

Na segunda seção, intitulada Instâncias da obra narrativa, trabalhando com a 
linguagem e com os conceitos de Wolf Schmid, apresentamos as instâncias abstratas, 
fictícias e concretas presentes na obra, como parte de um modelo de comunicação entre elas. 
Dentre tais instâncias, destacamos o narrador fictício, que foi lido a partir de todo trajeto 
feito pela narradora do romance, do seu planejamento de viajar a Manaus até a viagem em 
si, momento em que ocorrem os “eventos” que, por assim dizer, justificam todo o trabalho 


de narração da narradora. Nesse ponto do estudo, apresentamos o discurso da narradora nos 
capítulos 1, 6 e 8 e identificamos por meio de ocorrências verbais a posição da narração em 
relação aos acontecimentos narrados. A presença do diálogo, da interação com outros 
personagens e de suas falas em capítulos inteiros do romance, encaminhou nossa análise 
para o conceito de perspectiva. 

Na terceira seção dessa tese, apresentamos as questões contempladas pelo conceito 
de perspectiva de acordo com Schmid. Apresentamos, a partir da análise do capítulo 
referente à fala de Hakim, a presença da perspectiva figural, seguindo os parâmetros de 
identificação do estudioso teórico. Do mesmo modo, indicamos a presença da perspectiva 
figural na fala de outras personagens como Dorner, pai de Hakim e Hindié Conceição, o que 
nos levou a discutir os dois componentes do texto narrativo: a presença do “texto da 
narradora” e do “texto da personagem”. 

Na quarta seção dessa tese, ainda dentro da questão do “texto da narradora” e “do 
texto da personagem”, mostramos como ocorrem as “interferências textuais” no romance de 
maneira que o discurso dessa narradora se assemelhe em alguma medida à fala das 
personagens. Schmid destaca a “contaminação dos textos” como um fenômeno corrente 
quando justamente se identifica a presença das marcas do discurso do narrador nas falas das 
personagens e vice versa. Tais descrições visam descrever melhor o que ocorre nos capítulos 
2, 3, 4, 5 e 7 do romance, em que a narradora parece “sair de cena”. Ainda nessa seção, 
concluímos essa tese, para fins pragmáticos apenas, discutindo a sombra do autor sobre a 
narradora do romance e em que medida determinados aspectos do texto, como a divisão dos 
capítulos e a presença das aspas nesse romance são indícios da presença do autor ou da 
narradora fictícia. 

 

 

 

 

 

 

 

 


2. PRINCÍPIOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS 

“Metáfora” é a designação de uma coisa mediante um nome que 
designa outra coisa, que se dá ou do gênero para a espécie, ou da 
espécie para o gênero, ou da espécie para a espécie, ou segundo 
uma relação de analogia. 

Aristóteles 

2.1 O exame dos textos da crítica 

A conhecida discussão que envolve a divisão das correntes de investigação literária 
entre estudos extrínsecos e intrínsecos é lembrada nesse primeiro momento de nosso estudo. 
Os estudos que buscam compreender, pelo texto literário, a biografia de seu autor, o perfil 
psicológico do escritor ou do seu processo de criação, a sociedade, e até mesmo ideias 
filosóficas compõem o conjunto de estudos extrínsecos da Literatura. Esses estudos 
entendem a obra como causa de fatores externos a ela, entendem que a obra literária é 
produto de fenômenos que ocorrem fora dela. Nesse sentido, a obra é importante à medida 
que se oferece como possibilidade de estudo desses fenômenos. Enquanto que os estudos do 
estilo, ritmo e metro, das formas de ficção narrativa, dos gêneros literários e história literária 
compõem o conjunto de estudos intrínsecos da Literatura. É dentro dessa divisão que René 
Wellek e Austin Warren constroem a sua Teoria da Literatura e se posicionam: “O ponto de 
partida natural e sensato do trabalho de investigação literária é a interpretação e análise das 
obras literárias em si próprias” (WELLEK, WARREN, 1949, p. 169). 

A retomada a essa publicação clássica dentro dos Estudos Literários serve aqui para 
basicamente duas razões: primeiro, compreender melhor os interesses dos trabalhos já 
escritos sobre Relato de um certo Oriente e, segundo, posicionar a nossa pesquisa, a linha 
teórica e metodológica a ser seguida em nosso trabalho. Sabe-se que o primeiro romance de 
Milton Hatoum é, depois de Dois irmãos, o que mais recebeu atenção em trabalhos 
acadêmicos4. Nosso recorte incidirá sobre os trabalhos que tratam exclusivamente ou não do 
primeiro. Antes de mais nada, faremos nota à primeira crítica recebida pelo romance, 
publicada na seção G6 – Letras da Folha de S. Paulo em 29 de abril de 1989, escrita por 

4 A professora Juciane Cavalheiro, docente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), desenvolve 
atualmente a pesquisa de pós-doutorado, Memória, Alteridade e Recepção crítica da obra de Milton Hatoum, 
A pesquisa, ainda não publicada, visa montar um banco de dissertações e teses produzidas até o ano de 2019 
sobre as quatro primeiras obras do escritor e construir um quadro síntese das temáticas abordadas nesses 
estudos. Nossos agradecimentos a ela, que nos prestou informações precisas sobre a quantidade de trabalhos 
já produzidos sobre Relato de um certo Oriente, na ocasião do XVII Seminário de Pesquisa em Andamento da 
UFPA. 

 


Flora Süssekind. Como dito, trata-se de uma crítica de jornal. Süssekind nunca escreveu um 
trabalho “de fôlego” sobre qualquer romance de Milton Hatoum, mas vale a pena ler o que 
ela disse na sua crítica Livro de Milton Hatoum lembra jogo de paciência: 

Uma narradora que procura desdobrar o próprio monólogo em vários, numa 
espécie de jogo de memórias-que-puxam-memórias propositadamente à maneira 
das histórias que se sucedem e imbricam nas ‘Mil e uma noites’. Desdobramentos 
que chamam a atenção para o esforço técnico a que Milton Hatoum se submete 
logo no primeiro livro. O que, se por um lado é magnífico – isso de deixar de lado 
velhos “tópoi” (homem versus natureza, seringueiros e descritivismos) da 
literatura regionalista amazônica, de Inglês de Sousa, José Veríssimo e Rodolfo 
Teófilo5 a Dalcídio Jurandir, e se jogar de cara numa estruturação romanesca 
próxima à de ‘As ondas’, de Virgínia Woolf, ou ‘O Som e a Fúria’ de Faulkner - 
por outro lado, parece deixar meio sem solo umas tantas vezes a narrativa de 
Hatoum. (SÜSSEKIND, 1989) 

5 Vale chamar a atenção para o fato de que Süssekind coloca Dalcídio Jurandir na mesma linha de um 
desconhecido, Rodolfo Teófilo. 

Flora Süssekind, embora surpresa com o esforço técnico empreendido logo no 
primeiro romance e satisfeita por ler um autor do norte que não aborde temas considerados 
regionalistas, não deixa de identificar as dificuldades do autor em figurar mais de um 
narrador dentro da obra: “Entra a fala de Hakim, entra o Pai, o fotógrafo. Mas não são 
significativas as alterações na dicção narrativa” (SÜSSEKIND, 1989). A crítica breve e 
pontual de Süssekind coloca ainda que essa “falta” na técnica, obrigou o romance a se 
autoexplicar no final e dizer que só havia uma voz o tempo todo: “O que não é mal, mas 
converte a multiplicação de monólogos numa espécie de jogo de paciência que não deu muito 
certo e o jogador se viu obrigado a interromper, não sem uma explicação envergonhada já 
que havia gente olhando” (SÜSSEKIND, 1989). 

Trata-se de um texto breve, mas que capta os pontos fortes e fracos do romance de 
Milton Hatoum, levando em conta a técnica do escritor, os seus artifícios para a construção 
da narrativa do romance. Esse olhar sobre o romance, cujo espaço ficcional é a Amazônia, 
também chama a atenção da crítica para a conhecida discussão e leitura em torno do 
regionalismo ao qual os romancistas do Norte sempre se viram presos, por razões 
evidenciadas por ela. Milton Hatoum, aos olhos da crítica, distancia-se dessa tradição em 
função de uma técnica narrativa que o aproxima de grandes autores. Süssekind lê o romance 
numa perspectiva que nos interessa dentro dessa pesquisa, porque esbarra em questões 
puramente narratológicas e que são julgadas por ela como limitações na construção da 
narrativa. Nesse sentido, Flora Süssekind não tem intenção de exaltar o autor do livro, os 


créditos lhes são conferidos com justiça, sem deixar de apontar com clareza os pontos fracos 
do romance. 

Nosso trabalho faz diálogo com essa crítica porque nos interessa compreender o tipo 
de narrador e a perspectiva adotada ao longo da narrativa, assim como nos interessa analisar 
toda a sequência dos acontecimentos dispostos da maneira em que estão no romance, a fim 
de preencher uma lacuna na fortuna crítica. Há trabalhos acadêmicos, entre dissertações e 
teses, que se propuseram a estudar o nosso objeto, porém seus interesses divergem do nosso. 
São escassos os trabalhos que apresentam uma análise do desenvolvimento da narrativa. 
Alguns conseguem reunir um determinado conjunto de observações sobre o texto, mas 
perdem a força ao partirem para interpretações prematuras sem se demorarem na análise. Há 
sempre uma pressa por afirmar algo; raramente se observa a extração de fragmentos do 
romance para uma leitura minuciosa nesses trabalhos. A preocupação parece girar em torno 
de uma necessidade de afirmar o autor no cânone também. O interesse em estudar Literatura 
pode atender a um desejo de promover seu autor, mas não se pode deixar de lado a 
preocupação com o processo de desenvolvimento do texto em si, afinal é a existência desse 
material que justifica todo o discurso feito sobre ele. 

Ao reconhecermos essas diferenças entre a nossa proposta e a proposta dos trabalhos 
já realizados sobre o romance, questionamos tanto as teorias escolhidas para a leitura do 
objeto que não dão conta da estrutura6 do romance, como a metodologia, que não se pauta 
na análise dos trechos, não se compromete totalmente com o texto, para que conteúdo – “os 
sucessos narrados num romance, tal como as ideias e emoções” (WELLEK, WARREN, 
1949, p. 171) - e forma – “o modo como os sucessos são dispostos em um enredo” 
(WELLEK, WARREN, 1949, p. 171) - sejam enxergados e compreendidos dentro de um 
trabalho crítico. 

6 Empregamos aqui a palavra estrutura nesse sentido: “A estrutura é um conceito que inclui tanto o conteúdo 
como a forma, na medida em que se encontrem organizados para fins estéticos. A obra de arte é, pois, 
considerada como um sistema global de signos, ou uma estrutura de signos, que servem um objeto estético 
específico” (WELLEK, WARREN, 1949, p. 172). 

Nesse sentido, ao fazermos o levantamento da fortuna crítica de Relato de um certo 
Oriente, encontramos dois textos publicados em periódicos que falam sobre a recepção do 
romance: o primeiro intitula-se Panorama da produção literária de Milton Hatoum e de sua 
recepção, em homenagem aos vinte anos de Relato de um certo Oriente escrito por Joanna 
da Silva em 2010 e A ficção de Milton Hatoum: recepção crítica, escrito por Sylvia Maria 
Trusen e Francisca Andréa da Silva em 2018. O primeiro artigo é interessante porque situa 


bem o novo pesquisador do romance, que passa a contar com a classificação da fortuna 
crítica: os trabalhos de enfoque comparatista, dentre os quais destacam-se os trabalhos de 
Sarah Wells (2007), Marli Fantini (2007) e Stefania Chiarelli (2007); de enfoque 
memorialista, dentre os quais estão os trabalhos de Bridget Christine Arce (2007), Maria 
Zilda Cury (2003), Maria da Luz Pinheiro de Cristo (2007), Francisco Foot Hardman (2000); 
de enfoque na imigração, dentre os quais a autora cita os trabalhos de Maria A. Ribeiro 
(2007) e Jerusa P. Ferreira (2007); de enfoque sobre o regionalismo e exotismo, cujos 
destaques são os trabalhos de Tânia Pellegrini (2004) e Estela J. Vieira (2007); os trabalhos 
de Wander Melo Miranda (2007), Beth Braith (2008) e Sabrina Sedlmayer (2005) e Marleide 
F. de Toledo (2007) abordam o exotismo mais focado na escrita, na linguagem de Milton 
Hatoum, aponta a autora. 

Essa classificação apresentada no artigo de Joanna da Silva não se alterou muito nos 
anos seguintes e a ela somente incluiremos mais alguns trabalhos. O segundo artigo, de 
Sylvia Trusen e Francisca Silva, fala da recepção da crítica jornalística e literária e não se 
detém em trabalhos acadêmicos, como fez a autora do primeiro. O objetivo das duas autoras 
é levantar as críticas sobre a obra de Milton Hatoum, dado o sucesso e a atenção recebida do 
público leitor. Nesse sentido, Trusen e Silva mostram7 o quanto a crítica jornalística e 
literária enxergam com entusiasmo e positividade a obra de Milton Hatoum. 

7 Mas uma questão chama a nossa atenção: As duas autoras citam uma reportagem publicada na Revista Visão, 
no ano de 1989, mas não fazem referência ao texto de Flora Süssekind, publicado na Folha de S. Paulo, no 
mesmo ano. 

8 O título lembra um dos clássicos trabalhos de Dostoiévski. 

Na reportagem da Revista Visão, intitulada Recordação da casa dos mortos8, 
publicada no ano de 1989, ano de estreia do romance, as autoras destacam “um Hatoum 
recém-lançado que impressionou o editor da Companhia das Letras, Luís Schwartz, por sua 
força e originalidade” (TRUSEN, SILVA, 2018) e as palavras de Davi Arrigucci Júnior 
sobre o romance. O trecho citado e escrito pelo professor de Literatura da Universidade de 
São Paulo é o mesmo que está presente na orelha do romance, inclusive. Davi Arrigucci 
nunca fez um estudo sobre o romance de Milton Hatoum, mas o seu texto é sempre citado 
como referência em trabalhos acadêmicos e pode ser lido também na coletânea de ensaios 
sobre a obra de Milton Hatoum, Arquitetura da Memória: ensaios sobre os romances Relato 
de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum, organizada por 
Maria da Luz Pinheiro de Cristo, publicada em 2007. 


O artigo de Trusen e Silva abordam o tema do regionalismo, passando pelas leituras 
de críticos como Alfredo Bosi, Benedito Nunes e Erick Schøllhammer. Isso porque as 
primeiras críticas sobre a obra de Milton Hatoum sempre esbarraram nesse tema, dado o fato 
de que os escritores da região Norte sempre ficaram presos a essa categoria. As autoras 
concluem o que a seleção de textos críticos, feita por elas já evidencia, o grande sucesso e 
acolhimento do escritor pelas críticas jornalísticas e literárias. Elas também se posicionam 
contra a ideia de que ele é regionalista. A defesa contra o regionalismo é sempre um esforço 
para afastá-lo de qualquer possibilidade de colocá-lo em um lugar de menor prestígio. Tania 
Pellegrini, em Milton Hatoum e o regionalismo revisitado, abordou a questão evidenciando 
o início de uma nova linhagem de ficção da região, a partir da década de 1970, com Márcio 
Sousa e seu romance Galvez, o imperador do Acre. Para ela: 

Esse regionalismo revisitado de Hatoum consiste, portanto, numa mescla de 
elementos que brotam de todos os matizes de uma matéria dada por uma região 
específica, com outros advindos de matizes narrativas de inspiração europeia e 
urbana, formadoras de nossa literatura, tudo filtrado por um olhar que contém 
horizontes perdidos num certo oriente e num outro tempo. Com isso, o autor 
revitaliza o gênero, num momento da história da ficção brasileira em que ele 
parecia aos poucos estar se esgotando (PELEGRINI, 2004, p. 129) 

O que Pellegrini faz, nesse sentido, é defender a presença de um regionalismo, cujo 
papel é acentuar as particularidades internas da ficção, como forma de definir sua outridade 
dentro da estrutura geral da sociedade brasileira, sem deixar de revelar uma filiação às fontes 
inspiradoras da literatura brasileira. Na leitura de Pellegrini fica evidenciada a valorização 
da narradora que conta uma história puxando pela memória acontecimentos passados, 
marcados pelo esquecimento, pelo esforço de lembrar e que, definitivamente, deram à ficção 
de Milton Hatoum um lugar especial na tradição dos escritores não só da região como do 
país, uma vez que essa proposta requer uma forma narrativa capaz de atender às nuances das 
personagens e seus conflitos internos. 

Nosso intento não é discutir o tema do regionalismo, já saturado dentre os estudos 
sobre a ficção de Milton Hatoum, mas não se pode deixar de notar o quanto a análise do 
romance poderia iluminar a discussão sobre o tema. No próprio excerto citado de Pellegrini, 
ao falar de “um olhar que contém horizontes perdidos num certo oriente e num outro tempo” 
e afirmar que esse é um traço que contribui para a revitalização do gênero, o quanto não se 
ganharia, em termos de esclarecimento, formular, por meio de uma análise, o que seria esse 
olhar. É o olhar do autor concreto, o homem real Milton Hatoum, o olhar da instância fictícia, 
a narradora? Ou o olhar das personagens? O que Milton Hatoum, de fato, conseguiu realizar 


de diferente ou de parecido com os demais autores de uma tradição à qual ele se filia, 
segundo a autora? A análise narratológica do romance poderia evidenciar melhor uma série 
de observações feitas pela crítica da obra do escritor? 

Tomando por princípio os textos sobre a recepção do autor, abordaremos os trabalhos 
acadêmicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado, que elegeram Relato de um certo 
Oriente como objeto de análise, numa perspectiva mais aproximada da nossa, ou seja, que 
se utilizaram da leitura dos aspectos narratológicos do romance como fundamento para as 
suas interpretações e resultados de pesquisa. Destacamos quatros dissertações de mestrado 
que pretenderam fazer uma análise da narrativa: Exílio e memória na narrativa de Milton 
Hatoum, defendida por Noemi Campos Freitas Vieira, em 2007; Milton Hatoum e o exílio 
como metáfora para a condição do intelectual, defendida por Maria Luiza Almada Moreira, 
em 2007; Viagens, identidade e travessias: uma leitura comparada das obras Relato de um 
certo Oriente, de Milton Hatoum e O outro pé da sereia, de Mia Couto, defendida por 
Aparecida Cristina da Silva Ribeiro, em 2013; As cinzas da cidade: cenas e vivências da 
vida manauara na ficção de Milton Hatoum , defendida por Wilton Mota de Miranda Júnior, 
em 2013. 

As duas primeiras dissertações se inserem no conjunto de estudos sobre o exílio e um 
dos objetivos das duas autoras é analisar a figura do narrador dentro do romance. No trabalho 
de Noemi Vieira, o narrador é tratado como sujeito que desempenha tal papel na narrativa 
em busca de uma identidade que não é determinada. No trabalho de Maria Luiza Moreia, o 
“narrador-personagem” é uma metáfora para a condição do intelectual no exílio. Ambas 
mobilizam categorias da teoria da narrativa, mas o tratamento dado a elas é filosófico e, por 
isso, utilizam as formulações de Walter Benjamin para tratar do assunto9. O interesse pela 
construção da narrativa é grande e visível nos trabalhos, mas a discussão toma outros 
caminhos, partem de uma estrutura concreta (que são os elementos narrativos propriamente 
ditos), para formulações abstratas, que não dão conta de explicar a forma do texto. 

9 Sobre o tratamento dado ao ensaio O Narrador, de W. Benjamin, pela recepção crítica, citamos Gunter Karl 
Pressler: “Importante ressaltar para toda a discussão narratológica que Benjamin não trata no ensaio “O 
Narrador” a questão do narrador fictício no contexto da estrutura narrativa. O ensaio não é uma contribuição 
narratológica stricto sensu. Benjamin trata o narrador e autor real-empírico. O ensaio é uma reflexão filosófica 
sobre a arte de narrar histórias nos séculos passados e, particularmente, sobre o declínio da arte de narrar na 
transição do século XIX para o século XX. Benjamin analisa e caracteriza este narrador; o contador de histórias 
em comparação com o romancista moderno”. (PRESSLER, 2006, p. 321) 

As narrativas auxiliares vêm à tona para os narradores dos romances como 
materiais em suspensão, que pedem um registro, uma forma de edificação que 
sirva como espécie de memorial, na tentativa de escapar ao inexorável 


esquecimento. No entanto, as lembranças constitutivas dessas narrativas são 
também interpretações, pois esses pseudonarradores estão também submetidos à 
ação do tempo e dos escapes providenciais fornecidos pelos mecanismos do 
esquecimento. (VIEIRA, 2007, p. 56) 

Noemi Vieira lê a presença de vários narradores, ou “pseudonarradores”, no romance 
e entende que cada um produz uma “narrativa auxiliar”. As apreciações da autora do estudo 
giram em torno do conteúdo dessas narrativas, ou ainda, de suas possíveis representações, já 
que a tônica do trabalho também são a memória, o esquecimento. Ao optar pelo termo 
“pseudonarrador”, ela nos deixa saber que percebe uma diferença entre o status da narradora 
inominada do romance e os demais personagens que contribuem com o fornecimento dessas 
“narrativas auxiliares”, para usar o termo de Vieira, mas isso não é objeto de seu estudo. 
Outro ponto a ser destacado no estudo que a autora realiza é a comparação com a estrutura 
do clássico árabe, As mil e uma Noites: 

As reflexões em que mergulham os vários narradores destacados em Relato de um 
certo Oriente dão à estrutura da narrativa uma configuração de história-puxahistória, 
à maneira de Sherazade, que luta pela manutenção da vida, contando as 
mil e uma histórias nas noites que a aproximavam da morte. Esse procedimento 
sustenta-se com maior vigor nessa obra, dando-lhe o toque peculiar de colagem 
das várias narrativas recolhidas pela narradora sem nome. (VIEIRA, 2007, p. 68) 

A comparação entre o arranjo dos relatos no romance e a configuração das narrativas 
em As mil e uma Noites também não é objetivo da autora, tanto que a discussão sobre o 
assunto tem uma forma de comentário e acaba se tornando uma espécie de saída para a 
descrição do que ocorre no romance, sem se deter em pormenores. Já o trabalho de Maria 
Luiza Moreira não consegue se desprender das metáforas do próprio romance estudado e as 
repete, assinalando a “voz da narradora” como “um pássaro gigantesco, mas frágil. Ela não 
pretende subjugar as outras vozes a uma voz totalitária, capaz de preencher as lacunas, as 
reticências da memória” (MOREIRA, 2007, p. 35). 

O espaço habitado pela narradora é, por excelência o da incerteza. Da mesma 
forma como se dá com o intelectual que tem o exílio como metáfora para sua 
condição, ela sente-se em constante movimento. Ela abdica de estabelecer uma 
ordem ao seu relato para compor uma narrativa à deriva. Seu processo de escrita 
se assemelha, portanto, com o movimento de um viajante, um remador a navegar 
pelas águas incertas de um rio (MOREIRA, 2007, p. 37) 

Nesse caso, o uso da metáfora como recurso descritivo do texto literário parece mais 
um sintoma da falta de teoria específica que contribuiria para uma leitura mais produtiva do 
texto. Afinal, o que a afirmação de que a narradora “sente-se em constante movimento” 
revela sobre como essa narradora, enquanto uma instância fictícia dentro da obra, opera, ora 


optando por fazer valer seu discurso, ora o discurso das personagens? Dizer ainda que a 
narradora abdica de estabelecer uma ordem ao seu relato, com a finalidade de compor uma 
narrativa à deriva é, ainda, estar preso ao texto literário, pois esses dados são encontrados no 
plano da história narrada. A imagem criada por Moreira lembra ainda o comentário de Flora 
Süssekind que compara a narradora à imagem de Klee. Cabe ao crítico encarar essas 
formulações presentes no texto literário e destrinchá-las, distanciar-se delas, a fim de 
compreender a organização do texto e não se deixar envolver pela sedução da metáfora. 

Outra autora de um estudo sobre a obra definiu a sua forma de lidar com presença de 
“vários narradores” no romance. Aparecida Ribeiro estabeleceu o que ela chamaria de 
narradora da narrativa e narradores na narrativa: 

Sobre os demais narradores na narrativa, os que contribuem na edificação da obra 
literária do escritor manauara, verificamos que são personagens/narradores não do 
romance, mas sim, na narrativa. Assim, quando analisamos a narradora oficial do 
Relato, referimo-nos à designação narradora da narrativa. E quando se trata dos 
demais narradores, referimos aos narradores na narrativa. (RIBEIRO, 2013, p. 
68) 

O interesse de Ribeiro é mapear os vários narradores do romance, pois, segundo ela, 
assim é possível “compreender melhor o emaranhado de vozes que se entrecruzam na 
narrativa” (RIBEIRO, 2013, p. 71). A autora extrai fragmentos de cada capítulo do romance 
para identificar o narrador correspondente e faz uma observação: 

Nos capítulos narrados pelos narradores/personagens no romance, há um recurso 
de diferenciação em relação aos relatos da narradora do romance. A diferença entre 
os relatos dos narradores na narrativa e da narrativa nota-se pela utilização de 
aspas ao iniciar e finalizar cada capítulo da obra. Os relatos dos narradores no 
romance iniciam com a abertura de aspas e terminam com o fechamento. Ou seja, 
são relatados/transcritos para o Relato entre aspas. E nos relatos da narradora do 
romance não há aspas. Diante deste recurso literário observado, a utilização de 
aspas, que diferencia os relatos dos narradores no e do romance, pode-se 
caracterizar uma marca da identificação do relato do outro narrador. Assim, a 
apropriação dos relatos pela narradora oficial, caracteriza o seu devido 
reconhecimento ao transpor a voz do outro narrador para o Relato. Por isso, ela 
transcreve-os entre aspas. (RIBEIRO, 2013, p.72) 

 

A existência desse recurso utilizado no romance de fato foi bem apontada por 
Ribeiro, porém, não é possível colocar que a presença das aspas identifica o que será um 
relato de um “narrador na narrativa” em contraposição ao relato da “narradora da narrativa”, 
simplesmente porque o sexto e o oitavo capítulo, quebram essa tese. No sexto e oitavo 
capítulo a narradora inominada reassume a condução do discurso da narrativa e, mesmo 
assim, eles encontram-se entre aspas. Qual seria, afinal, o papel dessas aspas? Como 
compreendê-las no plano da construção da obra pelo autor e no plano do discurso da 


narradora, a responsável por organizar todo o discurso narrativo, o qual nos dá acesso ao 
mundo ficcional representado? Ribeiro atentou para a questão, mas certamente precisaremos 
encará-la novamente mais adiante em nossa análise. 

Wilton Miranda Júnior, em sua abordagem, observou a forma epistolar do romance 
e que não pode ser colocada em segundo plano no estudo dessa narrativa, uma vez que toda 
obra literária envolve instâncias que se comunicam. A narradora do Relato tem um leitor 
fictício muito bem marcado e definido, evocado muitas vezes por ela, na obra. 

 

A forma de epístola, que insere diversas histórias dentro de outras diversas 
histórias, faz com que o Relato de um certo Oriente tenha uma estrutura especial, 
experimentando o navegar da memória por entre o tempo e o espaço, e ao final 
consegue englobar as memórias de todos os narradores. As relações conflituosas 
da família são atreladas à história de uma cidade decadente, onde a memória, por 
meio de suas incertezas e dúvidas, instaura o papel salvador da imaginação e 
invenção, dos narradores e dos próprios leitores. (MIRANDA JÚNIOR, 2013, p. 
46) 

 

Por outro lado, esse traço característico apontado por ele não é também devidamente 
analisado ao longo do trabalho, pois a teoria utilizada por ele para dar conta dessa moldura 
epistolar do romance não alcança essa estrutura. Miranda Júnior compreende a narradora do 
romance como “organizadora” (MIRANDA JÚNIOR, 2013, p. 49) do conjunto de relatos e 
se apoia na teoria de Benjamin sobre o narrador para discutir a condição dela no romance. 

Dentre as teses de doutorado que também abordam questões narratológicas do 
romance, destacamos a de Vera Lúcia da Rocha Maquêa, intitulada Memórias inventadas: 
um estudo comparado entre Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum e Um rio 
chamado Tempo, uma casa chamada Terra, de Mia Couto, de 2007. Trata-se de um estudo 
comparativo, como se vê pelo título, que busca verificar as estratégias de construção da 
memória e, para isso, ela acompanha o percurso dos narradores das duas obras e as técnicas 
narrativas e temáticas presentes nos romances. Uma das razões que tornam relevante a tese 
de Maquêa para nós é ela apontar e discutir a não mudança no estilo da narrativa, mesmo 
quando “passa de um narrador para outro”, traço apontado por Flora Süssekind, como já 
dissemos, mas que não parece ter se transformado em inquietação para os estudiosos que se 
dedicaram ao romance. 

No entanto, apresenta-se o estilo invariável da narrativa como um todo, não sendo 
possível precisar a fronteira entre os discursos específicos dos narradores. Mas isto 
é apenas mais uma das estratégias narrativas de MH neste romance, pois que os 
pontos de vista individuais dos narradores mantêm fragmentos complementares, e 
por vezes, dissonantes, entre si, pela perspectiva do olhar de cada um. Com isto, 
podemos redimensionar a forma do relato como qualquer outra forma de 
representação no campo da linguagem, cuja transparência é uma ilusão, uma 


perversa maneira de conceber a possibilidade de dizer alguma coisa 
objetivamente. (MAQUÊA, 2007, p. 127-128) 

A autora da tese não encarou a questão como um aspecto negativo; ao contrário, 
Maquêa identificou aí uma estratégia utilizada por Milton Hatoum para ressaltar “os pontos 
de vista individuais dos narradores”, pois, como pensa ela, esses narradores dão informações 
“complementares e às vezes dissonantes”. A diferenciação entre eles estaria, portanto, nesses 
fragmentos de linguagem, não do estilo, que acusam uma perspectiva específica. Nesse 
sentido, a falta de variação no estilo ilustraria que a transparência na linguagem é ilusória. 
Maquêa “resolve” a questão, respondendo a uma característica da construção narrativa com 
uma leitura interpretativa. Não existe uma análise tampouco uma teoria que apoie a leitura 
do texto feita por ela. Ainda assim, a autora observa o fenômeno presente no texto e, mesmo 
não aplicando o termo “ponto de vista” de forma conceitual, nota que existem perspectivas 
diferentes quando se trata dessa variedade de narradores observada. Mais adiante, Maquêa 
também fala sobre a presença de aspas na maioria dos capítulos do romance: 

O único capítulo narrado pela relatora é o primeiro, com duas sessões, sem aspas. 
A partir daí, os capítulos seguintes aparecem narrados por outros narradores, todos 
entre aspas. Mesmo o sexto e o último, o oitavo; que são narrados por ela, vêm 
entre aspas. As aspas podem significar duas coisas: a primeira, que ao relatar, a 
narradora preserva o depoimento conforme foi narrado, não alterando sua forma; 
a segunda coisa, que ao relatar, a narradora preserva o conteúdo, mas o ‘traduz’ 
para que o irmão possa compreender. (MAQUÊA, 2007, p. 128-129). 

Esse foi um dos trabalhos que observou adequadamente como ocorrem essas aspas 
no romance e que passou despercebido aos olhos de Aparecida Ribeiro, anos depois. Em 
2007, a autora do estudo já notou que havia aspas mesmo nos capítulos em que o próprio 
discurso da narradora conduzia a história. Ela não deixou de comentar o que, a princípio, 
parece uma incoerência do texto, tampouco simplificou a questão como fez Aparecida 
Ribeiro. Maquêa tenta solucionar o enigma: 

A segunda hipótese é a mais possível já que no final do romance, ela mesma diz 
que foi preciso traduzir a língua estrangeira daquelas vozes para que ele pudesse 
compreender. Essa hipótese é ainda a mais aceita tendo em conta que o registro 
estilístico é uniforme do início ao final do romance, para todos os narradores. 
Todos narram e descrevem. Mas só ela relata. (MAQUÊA, 2007, p. 128-129) 

Maquêa levanta duas hipóteses, que logo em seguida se transformam em uma tese. 
Esse é um dos exemplos de colocações prematuras sobre questões que só poderiam ser 
definidas caso fosse realizada uma análise completa do texto. O estudo do texto não aparece 
como princípio básico para tal abordagem e autora opta por uma saída com base na 
interpretação do texto. Nesse sentido, Maquêa utiliza o termo “traduzir”, que não está 


presente no romance, no discurso da narradora, para fazer referência ao trecho “restava então 
recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as 
outras vozes (HATOUM, 2017, p. 189). Entendendo essa fala da narradora como confissão 
de uma tradução, a saída para o enigma das aspas foi caminhar diretamente para uma leitura 
interpretativa. Ainda que se tratasse de uma tradução, tal resposta não dá conta de por que 
até mesmo nos capítulos narrados pela narradora encontramos aspas. A narradora precisou 
“traduzir” a fala dos estrangeiros e a sua também? 

Entendendo a narradora como uma “racionalidade organizadora” (MAQUÊA, 2007, 
p.129), a autora admite então a existência de vários narradores no romance, tal como a 
maioria dos pesquisadores: “O Relato então tem vários narradores, mas podemos dizer que 
tem uma relatora. No sentido que o relator é um compilador, um sujeito que organiza o texto” 
(MAQUÊA, 2007, p.130) e encaminha finalmente a sua interpretação sobre o romance: 

Mas ao final, as aspas denunciam que a narradora se deslocou na relatoria e se 
colocou à figura do autor. O autor entendido no sentido que Foucault concebe o 
autor, como uma figura do discurso, uma voz que coordena a narrativa e que aqui 
no caso pode ser vista como alter-ego do autor (MAQUÊA, 2007, p. 135) 

Maquêa defende a ideia de que a narradora é um alter ego do autor do romance. Ao 
compreender a existência de vários narradores e a posição da narradora como relatora, uma 
compiladora dos relatos, a autora entende que a presença das aspas nos capítulos conduzidos 
por ela denuncia a presença do autor no discurso. Essa declaração implica dizer que Maquêa 
reconhece que existe alguma diferença hierárquica entre a narradora e os demais narradores 
e que narrador e autor são instâncias que se mostram de forma conflitantes dentro do texto. 
A interpretação de que o autor está escondido por trás da narradora já fora apresentada por 
Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo em um estudo publicado em 2006, intitulado 
Milton Hatoum: Itinerário para um certo Relato10. Trata-se de um estudo dividido em oito 
partes, em que autora vai dos aspectos concretos (autor e obra propriamente dita) aos 
aspectos fictícios que compõem a obra (narrador, história, personagens). Ela começa, 
portanto, apresentando quem escreveu a história: fala sobre Milton Hatoum, o homem real, 
nascido em Manaus, descendente da mistura de brasileiros e imigrantes árabes, apresenta 

10 Esse trabalho é a segunda parte do projeto Cultura Brasileira, dedicado à literatura brasileira, em que a autora 
se dedicou a escrever sobre o prosador Milton Hatoum e Olga Savary, poeta. Não se trata, portanto, de nenhum 
estudo com intenção de obtenção de título. 

Esse mesmo estudo sobre Milton Hatoum foi publicado em 2017, na coletânea Arquitetura da Memória: 
ensaios sobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, organizado por Maria 
da Luz de Cristo, com o título “Milton Hatoum”. 


brevemente a obra a ser estudada, depois realiza seu itinerário pelo desenvolvimento da 
narrativa. 

Compartilhando e citando a leitura de Maria Zilda Cury (2000) sobre a existência de 
“narradores com vozes próprias” no romance, Toledo define o romance de Hatoum da 
seguinte forma: 

O Relato é um romance de memórias, polifônico, com cinco narradores. O 
primeiro narrador relembra alguns fatos, pessoas, situações, depois passa a palavra 
para um segundo, este para um terceiro e assim sucessivamente. Um parece 
completar o anterior, em pé de igualdade, sempre em busca do que aconteceu no 
passado (TOLEDO, 2006, p. 35) 

 

Entendendo que o romance é polifônico com seus cinco narradores em mesmo pé de 
igualdade, ela faz observações que tocam na questão estrutural da narrativa, isto é, a autora 
percebe o que está presente na maneira como os acontecimentos aparecem dispostos. Por 
exemplo, Toledo verifica que, a cada novo capítulo do romance, nem todos os personagens 
vão estar presentes na história, pois as personagens passam a ser vistas umas por meios das 
outras, “o que leva o leitor a conhecê-las é aquilo que pensam umas das outras, e não apenas 
as palavras que elas pronunciam quando se encontram juntas em cena” (TOLEDO, 2006, p. 
38). Essa observação recai sobre o aspecto da perspectiva da narrativa que se altera a cada 
capítulo no romance, mas o trabalho de Toledo não apresenta nenhum diálogo com a teoria 
da narrativa. 

Outro ponto observado por ela e que merece destaque é o que ela mesma chama de 
uma questão fundamental dentro da obra: “Havendo vários narradores, além de várias facetas 
da verdade, devem haver também vários estilos, vários manejos da linguagem” (TOLEDO, 
2006, p. 39). Trata-se mais uma vez da mesma observação feita por Süssekind, reiterada por 
Maquêa, mas que, definitivamente, até o momento, nunca virou alvo de uma análise crítica 
do romance. Toledo incrementa a questão, estabelecendo uma comparação com o fenômeno 
da heteronímia em Fernando Pessoa que, a cada heterônimo, cria uma nova poesia totalmente 
diferente, principalmente no estilo e na linguagem: 

a cada heterônimo, quer seja por questão de verossimilhança, quer por razões 
transcendentes, corresponde um estilo peculiar – de forma que é perfeitamente 
possível reconhecer, inclusive linguisticamente, quando se trata de Fernando 
Pessoa - ele mesmo (TOLEDO, 2006, p. 39-40) 

 

 Toledo também se utiliza do exemplo da “visão multiperspectivada de Ronaldes de 
Melo e Souza da obra euclidiana”11 (TOLEDO, 2006, p. 40): 

11 Toledo coloca uma nota de roda-pé, informando a sua referência: conferência de abertura da Semana 
Euclidiana em São José do Rio Pardo, em 9 de agosto de 2003, proferida por Ronaldes de Melo e Souza, “A 


Geopoética de Euclides da Cunha”. Disponível em: 
www.casaeuclidiana.org.br/texto/ler.asp?ld=711secao=111. 

 

Para tanto propõe ‘a mascarada do narrador multiperspectivado’, enxergando em 
Euclides o ‘observador itinerante, pintor da natureza, encenador teatral, 
investigador dialético, refletor dramático e historiador irônico’. A cada uma dessas 
máscaras correspondem peculiares estilísticas que contribuem para a respectiva 
identificação. (TOLEDO, 2006, p. 41) 

 

A autora destaca dois exemplos, portanto, de escritores que se valeram da mudança 
de estilo para afirmar as diferentes personalidades a que esses estilos estão diretamente 
atrelados. Ela inclusive lembra o aforismo de Buffon, usado por comentaristas do estilo 
euclidiano: “O estilo é o homem”. Mas ao retornar a questão para Milton Hatoum, Toledo 
constata: 

Há cinco narradores: a narradora propriamente dita, não nomeada, que vai cedendo 
a palavra, respectivamente, a Hakim, a Gustav Dorner, ao “avô” e, finalmente, a 
Hindié Conceição. O estilo, contudo, é sempre o mesmo; nem o estilo é homem, 
nem o homem é os estilos, porque linguisticamente é impossível identificar 
(TOLEDO, 2006, p. 42). 

 

Pegando um trecho de cada capítulo do romance de Milton Hatoum, Toledo acaba 
por finalmente confirmar que não existe qualquer mudança na linguagem ou no estilo do 
romance. O movimento da autora em busca de um modelo ao qual possa comparar o romance 
de Hatoum a leva em direção aos clássicos árabes: Mil Histórias sem Fim de Malba Tahan 
e as Mil e uma Noites. Esses dois modelos seriam as inspirações para esse tipo especial de 
polifonia que ela identifica em Hatoum. 

O Relato mescla essas duas espécies de narrativas plurais, porque, se há passagem 
de um narrador para outro, não há, porém, diferença de estilos. Na realidade, a 
narradora é uma só e reconta as narrativas ou depoimentos das demais 
personagens, nivelando-os por não conseguir organizá-los nem reproduzi-los com 
total fidelidade (TOLEDO, 2006, p. 43) 

 

Ao refletir sobre a relação entre As mil e uma Noites e Relato, Toledo afirma que a 
narradora é uma só, reformulando a ideia dos cinco narradores defendida em páginas 
anteriores. Como não fazia parte da sua proposta de análise um estudo narratológico, 
questões como essa não ganham precisão no trabalho: afinal quantos narradores existem no 
romance? A maioria dos trabalhos, como se pôde verificar, aponta a existência de vários, 
ainda que, em dados momentos da discussão, deixem transparecer o reconhecimento de uma 
diferença hierárquica entre a narradora e os outros, daí ela aparecer nesses trabalhos como 
“compiladora”, “relatora”, pois, já que se deu a todos o status de narrador, ela precisaria de 
um termo a mais para aumentar o seu nível de importância dentro do texto. Para Toledo, 


“essa narradora ‘arquivista’ é, até certo ponto, um recurso retórico de Hatoum. Examinando 
do alto e de longe, ‘planando como um pássaro’” (TOLEDO, 2006, p. 44). 

Toledo, depois de selecionar trechos de cada capítulo para apontar o mesmo estilo 
presente em cada um, e não enxergar nisso uma falha, como Süssekind, entendeu nisso uma 
“sutil e matreira intenção” (TOLEDO, 2006, p. 45) do próprio autor em se esconder por trás 
da narradora do romance: “Assim, a narradora, em sua linguagem culta, econômica, 
misteriosa, impressionista e plástica, é a voz do próprio Hatoum, resgatando, recriando e 
transfigurando seu passado” (TOLEDO, 2006, p. 45). A estudiosa recorre a entrevistas feitas 
com o autor que, por vezes, afirmou a relação entre o romance e a suas experiências pessoais, 
porém, trata-se de uma saída interpretativa para uma questão puramente textual e que 
permanece sem resposta, ou tentativa de resposta. Dizer que o estilo permanece o mesmo, 
porque Hatoum está escondido por trás da narradora, é uma leitura interpretativa do 
fenômeno, realizada com base no conhecido verso de Fernando Pessoa “O poeta é um 
fingidor” citado por ela. Tanto que depois ela problematiza a escolha de uma narradora 
feminina: “Por que teria o autor escolhido uma máscara feminina para esconder-se e revelarse 
ao mesmo tempo? Pode-se logicamente pensar em Sherazade” (TOLEDO, 2006, p. 47). 

A tese de doutorado Entre-narrar: Relatos da fronteira em Milton Hatoum, 
defendida em 2007, por Daniela Birman, toca nos pontos que ressaltamos nas abordagens 
supracitas: a crítica de Flora Süssekind, a relação entre a narradora do romance e a figura de 
Sherazade e a presença das aspas no início dos capítulos do romance. Essa tese é interessante 
para a nossa pesquisa, uma vez que a autora, mesmo amparada na filosofia e na psicanálise, 
dedicou-se a tratar sobre os narradores de Milton Hatoum e fez muitas apreciações sobre a 
narradora de Relato de um certo Oriente. Seguindo um estilo mais ensaístico, o trabalho 
aborda os três primeiros romances do escritor, mas é sobre o primeiro que Birman se debruça 
com mais atenção, já que ela defende a ideia de que os narradores de Hatoum são escritores 
de livros que estão dentro de outro livro, ou, como ela mesma coloca na introdução da sua 
tese, o trabalho se ocupa dos “tralhotos-narradores dos três romances de Milton Hatoum” 
(BIRMAN, 2007, p. 12), em referência ao peixe mencionado no conto A casa ilhada de A 
cidade ilhada e cujo olho fica metade fora, metade dentro da água. A autora discute 
características que ela identifica nesses narradores e aborda a “falta de origem”, “solo 
fundador”, “camada do originário”, mobilizando autores como Michel Foucault e Maurice 
Blanchot. Do mesmo modo, recorre às ideias presentes no texto de Benjamin sobre o 
narrador, a impossibilidade de narrar, a atrofia da memória e da experiência coletiva na 


modernidade. Ela apresenta também dados biográficos do autor, Milton Hatoum, 
comentários e entrevistas, que, segundo ela expõe, não são usados como resposta a uma 
interpretação do texto literário, mas que atendem a um diálogo necessário, visto que não se 
pode separar um texto de outro. 

Diferentemente de Maquêa e Toledo, Birman não defende a ideia de um Milton 
Hatoum escondido por trás da narradora, isto é, a categoria do autor não é mobilizada como 
um componente da estrutura narrativa, mas ela não deixa de identificar coincidências entre 
a biografia do autor, homem descendente de imigrantes, e o posicionamento da narradora 
“numa zona fronteiriça: nem dentro nem fora de Manaus” (BIRMAN, 2007, p. 65). Nesse 
sentido, é possível dizer que o autor é sempre “convidado” a aparecer diante de sua obra e, 
no caso do romance em questão, a crítica sempre se mostra bastante interessada nas relações 
que se podem realizar entre autor e obra. Vejamos como isso aparece na leitura de Birman: 

A primeira dessas informações biográficas consiste na ascendência árabe de 
Hatoum. O escritor é filho de mãe amazonense de origem libanesa, cristã, e de pai 
libanês, muçulmano. Durante 50 anos, seu pai levou sua mãe à igreja aos 
domingos. Isso não o afastou, contudo, do hábito de rezar o Alcorão. Impossível 
esquecer, nesse contexto, a caracterização dos casais das famílias nucleares dos 
dois primeiros romances do autor. Ao relatar essas lembranças, Hatoum critica o 
estereótipo preconceituoso que reduz diferentes sociedades a uma imagem de 
intolerância e radicalidade (BIRMAN, 2007, p. 36) 

 

Enfatizando como Birman trata a narradora, vale a pena destacar que ela identifica 
“um movimento duplo” desta, mas sem ir em direção a uma análise narratológica, até porque 
seu aporte teórico não lhe serve para estes fins. A narradora do romance torna a si mesma 
personagem da história que narra: 

Nossa narradora é marcada, desse modo, por um duplo movimento, que, por um 
lado, torna-a personagem da trama e, por outro, esconde-nos seu nome, dados 
fundamentais sobre sua história (de “onde veio”, aonde mora, o que faz) e outros 
atributos das figuras romanescas clássicas, como sua descrição física e seu perfil 
“moral” (BIRMAN, 2007, p. 72) 

 

O interesse de Birman recai sobre os mistérios que a narrativa do romance carrega e 
sobre os quais só se pode especular, lançar hipóteses, pois não se pode preencher certas 
lacunas da história devido à ausência de informações concretas que o próprio texto não 
oferece: 

interessa-nos indagar o que a ocultação do nome indica no interior da trama em 
questão. Esse anonimato, que dá ares enigmáticos a nossa personagem e faz com 
que sua presença torne-se evanescente e por vezes mesmo espectral, parece a 
princípio apontar para a ausência de origem sobre a qual falamos mais acima, 
relacionada à idéia de verdade e de essência. Desse modo, ao entrar em cena sem 
rosto, a narradora nos aponta e enfatiza a inexistência desta identidade primeira e 
verdadeira, inexistência com a qual ela se defrontará em sua viagem de retorno a 
Manaus e em sua exploração identitária. A opção pelo anonimato, neste caso, 


constitui um modo de destacar a ausência de origem, em vez de optar pelo uso de 
uma máscara, assumindo-a como tal ou fazendo-a passar por uma imutável 
essência. (BIRMAN, 2007, p. 73) 

 

Para tratar dessas lacunas, a autora recorre à noção de Unheimlich descrita por Freud, 
que guia toda a sua leitura sobre o anonimato da narradora, o impacto da morte de Soraya 
Ângela e da morte de Emilie para a narradora. Trata-se de uma leitura psicanalítica, que 
parte do texto literário para uma interpretação: a busca por uma imagem recalcada, a 
insinuação de um afeto Unheimlich. Em seguida, Birman vai falar da impossibilidade de a 
narradora “dar conta de sua tarefa”, nos termos de “um típico contador de história”, deixando 
“lacunas em seu relato – permitindo que o leitor interprete ou complemente a história -, 
dividindo seu espaço com outros narradores e tratando a si mesma como uma personagem” 
(BIRMAN, 2007, p. 119). A autora cita Genette ao caracterizar a maneira como a narradora 
escolhe reproduzir esse outro discurso do qual ela abre mão: 

Os discursos dessas outras fontes são relatados, portanto, da forma mais mimética 
possível, de acordo com a classificação e qualificação de Gérard Genette: em 
discurso direto, reproduzido pela narradora. E por meio da reprodução dos relatos 
de outrem nossa personagem os transforma em narradores, abrindo mão, 
aparentemente, de mediar a transmissão da história. (BIRMAN, 2007, p. 120) 

 

Apesar da referência em Genette, do ponto de vista narratológico, torna-se inviável 
descrever o fenômeno ocorrido na narrativa de Hatoum da maneira como a autora descreve: 
o narrador é a instância responsável pelo discurso da narrativa e pertence a ele a função de 
reproduzir o discurso das personagens, seja em discurso direto ou não. Mas, se a narradora 
é vista na condição de personagem, ela não pode conferir aos outros personagens o status de 
narrador. Mais uma vez, em um texto crítico, podemos observar a atenção sobre um 
fenômeno que pode ser melhor analisado com o aparato teórico metodológico da 
narratologia. Birman ainda coloca que a personagem aparentemente abre mão da mediação 
da história. A mediação dos discursos não seria uma tarefa do narrador? E quais implicações 
a análise por esse viés traria para a leitura e compreensão do texto narrativo? 

Quanto à questão das aspas que marcam o início e o fim de cada capítulo do romance 
e a aparente incoerência das aspas nos sexto e oitavo capítulos, a autora coloca o seguinte 
sobre a narradora: 

Com efeito, no sexto e oitavo capítulos do romance, ela isola a própria voz entre 
aspas, expondo a necessidade de criar um outro para falar, pois seu eu não coincide 
suficientemente com ele mesmo para que ela referencie o mundo com segurança 
e, desse modo, conte sua história com a certeza, ou a despreocupação, de que esta 
não constitui uma versão dos acontecimentos, repleta de interpretações, mal 
entendidos ou visões distorcidas da realidade. Ao vestir a máscara de um 
personagem, nossa narradora revela, simultaneamente, sua dificuldade de narrar a 


história de modo isento e uma preocupação em não enganar o leitor, em revelar o 
caráter ilusório, de construção, do relato que lemos. (BIRMAN, 2007, p. 128) 

 

 Birman entende que a narradora reproduz a fala das personagens, mas expressa a 
“apropriação do discurso do outro por meio das aspas” (BIRMAN, 2007, p. 123). Tal 
explicação é possível apenas por meio da interpretação. É preciso então sair do texto e lançar 
hipóteses para que se obtenha alguma resposta sobre o que ocorreu no texto. Haveria outra 
forma de compreender tal acontecimento, tomando por base uma análise do texto narrativo? 
Sobre a transposição das diferentes dicções das personagens que assumem a narrativa, 
Birman entra em discordância com Süssekind, não enxergando nesse aspecto um demérito 
no texto: “Diferentemente da crítica, não consideramos a enunciação da existência de uma 
única voz norteadora do Relato uma explicação de caráter quase didático, ou atravessada 
pela vergonha, proveniente da dificuldade detectada por ela em Hatoum”. (BIRMAN, 2007, 
p. 189). Birman lê o romance como “um jogo de encenação” e afirma que a dificuldade de 
narrar é da personagem, dificuldade essa vinculada a todas as questões filosóficas e 
psicanalíticas apontadas pela autora ao longo da tese. Ela tira das mãos do autor a 
responsabilidade pela questão: 

Nossa interpretação, esclareçamos, independe do projeto original do autor, pois 
refere-se especificamente à obra final do romance, na qual identificamos tal jogo 
de encenação, e não à intenção de Hatoum. Desse modo, não nos interessa se ele 
falhou na execução de seu plano (e a encenação de nossa narradora diz respeito às 
suas próprias dúvidas e soluções encontradas para reparar o estrago) ou se teve 
êxito na realização deste, sendo fiel a supostas intenções iniciais. (BIRMAN, 
2007, p. 189-190) 

 

A importância que cada crítico dá para a ausência de mudança de estilo entre os 
capítulos varia de acordo com a abordagem teórica adotada. Birman não vê razão para se 
aprofundar no assunto, uma vez que as conclusões a que ela chegou não sofrem modificação 
caso esse aspecto do texto seja estudado. Ao afirmar que a narradora “não consegue dar 
conta da tarefa”, tomando, inclusive, por base o próprio discurso dela ao final do romance, 
toda e qualquer observação que se passa fazer sobre o texto é inútil. Confiar no discurso da 
narradora, acreditar que ela realmente gravou aquelas falas, a fim de usá-las na composição 
do relato pode se revelar uma grande ingenuidade se partirmos para uma análise do texto. 

A comparação entre o romance e As mil e uma Noites também está presente na tese 
de Birman. A referência é utilizada como uma relação certeira, como se fosse de fato 
explícita no romance: 

Outro modelo com o qual poderíamos comparar esta reunião de vozes, o qual sem 
dúvida nenhuma o romance de Hatoum cita e se utiliza, consiste naquele das Mil 


e Uma Noites. Como se sabe, os relatos das Noites se desdobram em outras 
histórias que, por sua vez, introduzem novos personagens, com mais narrativas e 
personagens, e assim por diante. De acordo com o que exporemos logo adiante, 
nossa narradora se deixará perturbar pela potência reflexiva contida na estrutura 
em abismo das Noites, capaz de abalar a separação entre realidade e ficção. 
Chamamos a atenção, contudo, para uma distinção fundamental entre os dois 
modelos. Pois, nossa narradora não tece, como Sherazade, diferentes histórias, 
mas várias versões, rememorações e relatos a respeito da mesma história 
(BIRMAN, 2007, p. 123) 

 

A relação entre Relato de um certo Oriente e o clássico As Mil e uma Noites acabou 
se tornando um consenso entre os críticos do romance, de tão frequente e repetida que é a 
referência. Em todos os trabalhos, pelo menos em algum momento, a obra árabe é 
mencionada, ainda que nunca se tenham realizado antes um estudo comparativo entre os 
textos12. A relação se construiu por essas vias: Milton Hatoum é descendente de árabes, o 
romance fala de uma família de origem árabe; a história é construída graças aos relatos dos 
personagens que aparecem reunidos pela narradora que tenta formar um único relato. A obra 
As Mil e uma Noites, como chegou até nós aqui no Ocidente, é um texto escrito, em que a 
tradição das narrativas orais aparece representada na figura da Sherazade, que passa a narrar 
histórias com a finalidade de entreter a irmã e o marido, evitando a própria morte. Mesmo 
não sendo o objetivo desse trabalho comparar metodologicamente os dois textos, não se pode 
deixar de apontar pelo menos três pontos que impediriam uma relação tão apressada entre 
eles, como tem feito crer a crítica. 

12 Marcos Frederico Krüger Aleixo foi quem mais se aproximou de um estudo assim. Escreveu o texto O mito 
de origem em Dois irmãos na já mencionada coletânea Arquitetura da Memória, de Maria da Luz Cristo, 
porém, o estudioso não fez um trabalho comparativo de fato, não trabalhou com a leitura dos dois textos, 
ficando no nível das relações superficiais que existem entre eles. 

Em primeiro lugar, a narradora do Relato de um certo Oriente recolhe os relatos para 
mandar informações para o irmão sobre um espaço e pessoas que fizeram parte da infância 
compartilhada por eles, e os reúne todos para dar sentido à história de vida dela mesma, uma 
vez que se encontrava doente em uma clínica psiquiátrica. Apesar dos problemas, a narradora 
não sofre nenhum tipo de subjugação pela sua condição de mulher. Ela não lutava 
literalmente para sobreviver, ganhar mais um dia de vida, ao juntar esses relatos, como fazia 
Sherazade, que dependia da sua posição de narradora para garantir um dia seguinte, como se 
pode ler: 

Foi até a irmã mais nova, Dīnārzād, e lhe disse: Minha irmãzinha, preste bem 
atenção no que vou lhe recomendar: assim que eu subir até o rei, vou mandar 
chamá-la. Você subirá e, quando vir que o rei já se satisfez em mim, diga-me: ‘Ó 
irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma historinha’. Então eu 
contarei a vocês histórias que serão o motivo da minha salvação e da liberdade de 


toda esta nação, pois farão o rei abandonar o costume de matar suas mulheres”. A 
irmã respondeu: “Sim”. (As mil e uma Noites, 2005, p. 56) 

 

Sabe-se também que a obra As mil e uma Noites, como a conhecemos, é uma espécie 
de invenção ocidental, pois esta não é uma obra oriental pronta e acabada que simplesmente 
foi descoberta e traduzida para os países ocidentais. O pesquisador francês Antoine Galland 
(1646-1704), interessado nas narrativas orais que conheceu ao longo de sua estadia pelo 
Oriente, acrescentou, inclusive, histórias que nem constavam no “original” e trouxe a 
novidade em 1704 para a França, onde a obra foi muito bem recebida e prestigiada. Tendo 
se tornado um imenso sucesso, As mil e uma Noites ganhou uma infinidade de traduções 
para outros idiomas, tornando-se uma obra reconhecida por todos como um clássico do 
mundo oriental13. Sabendo disto, de que maneira melhor poderia se pensar uma relação entre 
tal obra e o romance de Hatoum, sem cair no lugar comum de um parentesco árabe entre os 
dois textos? 

13 Isso para resumir a história extremamente complexa que é a de As Mil e uma Noites. Paulo Horta, professor 
assistente de Literatura, de NYU-Abu Dhabi, em uma interessante entrevista para Harvard X, conta detalhes 
sobre o seu trabalho com a obra, que foi recebendo textos e mais textos ao longo de sua existência. 
Agradecemos ao colega José Francisco da Silva Queiroz pela referência. 

 

Se não se critica por essas vias, pode-se falar, também, da nada aparente, semelhança 
entre as formas como os relatos organizados pela narradora do romance de Hatoum e as 
histórias narradas por Sherazade estão dispostas cada uma em suas respectivas obras: 

Dīnārzād pigarreou e disse: “Minha irmãzinha, se você não estiver dormindo, 
conte-me uma de suas belas historinhas com as quais costumávamos atravessar 
nossos serões, para que eu possa despedir-me de você antes do amanhecer, pois 
não sei o que vai lhe acontecer amanhã”. Šahrāzād disse ao rei Šāhriyār: “Com a 
sua permissão eu contarei”. Ele respondeu: “Permissão concedida”. Šahrāzād 
ficou contente e disse: “Ouça”. 

 

O narrador de As mil e uma Noites não participa da história que conta. Quando as 
personagens Dinazard, Sherazade e Shariar falam em discurso direto, essas falas são 
introduzidas entre aspas. Nesse sentido, a distinção entre o discurso do narrador e das 
personagens é muito bem marcada no texto. Do momento em que Sherazade diz “ouça”, em 
diante, ocorre uma divisão no texto: muda-se o parágrafo e aparece uma indicação do 
primeiro conto a ser narrado pela personagem, assim: 

Iª O mercador e o gênio 

 Disse Šahrāzād: conta-se, ó rei venturoso, de parecer bem orientado, que 
certo mercador vivia em próspera condição, com abundantes cabedais, dadivoso, 
proprietário de escravos e servos, de muitas mulheres e filhos; em muitas terras 
ele investira, fazendo empréstimos ou contrariando dívidas... (As mil e uma Noites, 
2005, p. 56) 


Sherazade sai da condição de personagem e se torna narradora, porque ela introduz 
uma outra narrativa e conta uma nova história, a do mercador e o gênio. Em relação à essa 
história do mercador e do gênio, ela assume a posição de narradora, mas em relação Às Mil 
e uma Noites, Sherazade não deixa de ser personagem, tanto que, no início do conto do 
mercador, o narrador avisa que dará a palavra à personagem Sherazade: “Disse Šahrāzād”. 
Para compreender, narratologicamente, a questão vale a pena ver como Gérard Genette 
categorizou a situação de Sherazade em seu trabalho, O discurso da narrativa. Genette expõe 
um quadro, a fim de sistematizar o estatuto do narrador, levando em conta o nível narrativo 
em que ele se encontra e a presença ou ausência dele em relação à história que conta. Nesse 
sentido, Sherazade, dentro da terminologia de Genette, é narradora “intradiegética”, pois 
encontra-se no interior da diegese de As mil e uma noites, e é “heterodiegética”, por não estar 
presente nas histórias que narra. (GENETTE, 1995, p. 247) 

 Situação completamente diferente acontece em Relato de um certo Oriente, em que 
todos os capítulos são apresentados por um “eu” que participa da história que conta. No 
romance de Milton Hatoum, o discurso da narradora e as falas das personagens são expressos 
a partir de seus “próprios pontos de vista”. Inicialmente, a narradora, apesar de inominada, 
tem seu papel bem marcado, porém, depois, ela dá a palavra aos demais personagens e cada 
um deles, ao falar, imediatamente se coloca dentro do discurso e da história. Não se pode 
falar e repetir, portanto, que a narrativa do romance de Hatoum e a d’As mil e uma Noites se 
assemelham. No mínimo, é necessário reconhecer os diferentes estatutos assumidos tanto 
pela narradora do romance quanto por Sherazade. 

 

2.2 A Narratologia como proposta teórica para este estudo 

 

O levantamento da crítica contribui para a identificação do que ainda é necessário 
fazer para o melhor conhecimento do texto literário. As inúmeras possibilidades de associálo 
a outros textos literários e de estudá-lo segundo variados referencias teóricos não diz nada 
além do que todo estudioso de literatura já sabe: a Literatura guarda, em si, enorme potencial 
de desdobramentos sobre as questões humanas e de diálogo com outras áreas do 
conhecimento. Porém, sendo ela constituída de texto, é fundamental que a crítica também 
examine com atenção essa construção, isto é, a própria narrativa do romance. Ainda que 
muitos trabalhos apontem como intenção o estudo da estrutura narrativa, é possível notar 
nessas abordagens um distanciamento da ideia de um estudo do texto, principalmente, 


porque as teorias escolhidas não acolhem o problema de forma devida, levando a discussão 
a se desprender do texto. Nesse sentido, a Narratologia aparece aqui como teoria e apoio ao 
estudo do texto, preenchendo as lacunas deixadas pelos trabalhos já produzidos sobre a obra. 
Essa teoria será nossa guia para a leitura do romance e nos fornecerá os conceitos que 
fundamentarão toda a análise. 

Bem sabemos que, antes de iniciar essa análise, cabe apresentar brevemente um 
panorama da situação do debate em torno dessa teoria. Afinal, além de ter contribuído com 
terminologias e conceitos, tais como as tipologias de narrador e conceitos de espaço, tempo, 
personagem, enredo, como essa teoria desenvolveu seus métodos ao longo do tempo? Em 
artigo recente, publicado em 2017, Da Análise Estrutural da Narrativa (1966) à 
Narratologia, de Wolf Schmid (2014). Um breve histórico (também da Terra brasilis), 
Gunter Pressler relembra a mobilização de estudiosos em torno dessa teoria: a publicação da 
Revista Communications nº 8, em 196614, trazendo artigos de autores que compartilhavam 
das ideias fundamentadas pelo Estruturalismo francês, interessados no estudo da narrativa. 
A inquietação de Roland Barthes em torno de algo tão numeroso e presente na vida do 
homem, a narrativa, abre caminhos para os outros textos em sequência, particularmente, o 
de Tzvetan Todorov, que é quem emprega o termo Narratologia15pela primeira vez. A 
reflexão de Barthes presente no texto Introdução à análise estrutural da narrativa chama a 
atenção para a necessidade de se teorizar o estudo da narrativa. 

14 No Brasil, a primeira tradução desse conjunto de textos ocorre em1976. 

15 “O livro observa uma ciência que ainda não existe, vamos chamá-lo narratologia, a ciência da narrativa” 
(TODOROV, T. A Gramática do Decameron, trad. bras. Leyla Perrone-Moisés, 1982, p. 10) 

16 Vale lembrar o encontro entre o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o linguista Roman Jacobson. Por causa 
da Segunda Guerra Mundial, Lévi-Strauss viveu entre 1941 e 1947 nos Estados Unidos. “Foi em Nova York 
que se deu o encontro de Lévi-Strauss com o linguista russo Roman Jakobson – criador do método de análise 
estrutural da linguagem -, que determinou a ‘cristalização’ do estruturalismo no pensamento do antropólogo, 
como afirma Emmanuelle. A historiadora reproduz a lembrança de Lévi-Strauss: ‘Na época eu era estruturalista 
ingênuo. Eu praticava o estruturalismo sem saber. Jakobson me revelou a existência de um corpo de doutrina 
já constituído numa disciplina que eu jamais praticara: a linguística. Para mim, foi uma iluminação” (Roberto 
S.G.Castro sobre a biografia do antropólogo da autoria de Emmanuelle Loyer 
(https://jornal.usp.br/cultura/livro-mostra-em-detalhes-a-trajetoria-de-claude-levi-strauss/acesso 31/10/2020). 

Para descrever e classificar a infinidade das narrativas, é necessário pois uma 
teoria (no sentido pragmático do qual se acabou de falar), e é para pesquisá-la e 
esboçá-la que é preciso inicialmente trabalhar. A elaboração desta teoria pode ser 
grandemente facilitada se, desde o início, ela for submetida a um modelo que lhe 
forneça seus primeiros termos e seus primeiros princípios. No estado atual da 
pesquisa, parece razoável dar como modelo fundador à análise estrutural da 
narrativa a própria linguística. (BARTHES, 2008, p. 22) 

 

Assim, em princípio, o estudo da narrativa, pensado no momento em que o 
Estruturalismo se fazia presente no debate acadêmico de Letras16, parte da ideia da existência 


de uma estrutura narrativa e de um procedimento dedutivo para o seu estudo, já que são 
incontáveis as narrativas no mundo. Assim como a linguística é uma ciência dedutiva, os 
estudos narrativos seguiriam, portanto, a mesma linha, reflete Barthes. Nesse sentido, 
partindo de um modelo hipotético de descrição, seriam identificadas, pouco a pouco, 
espécies variadas de narrativas que ou se encaixariam ou se afastariam do modelo 
paradigmático. Esse procedimento que funcionaria como um instrumento único de descrição 
levaria o cientista ao encontro da pluralidade de narrativas com sua diversidade história, 
geográfica, cultural. 

A ambição teórica de Barthes em torno dos estudos da narrativa o leva a esboçar 
nesse texto um caminho para uma teoria, dentro do que a linguística oferecia como 
ferramenta. Na primeira das cinco partes em que ele divide o seu texto, Barthes parte da ideia 
de que a narrativa é uma grande frase, dado que a frase é o limite até onde a linguística 
alcança e toma de empréstimo a contribuição dessa ciência para o princípio de uma análise 
estrutural da narrativa: o conceito de nível de descrição. Ele explica, adotando uma 
perspectiva integrativa, que assim como a frase pode ser descrita linguisticamente em níveis 
fonético, fonológico, gramatical, contextual, totalmente hierárquicos, uma vez que suas 
unidades não tomam significação sozinhas, a narrativa também pode ser descrita segundo 
níveis que ele mesmo estabelece provisoriamente. 

Qualquer que seja o número dos níveis propostos e qualquer definição que se dê, 
não se pode duvidar de que a narrativa seja uma hierarquia de instâncias. 
Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é 
também reconhecer nela ‘estágios’, projetar os encadeamentos, horizontais do 
‘fio’ narrativo sobre um eixo implicitamente vertical; ler (escutar) uma narrativa 
não é somente passar de uma palavra a outra, é também passar de um nível a outro 
(BARTHES, 2008, p. 26-7) 

 

Nesse ponto do texto, Barthes lança as bases do que seria uma análise estrutural da 
narrativa: saber que o trabalho em torno dela não se esgota através da compreensão da 
história, mas captar as unidades, isto é, “todo segmento da história que se apresenta como o 
termo de uma correlação” (BARTHES, 2008, p. 28). Nesse sentido, toda narrativa seria 
constituída de unidades narrativas mínimas e o princípio de cada unidade é a sua 
significação, o seu caráter funcional dentro dos segmentos da história. Nesse sentido, Barthes 
afirma que a narrativa só se compõe de funções, isto é, de unidades de conteúdo, que se 
encontram estabelecidas em diferentes graus, determinados por seus significados dentro da 
história: 


Isto não é uma questão de arte (da parte do narrador), é uma questão de estrutura: 
na ordem do discurso, o que se nota é, por definição, notável: mesmo quando um 
detalhe parece irredutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, ele tem 
pelo menos a significação do absurdo ou de inútil: ou tudo significa ou nada. 
Poder-se-ia dizer de uma outra maneira que a arte não conhece o ruído (no sentido 
informacional da palavra) é um sistema puro, não há, não há jamais unidade 
perdida, por mais descuidado, por mais tênue que seja o fio que a liga a um dos 
níveis da história. (BARTHES, 2008, p. 29) 

 

Defendendo a ideia de que todo e qualquer detalhe, a presença de um simples objeto 
ou um acontecimento sem grande importância, em uma narrativa tem uma função e ainda 
uma significação, Barthes propõe uma forma de determinar as primeiras unidades narrativas 
e estabelece duas grandes classes para elas: Funções e Índices. Dentro da classe das funções, 
ele define mais outras duas, as cardinais e as catálises. Sobre a primeira, ele explica: “Para 
que uma função seja cardinal, é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou 
feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história, enfim que ela inaugure 
ou conclua uma incerteza” (BARTHES, 2008, p. 33), daí se pode tirar alguns exemplos para 
ilustrar: a chegada de alguém, o toque de um telefone, um som do toque na porta. Já as 
catálises seriam as unidades responsáveis pela consequência que aparece consecutivamente 
em relação às unidades narrativas de função cardinal. 

Estas funções podem ser à primeira vista muito insignificantes; o que as constitui 
não é o espetáculo (a importância, o volume, a raridade ou a força da ação 
enunciada), é, se pode ser dito, o risco: as funções cardinais são os momentos de 
risco da narrativa; entre estes pontos da alternativa, entre estes dispatchers, as 
catálises dispõem de zonas de segurança, de repousos (BARTHES, 2008, p. 34) 

 

A segunda grande classe de unidades narrativas, os índices, diferentemente das 
funções, são constituídos por unidades que não podem ser complementadas, como ocorrem 
nas relações de consecução e consequência. Os índices têm significados implícitos, implicam 
uma atividade de deciframento, revelam uma atmosfera, um sentimento, um caráter de uma 
personagem. Barthes, nesse sentido, ao procurar estabelecer essas classes de unidades, chega 
a uma sintaxe funcional da narrativa, ponto em que ele se questiona como se encadeiam 
essas unidades narrativas e quais seriam as suas regras da combinatória funcional. Desse 
momento em diante, abre-se o diálogo com os outros estudiosos que, paralelamente a 
Barthes, também se ocupavam do estudo estrutural da narrativa. Barthes apresenta as 
pesquisas e visões adotadas por A. J. Greimas, C. Bremond e T. Todorov e reconhece a 
necessidade de muitos desdobramentos em torno dos problemas que envolvem o 
desenvolvimento de uma análise estrutural, tomando a Linguística uma ciência parâmetro. 
Entre essas necessidades, Barthes fala em alcançar uma descrição estrutural da ilusão 


cronológica da narrativa, uma vez que a análise estrutural empreendida por Lévi-Strauss, 
Greimas, Bremond e Todorov parte do princípio do estudo da lógica narrativa, que não 
obedece à ideia de tempo do mundo real, isto é, a narrativa não segue uma ordem cronológica 
ideal. Outra questão não alcançada por essa proposta de análise, apontada por Barthes, é a 
classificação das personagens da narrativa, a não compreensão do lugar do sujeito da matriz 
actancial, uma vez que o valor, a importância da personagem está no seu papel de actante, 
de desenvolvedor das ações e, numa mesma história, na maioria das vezes, há mais de um 
actante. 

A leitura dos textos que compuseram a nº 8 da Revista Communications hoje 
dispostos no livro Análise Estrutural da Narrativa (2008 [1976]) favorece a compreensão 
do impacto desses estudos e das diferentes linhas de interesse surgidos dentro da proposta 
de uma análise estrutural da narrativa. Dos autores que discutem a questão, os nomes que 
mais se projetaram e deram continuidade a essa pesquisa que muito impulsionou os Estudos 
Literários foram o de Todorov e o de Gérard Genette que, tomando por base as proposições 
de Todorov, desenvolveu a sua proposta de análise da narrativa17 segundo as categorias 
verbais: tempo, modo, pessoa, voz. São os resultados das reflexões teóricas desses dois que 
alimentaram o arcabouço dos estudos da narrativa. Essa retomada ao “ano-luz”, momento 
em que desponta a Narratologia, feita por Gunter Pressler em seu artigo, chama a atenção 
para os grandes centros de estudo que se desenvolveram depois daquele impulso. 

17 O estudo foi publicado no livro Figuras III de Genette, em 1972, que trazia um conjunto de textos sobre 
crítica, poética, retórica, um trabalho sobre Marcel Proust, mais o “Discurso da Narrativa”, que nada mais é do 
que a aplicação do método de análise de Genette ao romance No caminho de Swann, de Proust. Posteriormente, 
o mesmo estudo ganha uma edição fora do Figuras III com o título O Discurso da Narrativa, traduzido em 
Portugal, 1978, 3ª ed. 1995. 

O que era um ensaio de 41 páginas, o de Barthes, em 1966, perspectivou 
juntamente com outros estudos da revista, o de Todorov (“As Categorias da 
Narrativa Literária”) e o de Genette (“Fronteiras da Narrativa”) uma nova vertente 
teórica, a Narratologia, que incentivou dezenas de pesquisas e projetos, por 
exemplo, o Interdisciplinary Centre for Narratology (Centro Interdisciplinar para 
Narratologia), na Universidade de Hamburgo. Os resultados de quatro décadas 
estão no livro de Wolf Schmid (2014; edições anteriores em russo, alemão e 
inglês), possibilitando diferenciações e caminhos verticais de pesquisa e mais de 
70 livros publicados pelo grupo até hoje (meados do ano de 2017) (PRESSLER, 
2017, p. 104) 

 

Refazer o percurso da linha de pensamento que construiu as bases da Narratologia 
ajuda a entender como esse campo do conhecimento se estabeleceu e ganhou espaço dentro 
das ciências humanas, já que a criação de centros interdisciplinares aponta o diálogo e as 


mais variadas relações entre Narratologia e outros áreas de conhecimento e estudo (filosofia, 
cinema, teatro, fotografia, jogos eletrônicos, direito, jornalismo etc.). A Narratologia não 
ficou presa à ciência que lhe deu o primeiro impulso, ou sopro de vida. As preocupações de 
uma análise narratológica já não são as mesmas postuladas por Barthes, uma vez que a 
concepção de texto, sobretudo narrativo, ganhou novas leituras e o olhar sobre as instâncias 
participantes da construção de uma obra literária também, como por exemplo, as reflexões 
em torno do autor e de seu lugar no estudo de uma determinada obra; a figura do narrador, e 
suas mais variadas formas de leitura, principalmente filosóficas; a condição das personagens 
as quais ganharam importância e tiveram sua leitura amplificada, assumindo a condição de 
ser ontológico. A abertura dada à linha de alcance da Narratologia foi tão grande com o 
avançar dos anos que ela de fato hoje não se restringe aos textos narrativos literários, muito 
embora nesse estudo deixemos claro a linha de pensamento e de estudo que iremos seguir. 

No Brasil, o debate em torno das contribuições da Narratologia encontrou no trabalho 
do professor de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, Massaud Moisés, um ponto 
de interlocução, uma vez que, partindo da classificação por gêneros (conto, novela, 
romance), o autor discute justamente os elementos básicos da narrativa: estrutura, ação, 
tempo, espaço, personagens, usando como exemplos textos narrativos da nossa literatura. A 
seguir, Pressler: 

Massaud Moisés publica, em 1967, seu caderno de ensino da história e teoria 
literária, elaborado desde março de 1952, quando iniciou sua atividade de docência 
(“Prefácio da 1ª ed.”, escrito em 26 de agosto de 1965), da Criação Literária, que 
está hoje na 20ª ed., com pequenas modificações, mas é o mesmo “manual da sua 
atividade de docente” desde a primeira publicação, em 1958, como “balão de 
ensaio”. (PRESSLER, 2017, p. 105) 

 

 Ao lembrar o contexto de publicação de A criação Literária de Massaud Moisés, 
Pressler chama a atenção para o fato de que a discussão não se atualizou desde a década de 
1960 e que, ao que parece, a Narratologia não encontrou um terreno fecundo para grandes 
diálogos no Brasil. Sendo um “livro didático, foi muito esclarecedor [...] as reedições devem 
chegar, finalmente, ao limite, seu limite epistemológico, pois usar a literatura crítica 
ultrapassada, que tem um valor bastante informativo e descritivo, não é mais considerável” 
(PRESSLER, 2017, p. 106). A falta de diálogo não diz respeito ao desconhecimento do que 
se estava discutindo nos centros de Narratologia, mas à falta de discussão crítica que pudesse 
partir das referências, Tzvetan Todorov e Gérard Genette... Nesse sentido, Pressler menciona 
o trabalho de Flávio Kothe, A Narrativa Trivial (1994), que trata a respeito da “literatura de 
massa”, mas que “se preocupa com o discurso ideológico e não ‘narratológico’” 


(PRESSLER, 2017, p. 106); e o trabalho de Luiz Gonzaga Motta, Análise crítica da 
narrativa (2013), a quem são dirigidas críticas contundentes: “Em vez de estudar a literatura 
crítica, publicada desde o ‘ano-luz’ de 1966, depois com Todorov, Motta se volta para aquele 
tempo que inventou ainda a roda da teoria literária (Aristóteles e companhia)” (PRESSLER, 
2017, p. 106). Ainda em sua leitura do trabalho de Motta, continua: 

No capítulo 3, intitulado “A teoria da narrativa – Narratologia”, Motta inicia com 
a seguinte frase: “O que é narrar? Narrar é relatar eventos de interesse humano 
enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfecho”. Eu digo: 
“narrar” não é “relatar”! Sabe-se desde a graduação que se classifica vários 
gêneros ou tipos textuais, mas três modos de “enunciação”: narrar, descrever e 
dissertar. O dicionário diz (o dicionário se ocupa com as palavras e não com as 
teorias): “v.t. Narrar, expor: relatar o ocorrido. Apresentar relatório”. Para um 
cientista, o Dicionário é uma fonte de informação, não a autoridade em definir o 
assunto em questão e nem uma referência para analisar textos. (PRESSLER, 2017, 
p. 106) 

A crítica recai sobre a falta de rigor científico no emprego de conceitos que já se 
encontram estabelecidos dentro de uma discussão crítica pré-existente, o que requereria no 
mínimo a retomada das principais referências em torno do assunto. Outro aspecto importante 
para o aquecimento de um debate científico é a tradução dessas importantes referências e 
consequentemente diálogo com elas: 

Os trabalhos fundamentais de Genette, “Discours du Récit”, no livro Figuras III 
(1972), traduzido em Portugal (1978), e Nouveau Discourse du Récit (1983), não 
foram traduzidos no Brasil. A única fonte destes termos do pensamento de 
Genette, em português, é o livro traduzido sob orientação de Maria Alzira Seixo, 
em 1978, e o Dicionário de Teoria da Narrativa (1988, na editora Ática; saiu em 
Portugal, em 1987), de Carlos Reis e Ana Cristina M.Lopes. (PRESSLER, 2017, 
p. 108) 

A carência de traduções no Brasil só não causou maiores danos ao debate em língua 
portuguesa, porque em Portugal trabalhos significativos foram feitos. O professor Carlos 
Reis18, que inclusive trabalha e direciona boa parte de sua pesquisa dentro da perspectiva de 
Gérard Genette, é referência no país. Sua famosa publicação de 1988, Dicionário de Teoria 
da Narrativa19, em parceria com Ana Cristina M. Lopes, foi quem popularizou, podemos 
dizer, a terminologia de Genette entre nós, brasileiros. Ainda assim, as observações de 

18 O projeto Figuras da Ficção, do Centro de Literatura Portuguesa, coordenado por Carlos Reis, na 
Universidade de Coimbra, teve início em 2012 e promove a cada dois anos colóquios internacionais. O projeto 
também conta com pesquisadores portugueses e brasileiros e elegeu a personagem, especialmente a romanesca, 
como categoria central de suas pesquisas em Literatura Portuguesa. O material produzido pelo projeto 
encontra-se disponível no blog https://figurasdaficcao.wordpress.com/, tal como o Dicionário de Personagens 
de Ficção Portuguesa em construção. 

19 Sob o título Dicionário de Estudos Narrativos, Carlos Reis, agora sem a parceria com Ana Cristina M. Lopes, 
publicou uma nova edição do trabalho em 2018, pela editora Almedina. Os verbetes de autoria de A. C. M. 
Lopes foram mantidos e identificados. 


Pressler pesam muito sobre a falta de diálogo com outros textos de autores/autoras no Brasil, 
o que faz o autor do artigo destacar a: 

grande lacuna de estudos narratológicos stricto sensu, no Brasil, diante da 
velocidade e produtividade dos estudos no exterior desde a década de 1970 
(Genette, 1972, 1983, 1991; Schmid, 1973, 2003 (russo), 2005, 2008, 2014 
(alemão, edições sempre atualizadas e ampliadas), 2010 (inglês); S.Rimmon- 
Kenan, 1976; M.Bal, 1977, 1985; S.Chatman, 1978; D.Cohn, 1978, 1995; 
G.Prince, 1982, 1987; S.Lanser, 1986, 1987). A produção se triplicou na década 
de 1990. (PRESSLER, 2017, p. 108) 

 

E quando houve menção em fazer esse diálogo, a discussão não correu em linguagem 
objetiva, lógica, sem a devida profundidade exigida pelo pensamento científico. Pressler 
exemplifica a questão, citando trechos desses trabalhos utilizados como referência para os 
estudos da narrativa e mostra como eles discutem conceitos-chaves para a narratologia: 
narratividade e eventos. Ao final, constata há “abordagens sem conhecimento da literatura 
crítica. Não se trata de uma definição ou de um discurso científico, ao contrário, trata-se 
daquilo que se chama ‘falácia’ no modo narrativo” (PRESSLER, 2017, p. 108). O autor 
ainda fala da necessidade de se “provar eficazmente o que se alega, argumentar, e não só 
convencer de modo implícito” (PRESSLER, 2017, p. 108), pois isso é o que caracteriza o 
discurso científico. 

Presley conclui e justifica o emprego da palavra “falácia” ao lembrar da crítica feita 
por Wolfgang Ser à forma tradicional do ato da interpretação literária e crítica. Ser “parte da 
observação de W.K.Wimsatt e M.C.Beardsley sobre o que eles chamam a ‘affective fallacy’, 
termo que indica o desaparecimento da obra diante da ‘confusão entre a obra (the poem) e 
seus resultados (what is and what it does – the poem)’ (PRESSLER, 2017, p. 109). O 
estudioso resgata o esclarecimento de Iser sobre os atos de leitura de textos literários, 
sobretudo esses, e sobre o fato de críticos executarem ou criarem atos de determinação. O 
problema ocorre quando o intérprete ou mesmo os críticos não leem os textos fora de seus 
atos de determinação. O resultado é uma confusão entre as qualidades das determinações 
executadas pelo próprio texto e o texto em sua natureza, isto é, leituras tendenciosas, a 
“affective falacy”. Se esse fenômeno acontece inevitavelmente, uma vez que os textos 
forçosamente levam seu intérprete a encaixá-los em certas determinações, é de extrema 
importância que o crítico esteja consciente disso, a fim de alcançar resultados satisfatórios. 
Pressler sintetiza: 


O que vale para as leituras de textos literários vale para a dos textos teóricos. Eles 
são lidos de forma afetiva, i.e., já se compreende o que o texto quer dizer sem um 
desdobramento crítico sobre o debate em que o texto surgiu. Neste caso, a 
Narratologia não se compreende sem o histórico do seu aparecimento e 
desenvolvimento. (PRESSLER, 2017, p. 109) 

 

 As articulações de Pressler estão de acordo com a proposta desse trabalho, uma vez 
que o levantamento do material crítico sobre o romance de Milton Hatoum apontou, em 
muitos casos, leituras tendenciosas e, por que não dizer afetivas? Contribuiu ainda para 
justificar por que não existe uma leitura mais aprofundada do texto, pautada em análises 
mais ajustadas às condições e características da própria narrativa. Mas, ao fazer críticas ao 
atraso brasileiro em relação ao debate em torno dos estudos da narrativa, o autor também 
aponta uma referência que, apesar de pouco conhecida em função da carência de traduções, 
prestou grande serviço ao novo pesquisador que deseja entrar em contato com décadas de 
discussão teórica: Wolf Schmid, o fundador do Interdisciplinary Centre for Narratology 
(Centro Interdisciplinar para Narratologia), na Universidade de Hamburgo e cofundador do 
European Narratology Network (ENN). 

Wolf Schmid nasceu na Alemanha, é professor emérito de Literatura Eslava na 
Universidade de Hamburgo. Autor de trabalhos sobre a prosa de ficção de autores russos, 
como Pushkin, Dostoevsky, Chekhov, Tolstói, Andrej Bitov e da prosa russa da década de 
1970, Schmid é um teórico bastante reconhecido na Rússia e principal referência em 
Narratologia. Seu primeiro livro sobre a teoria foi publicado primeiramente na Rússia, em 
2003, e somente em 2005 saiu na Alemanha. O trabalho, tanto em russo quanto em alemão 
ganhou uma segunda edição em 2008, revista e ampliada. Em 2014, saiu a terceira edição 
somente em alemão. A edição em inglês foi publicada em 2010 nos Estados Unidos e 
traduzida a partir da segunda edição do alemão. Diante da necessidade de contribuir para a 
discussão no Brasil, o Grupo de Pesquisa ANA (Amazonia – Narratologia – Anthropocene), 
formado pelo coordenador professor Dr. Gunter Karl Pressler e por um grupo de professores 
e estudantes de pós-graduação, trabalha na tradução da terceira edição do livro em alemão 
(2014) para o português. 

O livro em questão está organizado em cinco capítulos: Características do narrar na 
obra ficcional; As instâncias da obra narrativa; A perspectiva do narrar; O texto do narrador 
e o texto das personagens; A constituição narrativa: acontecimentos – história – narrativa – 
apresentação da narrativa. Nosso estudo analítico segue a proposta de Schmid, partindo das 
lacunas ainda existentes nos estudos do romance de Milton Hatoum. Nesse sentido, ao 
mesmo tempo em que desejamos apresentar e inaugurar uma discussão em torno dessa 


abordagem teórica, precisamos partir das questões suscitadas pela leitura do romance e dos 
textos da crítica. Daremos ênfase, portanto, nas instâncias da obra narrativa, na perspectiva, 
no texto do narrador e no texto da personagem, porque encontramos nesses capítulos toda a 
fundamentação que sustenta a análise narratológica de Relato de um certo Oriente. 

 

2.3 Primeiras considerações: Narratividade, Eventualidade, Ficcionalidade 

 

Tomaremos essas primeiras categorias apresentadas por Wolf Schmid em seu livro 
Elementos da Narratologia, para nos ajudar a pensar sobre os acontecimentos narrados no 
romance em estudo. Narratividade e Ficcionalidade não são apresentadas aqui com o intuito 
de defender o status do nosso objeto de estudo: a condição fundamental de um romance é a 
narratividade e que o mundo representado nela é fictício. Quanto a isso não há o que 
questionar. Mas apresentar esses termos contribuem para o encaminhamento de uma 
coerência terminológica e metodológica sobre as quais esse trabalho se fundamenta. Daí a 
necessidade de começar do princípio. A categoria Evento é apresentada também com o 
mesmo intuito, porém será lembrada ao longo de nossa análise, que se seguirá nas próximas 
seções desse trabalho. As questões que envolvem a compreensão do evento irão ajudar nossa 
leitura sobre os acontecimentos presentes na narrativa do romance. 

Uma das primeiras definições feitas por Schmid é a de narratividade, conceito basilar 
para o desenvolvimento de uma teoria da narrativa. Partindo dessa primeira definição, ele 
estabelece o que será considerado texto narrativo, ou seja, o que constituirá a narratividade 
do texto. Lembrando o conceito clássico dado pelos críticos alemães, concedendo a devida 
notoriedade a Käte Friedemann (1874 – 1949), Schmid recorda que o que definia a 
narratividade do texto era a presença de um mediador entre o autor e o mundo narrado, isto 
é, a presença de um narrador como instância mediadora. Nesse sentido, tal concepção incluía 
relatórios de viagem, textos puramente descritivos e excluía textos líricos, dramáticos e 
cinematográficos, por exemplo. Já na narratologia estruturalista, com Tzvetan Todorov, a 
narratividade não estava na forma como o texto era comunicado, nem em qualquer aspecto 
do discurso, mas naquilo que era narrado. Era necessário, portanto, identificar a 
representação de mudanças de estado e uma estrutura temporal, para que se identificasse a 
narratividade de um texto, e se pudesse com isso também distinguir um texto narrativo de 
um descritivo. 

A concepção estruturalista inclui representações em qualquer meio, na medida em 
que elas mostram mudanças de estado, mas excluem representações cujas 


referências não possuem uma estrutura temporal e, consequentemente, não contém 
quaisquer mudanças de estado. Portanto, o drama e a poesia lírica são também 
considerados narrativos, na medida em que as mudanças de estado estejam neles 
retratados. (SCHMID, 2010, p. 2) 

 Tratava-se, como se pode ver, de uma concepção pouco discriminatória, uma vez que 
até mesmo a poesia lírica cabia dentro desse critério. Ao contrário da concepção clássica, na 
narratologia estruturalista, não se fazia distinção entre as narrações com ou sem instância 
mediadora: havia somente uma separação entre os textos narrativos mediados e os textos 
narrativos miméticos. Sem excluir a contribuição dada pelas duas concepções anteriores, 
Schmid propõe uma definição de Narratividade. 

A condição mínima da narratividade é que, pelo menos, uma mudança de estado 
deve ser representada em um determinado tempo. O exemplo famoso de Edward 
Morgan Forster de uma história mínima é ainda extenso demais. Forster (1927) 
cunhou o exemplo: “O rei morreu e então a rainha morreu.” Gérard Genette (1983, 
15) apontou que, para uma história mínima, é o suficiente possuir o simples “O rei 
morreu”. (SCHMID, 2010, p. 2-3) 

“O rei morreu” pode ser um exemplo de uma história mínima, porque para a 
narratividade é suficiente que a mudança seja implícita: se o rei morreu, passou do estado de 
vivo para morto. Então, Schmid postula três condições para que a mudança de estado 
constitua a narratividade: 

(1) Uma estrutura temporal com pelo menos dois estados, a situação inicial e a 
situação final (o rei vivo e o rei morto). 

(2) A equivalência das situações iniciais e finais e a presença de uma similaridade 
e um contraste entre os estados, ou mais precisamente, a identidade e a diferença 
das propriedades desses estados (estar vivo e estar morto formam uma 
equivalência clássica). 

(3) Em ambos estados, a mudança que ocorre entre os dois deve se relacionar ao 
mesmo sujeito que age e que sofre e ao mesmo elemento do setting (em nosso 
caso, é o pobre rei). (SCHMID, 2010, p. 3) 

 

 Então para haver narratividade é necessário uma estrutura temporal que apresente 
uma situação inicial e final, e que ambas contenham uma equivalência, e que possam estar 
relacionadas ao mesmo sujeito. Mas a mudaça de estado é apenas uma condição da 
narratividade: quantas mudanças seriam necessárias para se ter uma história? Como bem 
lembrou o que dissera Genette, Schmid explica que para se ter uma história basta uma 
mudança de estado e que a diferença entre as duas seja a extensão. 

 

As mudanças de estado formam um subgrupo da história. Assim como 
representam as mudanças de estado, que são elementos dinâmicos, uma história 
inclui elementos estáticos, que são os estados ou as situações em si, os contextos 
temporais e espaciais (settings). Portanto, por necessidade, a representação de uma 
história reúne os componentes dinâmicos e estáticos que abrangem os modos 
textuais narrativos e descritivos. (SCHMID, 2010, p. 5 ) 


 

 A mudança de estado é condição para se ter uma história, mas considerando as 
mudanças de estado, formada por elementos dinâmicos, um subgrupo da história, 
entendemos que uma história não é constituída apenas por mudanças de estado. Daí Schmid 
explicitar que, por necessidade, a representação de uma história também envolve elementos 
estáticos, que caracterizarão a presença do modo descritivo. Como representam situações 
estáticas, os textos descritivos são opostos aos textos narrativos, entretanto, os limites entre 
eles é fluido. Schmid coloca, então, que a decisão sobre a categorização de um determinado 
texto é questão de interpretação, sendo, em muitos casos, o critério da predominância um 
modo de se chegar a uma conclusão. Em relação aos textos miméticos e mediados, a proposta 
de Schmid considera essa subdivisão, porém deixa claro que a sua teoria diz respeito apenas 
aos textos narrativos mediados, ou seja, àqueles que apresentam uma história e a instância 
mediadora de um narrador. 

 Uma análise literária não se realiza somente registrando as mudanças de estado, pois 
uma narrativa, por menor que seja, apresenta inúmeras mudanças de estado: 

Não é suficiente distinguir vários tipos de mudanças de estado, como naturais, 
acionais, interacionais e mentais (como propõe Lubomir Dolezel, 1978). Precisase 
de categorias, com a ajuda das quais podem ser diferenciadas as inúmeras 
mudanças naturais, acionais e mentais no mundo narrado (da mudança repentina 
do tempo, da vitória de uma batalha até a reflexão interna do herói). (SCHMID, 
2010, p. 8) 

Schmid propõe o temo evento20 para categorizar uma mudança de estado, que 
representaria uma ocorrência particular na história, algo que está fora dos acontecimentos 
previstos no cotidiano. Para que o evento se configure enquanto tal, não é necessário que ele 
represente a violação de uma norma, ou um desvio da ordem dada no mundo narrado, mas 
algo deve ficar claro: “todo evento implica uma mudança de estado, mas nem toda mudança 
de estado constitui um evento. O evento, portanto, deve ser definido como uma mudança 
que preenche certas condições” (SCHMID, 2010, p. 9). As exigências ou condições são: a 
facticidade e a resultabilidade. A facticidade deve ser considerada uma realidade na moldura 
do mundo ficional, ou seja, a mudança de estado, para ser evento, deve ser real, nunca 

20 O evento como categoria foi desenvolvido na literatura a partir da Renascença, quando foi dado valor positivo 
ao inesperado, à novidade de uma mudança de estado que não havia na literatura da Idade Média. A novela foi 
o principal gênero, no qual a novidade foi apresentada, e teve como modelo Giovanni Boccaccio com o seu 
Decameron no século XIV. (SCHMID, 2014, p. 12) 

O evento está relacionado a uma ideia de “desvio”, por isso, Schmid discute também a presença da ritualidade 
como ideia antagônica: “A estética do desvio, na qual há um elevado grau de eventualidade se sobressai, 
transmite um prazer ao novo, à complexidade, uma superação de esquemas e de estereótipos. A estética da 
repetição, que produz uma recepção ritual, implica sentimento de segurança, direção e entendimento, e convida 
à identificação” (SCHMID, 2014, p. 30) 


desejada, imaginada ou sonhada. A resultabilidade diz respeito à necessidade de que a 
mudança de estado produza um resultado. Uma ocorrência que não venha seguida de uma 
finalidade não pode se constituir enquanto evento. 

As duas condições descritas são consideradas necessárias, básicas, mas não são 
suficientes para caracterizar um evento, já que determinadas mudanças de estado, ainda que 
cumpram essas exigências, não são notadas como evento. Schmid propõe cinco 
características, em ordem hierárquica, que contribuem para a identificação de um evento. 
Essa ordem guarda a ideia de uma diferença de importância entre cada característica e de 
gradação entre elas, a fim de se alcançar “o quanto de eventualidade uma mudança de estado 
precisa para se tornar um evento” (SCHMID, 2010, p. 9). São estas as características: 
relevância; impredicabilidade; consecutividade; irreversibilidade; não-interatividade. 

A relevância21 deve ser considerada, já que o evento precisa ser relevante, embora 
não exista nenhum critério absoluto para decidir a relevância ou irrelevância do evento. 
Schmid exemplifica que nas epopeias heroicas da Idade Média a morte pode ter pouca 
relevância, em razão do contexto. Já em uma narrativa de Tchekhov, de título “Um evento”, 
Schmid mostra como o autor exemplificou que a relevância depende do sujeito: duas 
crianças assistem ao nascimento de gatinhos. Para elas tratava-se de um acontecimento 
bastante significativo, enquanto que para os adultos, não. A impredicabilidade aponta para 
uma mudança na expectativa, uma alteração daquilo que era esperado no mundo narrado. 
Essa quebra de expectativa se refere aos protagonistas do mundo narrado e não aos leitores. 
“Uma mudança previsível dentro das normas do mundo narrado tem baixa eventualidade, 
mesmo se essa mudança for essencial para um ou outro protagonista envolvido” (SCHMID, 
2010, p. 10). A consecutividade é um aspecto que torna maior a eventualidade de uma 
mudança de estado. Tal mudança precisa gerar consequências para o pensamento e para a 
ação do sujeito envolvido. A irreversibilidade é a característica de uma nova condição após 
a mudança de estado, indicando a improbabilidade de se retornar ao estado anterior. A nãointeratividade 
diz respeito a repetidas mudanças de um mesmo tipo, o que confere à mudança 
um baixo nível de eventualidade. 

21 Relevância e Impredicabilidade são, de acordo com Schmid, os dois indicadores que praticamente decidem 
o grau de eventualidade não são dados objetivamente no texto. Requerem, portanto, interpretação e leitura do 
contexto. Para um conhecimento mais ampliado, ler o subcapítulo “Eventualidade, interpretação e contexto” e 
“A análise de eventos” (SCHMID, 2014, p. 23) 

Ainda se referindo à eventualidade, Schmid destaca outra categoria, atual no debate 
narratológico, a narratibilidade. Tal categoria pode fazer referência à diegesis ou à exegesis. 


Quando relacionada à primeira, a narratibilidade diz respeito à razão de ser de uma história, 
ou ainda, procura responder por que vale a pena contar a história. Quando relacionada à 
segunda, diz respeito ao “modo particular como o narrador apresenta a sua história” 
(SCHMID, 2010, p. 13). A relação entre eventualidade e narratibilidade é expressa da 
seguinte forma: “Em narrativas com alto grau de eventualidade se junta, em geral, a 
narratibilidade” (SCHMID, 2010, p. 13), elas acabam coincidindo: a narratibilidade é 
encontrada na eventualidade; já em narrativas de baixa eventualidade, a narratibilidade pode 
resultar da ausência de um evento esperado pelo leitor: a razão de ser da história está na não 
realização de um determinado acontecimento. 

A fim de contornar melhor os textos aos quais a sua teoria será aplicada, Schmid 
aborda o tema da ficcionalidade: “De que maneira a narração em uma obra de arte se difere 
da narração cotidiana, por exemplo, anedotas; notícias de jornal, rádio e televisão; 
reportagem policial ou o resumo dos acontecimentos contados por um repórter esportivo? ” 
(SCHMID, 2010, p. 21). Ele continua: 

Uma das características básicas de um texto narrativo artístico é sua 
ficcionalidade, isto é, a condição em que o mundo representado nela é fictício. 
Para explicar o uso desses conceitos: o conceito ficcional caracteriza o texto; o 
conceito do fictício denota, por outro lado, o status do representado no texto 
ficcional. Um romance é ficcional, o mundo nele representado é fictício. Textos 
ficcionais são, via de regra, não fictícios, mas reais (a não ser que eles figurem no 
mundo fictício de outro texto ficcional). Enquanto o fictício é o contrário do real, 
o conceito oposto de ficcional é o factual (ver Genette 1991; Schaeffer 2009). 
(SCHMID, 2010, p. 21-2). 

 Schmid expõe, então, o sentido que o termo fictício deve assumir em seu trabalho. 
Fictício, derivado do latim fingere, designa aquilo que é imaginado, mas apresentado como 
real. Nesse sentido, a ficção literária é uma simulação, um fingimento sem a conotação 
negativa que termos como mentira, enganação podem trazer. Por isso, o fictício não deve 
estar tão diretamente relacionado a uma ideia de aparência: “Ficção deveria ser 
preferivelmente entendida como a representação de uma distinta, autônoma e interna 
realidade literária” (SCHMID, 2010, p. 22), concepção mais aproximada da teoria da 
mimesis em Aristóteles. 

Aristóteles que supera o ensinamento platônico que considera a representação 
artística em terceiro grau como a imitação de uma imitação, reconhece a mimesis 
– que ele entende como “fazer” (πόιησις) (ver Hamburger 1975, 4 [1968; 1ª ed. 
1957]) ou como “construção” (Zuckerkandl 1958, 233) – não só como primazia 
(ver Else 1957, 322), mas também estabelece sua função cognitiva (ver Boyd 
1968, 24) e, então, seu valor. Ao contrário do historiador, que narra o que 
aconteceu, aquilo, por exemplo, que Alcebíades teria dito e feito, será a tarefa do 
poeta reportar “o que poderia ter acontecido e o que poderia ser possível de acordo 
com a necessidade ou possibilidade” (1451a, 36–38). Objeto ou assunto do poeta 


é então não “o que realmente aconteceu” (τὰ γενόμενα), mas o “possível” (τὰ 
δυνατά). Por isso que a poesia ficcional é “mais filosófica e mais significativa do 
que a historiografia” (1451b, 5–6). (SCHMID, 2010, p. 23) 

Ao citar Aristóteles, Schmid aproxima a sua compreensão de ficção da concepção 
aristotélica de mimesis: trata-se da construção artística da realidade possível; não representa 
ações, agentes e mundos existentes ou passados, mas possíveis. Sendo assim, evidenciando 
a linha de construção do conceito de ficcionalidade, Schmid fala a respeito do trabalho de 
Käte Hamburger, na década de 1950, que procurou distinguir o primeiro tipo básico de 
literatura, “gênero ficcional ou mimético”, do segundo, “gênero poético ou existencial”. 
Hamburger defendia a tese de que a ficcionalidade do texto estava no próprio texto e não nas 
intenções de seu autor. Nesse sentido, ela determinou alguns “sintomas” que evidenciariam 
os gêneros ficcionais: a perda da função gramatical do pretérito épico de indicar o que é 
passado; o que é narrado não se refere a um eu real, mas a um eu fictício; “o uso de verbos 
de ação interna com referência à terceira-pessoa (do tipo Napoleão pensou...) sem motivação 
de uma fonte informacional” (SCHMID, 2010, p. 25). Embora a estudiosa não tenha se 
livrado das críticas, que apontaram que tais características poderiam também ser 
identificadas em textos factuais, Schmid defende que esses sintomas são muitos mais 
característicos de textos ficcionais. 

Outra questão importante posta em destaque por Hamburger é a de que “a ficção se 
distingue de todos os outros tipos de textos por nos permitir direto acesso ao mundo interno 
do outro” (SCHMID, 2010, p. 27). Sobre isso, Schmid diz: 

Na ficção, nós podemos conhecer outras pessoas na vida interior delas, e formar 
uma imagem confiável de seus sentimentos mais segredos, algo que, na vida 
interior delas, em que mesmo entre amigos e cônjuges, estamos assentados em 
marcos e na interpretação incerta delas, o que em último caso nos impossibilitaria 
esse total conhecimento. (SCHMID, 2010, p. 28) 

 

 Mesmo que ainda não se tenha chegado a uma teoria da ficção amplamente aceita, 
existe um consenso prático em torno das características da ficcionalidade. A seguir, algumas 
considerações relevantes: 

O que é fictício na obra ficcional? A resposta é: o mundo inteiro representado e 
todas as suas partes: situações, personagens, ações. Objetos fictícios não se 
diferenciam dos reais sob nenhumas características temática ou formal, mas 
simplesmente por não poderem ser observados em sua materialidade: eles não 
existem no mundo real. A não-existência no mundo real não é colocado em dúvida 
enquanto se tratar de personagens inventadas como Natasha Rostova e Pierre 
Bezukhov de Guerra e Paz. Mas e quanto a figuras históricas que aparecem nesse 
romance como Napoleão ou Kutuzov? Estes são apenas personagens quase 
históricas. O Napoleão de Tolstói não é uma reprodução da figura histórica, mas 
uma mimesis de Napoleão; a construção de um Napoleão possível. (SCHMID, 
2010, p. 31) 

 


O esclarecimento dado por Schmid sobre a leitura que se deve fazer das personagens, 
do espaço e do tempo na ficção contribuem para que se possa encarar esse mundo fictício 
segundo sua própria lógica. Ainda que sejam feitas referências a figuras históricas, espaços 
reais, períodos históricos específicos, o mundo fictício é apenas um mundo possível, nunca 
real. Inclusive Schmid recusa a ideia de que objetos fictícios podem aparecer ao lado de 
objetos reais na ficção. Para ele “o mundo fictício da narrativa tem sua ontologia homogênea, 
em que todos os objetos representados, não importando quão próximos eles possam estar 
dos objetos reais” (SCHMID, 2010, p. 32) são fictícios. 

Compreendida a existência do mundo fictício dentro da obra, Schmid fala sobre a 
comunicação do autor e a comunicação do narrar: 

O mundo narrado é o mundo criado pelo narrador. O mundo representado criado 
pelo autor não é limitado ao mundo narrado. O mundo representado inclui o 
narrador, seu destinatário e a própria narração. Para o autor o narrador, o ouvinte 
e o leitor são entidades fictícias representadas pelo ato da narração dentro da obra 
ficcional. Então, a obra narrativa não apenas narra, mas representa um ato de 
narração. A arte da narrativa é estruturalmente caracterizada pela duplicação de 
um sistema de comunicação: a comunicação do narrar, na qual o mundo narrado 
é criado, é parte do mundo fictício representado, o qual é o objeto da comunicação 
real do autor. (SCHMID, 2010, p. 32-3) 

Desse ponto em diante, Schmid orientará o caminho para uma análise narratológica, 
separando a esfera de atuação do autor e do narrador na obra, o que muito contribui para 
ampliar nossa leitura sobre as identificações feitas pela crítica de Milton Hatoum em torno 
do romance Relato de um certo Oriente. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


3. AS INSTÂNCIAS DA OBRA NARRATIVA 

 

“Todo” é o que possui começo, meio e fim. “Começo” é o que em 
si não é, por necessidade, antecedido de outro, mas após o qual algo 
de diferente naturalmente existe ou se manifesta; ao contrário, 
“fim” é o que naturalmente é antecedido, por necessidade ou na 
maior parte dos casos, de outro, mas após o qual nada advém; 
“meio” é o que em si vem após o outro e após o qual algo de 
diferente advém. 

Aristóteles 

 

3.1 Os Níveis de Comunicação no romance 

 

W. Schmid entende a obra narrativa como um sistema de comunicação, em que se 
tem de um lado um emissor e, de outro, um receptor. O estudo analítico parte, então, da 
determinação das instâncias que compõem a obra. Antes de chegar aos fenômenos 
observados na narrativa, devem-se considerar as instâncias que participam dos planos de 
comunicação constitutivos da obra: a comunicação do autor e a comunicação do narrar. Há 
ainda um terceiro plano, facultativo, o da comunicação das personagens. Tal plano se 
evidencia na obra quando um dos personagens se torna uma instância que fala e se comunica. 

Em cada um desses três níveis, nós diferenciamos um lado emissor e um lado 
receptor. No conceito de receptor nota-se uma ambivalência essencial, que 
frequentemente é deixada de lado nos modelos de comunicação correspondentes. 
O receptor dissocia-se em duas instâncias, separadas em funcional ou intencional, 
ainda que coincidam material ou extensionalmente: destinatários ou receptores. 
O destinatário é aquele pretendido ou presumido pelo emissor, é aquele para quem 
o emissor envia a sua mensagem, aquele que ele, na composição, tem em mente 
como instância suposta ou desejada. O receptor é o destinatário factual, do qual o 
emissor possivelmente tem uma imaginação geral, e no caso da literatura é a regra. 
A necessidade de tal distinção é óbvia: quando uma carta não é lida pela pessoa, 
que era pretendida como destinatário, mas por uma pessoa, que em cujas mãos 
ocasionalmente a carta é decifrada, podem surgir inconveniências. (SCHMID, 
2010, p. 34) 

Os dois primeiros planos de comunicação, o do autor e o do narrar, existem 
naturalmente em Relato de um certo Oriente, assim como o plano facultativo, uma vez que 
os personagens falam e participam da construção da narrativa. Nos capítulos 2, 3, 4, 5, 7 são 
justamente os personagens do mundo narrado: Hakim, Dorner, o pai de Hakim e Hindié 
Conceição que têm suas falas representadas ao longo de todas as páginas. A ideia de um 
sistema de comunicação pode perfeitamente ser vista e aplicada na obra, uma vez que, para 
além da ideia de uma comunicação entre autor e leitor concretos, autor e leitor abstratos, de 
narrador fictício e leitor/ouvinte fictício, temos, sobretudo, a comunicação entre personagens 
ao longo de toda narrativa. A própria narradora que, inevitavelmente, ocupa a posição de 
emissora nesse sistema de comunicação, em dados momentos, ocupa a função de 


“destinatária”. Vejamos como isso ocorre: Logo no primeiro capítulo, em que a instância do 
narrar é a narradora, notamos marcas de interlocução no discurso: “imaginei como estarias 
em Barcelona, entre a Sagrada Família e o Mediterrâneo, talvez sentado em algum banco da 
praça do Diamante, quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo 
espaço da nossa infância” (HATOUM, 2017, p. 11 grifo nosso). O verbo fazendo referência 
à existência de um “tu” é a marca mais significativa de uma comunicação entre narradora 
fictícia e leitor fictício. Sabe-se também desde o princípio que esse leitor fictício, apesar de 
não ter o nome revelado, é irmão da narradora e que os dois costumavam se corresponder 
via cartas: “Já eram quase sete horas quando resolvi sair de casa. Retirei do alforje o caderno, 
o gravador e as cartas que me enviaste da Espanha” (HATOUM, 2017, p. 10 grifo nosso). 
Nesse sentido, o irmão da narradora é seu destinatário de natureza intencional e eles estão 
em um mesmo nível de comunicação. Quando ela está em outro nível de comunicação, em 
que ela é narradora diegética e, portanto, participa da história no mesmo nível das 
personagens, ela “recebe” a mensagem de Hakim: 

Na manhã da segunda-feira tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala 
para rever os animais e dar uma volta no pátio da fonte, onde molhava o rosto e os 
cabelos; depois retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e 
diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da memória. (HATOUM, 
2017, p. 34) 

A fala de Hakim entra em um diálogo já existente, porque a narradora também 
comentava sobre o relógio de Emilie, antes de ocorrer a mudança de capítulo: “Tive a mesma 
curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias vezes à minha mãe 
por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu 
pronunciava ao olhar para a lua cheia.” (HATOUM, 2017, p. 35). No trecho a seguir, as 
marcas de interlocução no discurso de Hakim evidenciam o diálogo: “Tu e teu irmão 
conheceram Dorner. Não sei se naquele tempo foste aluna dele, mas sabes o quanto era 
distraído. ” (HATOUM, 2017, p. 66, grifo nosso). Mais adiante, o sistema de comunicação 
dos personagens fica mais evidente ainda no romance, em que a narradora, aparentemente 
apenas, sai de cena, e os personagens interagem entre si. No final do capítulo 2, Hakim fala: 
“Num dos últimos encontros, Dorner relembrou aquela manhã, e me mostrou alguns 
cadernos com anotações que transcreviam conversas com meu pai” (HATOUM, 2017, p 67) 
e, no capítulo 3, em que a instância do narrar passa a ser Dorner, ele se dirige a Hakim, 
evidenciando, nesse momento, a posição de cada um no sistema de comunicação, emissor e 
receptor: “Um desses cadernos encerra, com poucas distorções, o que foi dito por teu pai no 
entardecer de um dia de 1929” (HATOUM, 2017, p. 79 grifo nosso). 


Todos esses três sistemas de comunicação podem ser identificados no esquema de 
Schmid, em que se lê a presença das instâncias participantes, sejam as concretas ou abstratas, 
e seus níveis: o nível da obra, do mundo representado, do mundo narrado e do mundo citado. 

Fonte: SCHMID, 2010, p. 35. 

Para fazer a leitura dessa proposta de modelo de comunicação, mobilizaremos as 
instâncias presentes no romance de Milton Hatoum. Nas duas extremidades do esquema, 
identificamos o autor concreto e o leitor concreto. Essas são instâncias constitutivas, não 
exclusivas, da obra narrativa e que se apresentam também no modo abstrato. Schmid 
esclarece que o autor concreto é a figura histórica, o criador da obra. No caso desse estudo, 
o autor concreto é Milton Hatoum, escritor brasileiro de descendência libanesa, nascido em 
Manaus, homem cuja existência independe da sua obra. Assim também é a figura do leitor 
concreto: existe independente da obra e seu papel pode ser ocupado por uma vasta 
quantidade de pessoas reais que poderão assumir a posição de receptor da obra. 

Autor e leitor concretos estão fora do primeiro quadro que, no esquema, representa a 
obra literária propriamente dita. Dentro da obra, encontram-se projetadas as figuras do autor 


abstrato e do leitor abstrato, juntamente com destinatário presumido e receptor ideal. Ainda 
dentro da obra literária, que para nós é o romance, conforme o esquema, observamos o 
mundo representado. O mundo representado não deve ser confundido com o mundo narrado, 
pois é resultado da criação do autor e inclui o narrador fictício, o leitor fictício e a narração 
propriamente dita enquanto discurso. O terceiro quadro, por sua vez, é resultado da criação 
do narrador fictício: é ele quem cria o mundo narrado, as personagens e seus discursos. Nesse 
sentido, podemos dizer que Milton Hatoum, o autor, quando criou a obra, criou uma 
narradora e a narração; criada a narradora, esta é quem se torna “responsável” por todos os 
elementos do mundo ficcional, por cada personagem que aparece na história e por seus 
respectivos discursos. O mundo citado, localizado no centro do esquema, que é produzido 
pela personagem, também é da responsabilidade do narrador fictício. Esta relação entre 
narradora e personagens criadas, que não são “seres” independentes, é uma das grandes 
contribuições da teoria da narrativa de Schmid e que encontra no romance de Milton Hatoum 
um espaço oportuno para se mostrar. 

Apresentado o esquema, partiremos para a descrição das instâncias que compõem a 
obra em estudo. 

 

3.2 Autor e leitor abstratos 

 

Ao contrário do autor concreto que independe da obra para existir, pois é a própria 
figura humana do escritor, o autor abstrato só existe em função da obra, como aponta o 
próprio esquema de Schmid, em que essa instância aparece no mesmo nível da obra literária. 
O autor abstrato é na verdade uma projeção realizada pelos leitores concretos da obra, que 
levam em conta todas as marcas existentes no mundo representado, isto é, todas as marcas 
deixadas pelo autor concreto ao criar a sua obra literária. A construção do autor abstrato não 
é da responsabilidade do autor da obra, que não tem nenhuma intenção em criar essa 
instância. É, portanto, o leitor concreto e, por que não dizer, a crítica que vai, a partir da obra, 
com suas características estéticas e traços ideológicos, construir um autor Milton Hatoum. 

Uma base para consenso deve ser fornecida pela definição do autor abstrato como 
o correlato de todos os signos indexicais em um texto que aponta para o autor. 
Esses sinais delineiam uma posição ideológica e uma concepção estética. 
“Abstrato” não significa “fictício”. O autor abstrato não é uma instância 
representada, nem uma criação intencional do autor concreto, e é categoricamente 
distinta, desta forma, do narrador, que é sempre — seja explicitamente ou 
implicitamente - uma instância representada. (SCHMID, 2010, p. 48). 

 


Se a imagem do autor abstrato pode ser identificada a partir dos sinais deixados no 
texto, sinais que apontam posições ideológicas e concepções estéticas, podemos 
compreender que cada elemento presente na obra vai comunicar a figura abstrata desse autor: 
as marcas temporais de períodos históricos, as características e pensamentos assumidos pelos 
personagens e o discurso do narrador. Nesse sentido, mesmo sendo o autor concreto a última 
instância responsável pela criação da obra (que veremos na interpretação final do romance), 
todos os vestígios que são resultado e produto do processo de criação já passam a configurar 
essa outra instância, que é o autor abstrato, a quem o leitor fará referência. Schmid explica 
que “o autor abstrato é apenas a hipóstase antropomórfica de todos os atos criativos, a 
intenção personificada da obra” (SCHMID, 2010, p. 48), isto é, configura-se pelas marcas 
textuais, mas assume a forma humana quando projetado pelo leitor. Nesse sentido, 
reforçamos a existência dupla dessa instância: “por um lado, ele é objetivamente dado no 
texto, como um esquema virtual dos sintomas; por outro, depende, para sua configuração e 
atualização, dos atos subjetivos de leitura, compreensão e interpretação” (SCHMID, 2010, 
p. 48). 

Essa instância se configura, portanto, através de atos subjetivos de leitura, isto é, com 
base na própria experiência de leitura da obra. Tal configuração pode sofrer diversas 
variações, uma vez que diferentes leitores podem concretizar o autor abstrato de formas 
variadas e, a cada nova leitura feita pelo mesmo leitor, outras configurações diferentes de 
autor abstrato podem surgir. Schmid coloca então duas formas para se determinar o autor 
abstrato: a partir da obra e do ponto de vista do autor concreto. “Da primeira, o autor abstrato 
é a hipóstase do princípio de construção que molda o trabalho. Da segunda, é o traço do autor 
concreto no trabalho, seu representante dentro dele” (SCHMID, 2010, p. 49). Ele destaca: 

É comum os autores experimentarem suas visões para testarem suas próprias 
convicções em suas obras. Muitos autores percebem possibilidades em seu 
trabalho que devem permanecer não realizadas na vida, e assumem posições que, 
por quaisquer razões, eles não gostariam ou não seriam capazes de propor na vida 
real. Em aspectos ideológicos, o autor abstrato pode ser mais radical ou menos 
comprometedor do que o autor concreto jamais foi na realidade, ou - formulando 
com mais cuidado - do que imaginamos que ele tenha sido, com base nas fontes 
históricas disponíveis. (SCHMID, 2010, p. 49) 

A instância do autor abstrato em Relato de um certo Oriente será aqui identificada 
por alguns caminhos. Primeiramente, a leitura dos trabalhos críticos sobre a obra já nos 
coloca diante dessa instância concretizada pelo crítico que, antes de mais nada, é leitor 
concreto. Os textos de Toledo (2006), Vieira (2007), Moura (2007), Ribeiro (2013), Miranda 
Júnior (2013), Maquêa (2007) e de Birman (2007), selecionados por tratarem mais de perto 


a estrutura narrativa, configuram cada um a seu modo um “autor abstrato”, já que a leitura é 
um ato subjetivo e individual, mas é possível estabelecer pelo menos um aspecto em comum 
nessas leituras, que é a identificação da concepção estética presente na obra. A história no 
romance poderia ser narrada de muitas maneiras: o tempo da narrativa poderia ser linear, a 
narradora poderia não ceder tanto à fala dos personagens, a estrutura dos capítulos poderia 
seguir outros critérios que não a alternância entre o discurso da narradora e a da fala das 
personagens. Todos esses aspectos apontam para um autor moderno, ousado, para lembrar o 
termo usado por Süssekind, que chegou a lembrar o nome de outros escritores de prestígio 
ao observar o texto de Hatoum. Essas escolhas feitas pelo autor no ato de criação da obra 
deixaram marcas que o colocaram em uma posição de muito valor no cenário literário 
brasileiro, principalmente quando posto em destaque entre os autores da Amazônia que não 
alcançaram o mesmo sucesso. 

A linguagem no romance obedece com regularidade, ao longo de toda a narrativa, 
um padrão culto da língua. No primeiro capítulo, em que a narradora inicia: “Quando abri 
os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança” (HATOUM, 2017, p. 7), 
identificamos essa tendência ao uso do português culto; No segundo capítulo, em que 
observamos a representação da longa fala de Hakim: “Perguntei várias vezes à minha mãe 
por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu 
pronunciava ao olhar para a lua cheia” (HATOUM, 2017, p. 35); No terceiro capítulo, cuja 
a fala passa a ser de Dorner: “ Naquela época eu ganhava a vida com uma Hasselblad e sabia 
manejar uma filmadora Pathè” (HATOUM, 2017, p. 68), não verificamos nenhuma outra 
variante do português, o que contribui para a formulação de mais ideias sobre o autor: sua 
formação literária, acadêmica e o leque cultural diversificado, uma vez que construiu 
universos culturais distintos dentro de sua obra, o dos persoangens de origem libanesa, o do 
alemão e o do nativo que sai da sua cidade de origem para uma cidade central do país, ainda 
que isso não se registre por uma variação na linguagem empregada. 

Se essas e outras marcas que funcionam como índices indexicais e que remontam ao 
autor abstrato indicam a sua configuração, questões de ordem ideológica também o fazem. 
Voltando o nosso olhar para os trabalhos críticos e para o breve quadro da recepção da obra 
apresentado, verificamos que as discussões sobre identidade, memória e migração só são 
possíveis porque tais temáticas são explicitamente visíveis no desenvolvimento da história 
no romance. Por que esse autor explorou tais temas em suas obras? Por que a história de uma 
família libanesa e não italiana, portuguesa? Por que os espaços Manaus, São Paulo e Líbano 


dentro da obra? Por que um casamento entre um muçulmano e uma católica? Por que falar 
de deslocamentos e dos sentimentos gerados por essa experiência? Nesse caso a presença do 
autor aparece incutida em cada decisão, em cada escolha e, para isso, vamos observar 
algumas falas das personagens, a fim de identificarmos certos discursos que marcam 
opiniões, pensamentos e posições ideológicas mais evidentes na obra. No primeiro capítulo, 
enquanto a narradora conta sobre a relação de Emilie com o papagaio de estimação, Laure, 
observamos o modo como se estabelecia a relação patroa/empregada doméstica. 

No entanto, ela só começou a desencantar-se com a ave quando esta embirrou com 
uma das empregadas que serviu à família, antes da chegada definitiva de Anastácia 
Socorro. Era uma negra órfã que Emilie escolhera entre a enxurrada de meninas 
abandonadas nas salas da Legião Brasileira de Asssistência; estava faminta e triste 
que havia esquecido seu nome e sobrenome e só se comunicava através de gestos 
e suspiros. Laure, no primeiro contato com a novata, antipatizou com ela [...] 
Emilie tolerou essa birra por algum tempo, mas dispensou a empregada no dia em 
que Laure amanheceu com o bico coberto por uma pasta que era mistura de uma 
baba gosmenta com sal. (HATOUM, 2017, p. 28) 

 

No capítulo 5, trechos da fala de Emilie explicitam o que ela pensava sobre as 
caboclas que trabalhavam em sua casa e engravidavam dos “filhos inomináveis” da patroa: 
“- Deus? Contra-atacou Emilie. – Tu achas que as caboclas olham para o céu e pensam em 
Deus? São umas sirigaitas, umas espevitadas que se esfregam no mato com qualquer um e 
correm aqui para mendigar leite e uns torocados”. (HATOUM, 2017, p. 98). Em seguida, a 
avaliação de Hakim sobre a conduta da mãe em relação ao tratamento dispensado aos 
serviçais: 

Essa conivência de Emilie com os filhos me revoltava, e fazia com que às vezes 
me distanciasse dela, mesmo sabendo que eu também era idolatrado. Tornava-me 
um filho arredio, por não ser um estraga-albarda, por não ser vítima ou agressor, 
por rechaçar a estupidez, a brutalidade no trato com os outros. No meu íntimo, 
creio que deixei a família e a cidade também por não suportar a convivência 
estúpida com os serviçais. (HATOUM, 2017, p. 98-9) 

 

À fala de Hakim, juntamos essa outra fala em que ele menciona o comentário de 
Dorner sobre o mesmo assunto: 

 

Lembro Dorner dizer que o privilégio aqui no norte não decorre apenas da posse 
de riquezas. 

 - Aqui reina uma forma estranha de escravidão – opinava Dorner. – A 
humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à família do 
senhor são as correntes e golilhas. (HATOUM, 2017, p. 99) 

Os trechos apresentam uma forte crítica social. No primeiro, em que observamos a 
fala de Emilie, é importante registrar que o marido dela se mostra contrário em relação à 
esposa. Ele se indigna diante dos gestos dos filhos: “gritou entre pontapés e murros na porta, 
que um filho seu não pode escarrar como um animal dentro do corpo de uma mulher” 


(HATOUM, 2017, p. 98). A fala do marido funciona como um discurso ético sobre o 
problema familiar enfrentado naquele momento e se coloca em contraposição ao da esposa, 
que apresenta o discurso perverso e antiético. Depois, o discurso do pai é igualmente 
compartilhado por Hakim, que confessa ter deixado a convivência com a família por não 
aceitar o comportamento da mãe, ainda que esse comportamento fosse em benefício dele 
também. Quando Hakim cita a fala de Dorner, o estrangeiro alemão, observamos o discurso 
daquele que, com o olhar de fora, é capaz de detectar não só as particularidades positivas do 
local, mas as suas misérias: ao apontar “a estranha escravidão” que ocorre ali, Dorner faz 
uma espécie de diagnóstico, que se relaciona perfeitamente com o que ocorre na casa de 
Emilie. As empregadas são meninas órfãs em situação de miséria, trazidas para a casa de 
seus patrões muito cedo e inseridas no seio da família, podendo desfrutar da comida e do 
teto; por outro lado, estavam sujeitas a todo tipo de humilhação dentro da casa, o que 
efetivamente identificava o verdadeiro lugar delas naquele espaço. 

A quem, em uma obra literária, atribuímos todo material de crítica social presente 
nos discursos das instâncias fictícias? Ao autor abstrato. Nesse sentido, é possível dizer que, 
mesmo não apresentando falas no interior da obra, é possível notar a sua presença, que não 
pode ser invalidada quando se almeja chegar à interpretação do texto, uma vez que tudo o 
que é dito e avaliado no texto literário é atribuído ao autor abstrato, a última instância a quem 
a responsabilidade é dada. Nesse momento de nosso trabalho, tanto o autor quanto o leitor 
abstrato devem ser compreendidos como instâncias que favorecem a interpretação final do 
texto literário, pois elas não participam do mundo narrado, ou seja, não estão contidas na 
história narrada no romance. 

Se não ignoramos o princípio da comunicação em que se estabelecem emissor e 
receptor, logo entendemos, dentro da proposta de Schmid, a existência de um leitor abstrato, 
a instância que existirá lado a lado do autor abstrato. Ressaltando-se a condição abstrata 
dessas instâncias, é preciso dizer que não há contato entre as duas, uma vez que “não são 
instâncias pragmáticas, mas reconstruções semânticas” (SCHMID, 2010, p. 51). O leitor 
abstrato é atributo do autor concreto, é formado a partir da imagem do autor abstrato, isto é, 
só é possível identificá-lo a partir dele. Trata-se de uma instância que nunca coincide com o 
leitor fictício, o narrador, o destinatário do narrador” (SCHMID, 2010, p. 54). Nesse sentido 
Schmid estabelece dois papeis funcionais desse leitor abstrato: o de um “destinatário 
presumido e postulado”, 

para quem a obra é direcionada e cujos códigos linguísticos, as normas ideológicas 
e as ideias estéticas são levadas em conta, tornando-a compreensível. Nesta 


função, o leitor abstrato é portador dos códigos e normas que o público presume 
(SCHMID, 2010, p. 54-5) 

 

Ou de um “destinatário ideal”, 

que entende a obra, toma a atitude de recepção e acolhe o sentido que a obra lhe 
sugere. O comportamento do leitor ideal, sua relação com as normas e valores das 
instâncias fictícias é, portanto, completamente predeterminado pela obra, não 
pelas intenções do autor concreto, mas pelos atos criativos objetivados que se 
realizam na obra (SCHMID, 2010, p. 55) 

 

Para tratarmos dessa instância no texto de Milton Hatoum, é necessário, 
primeiramente, prosseguir com a análise do texto, a fim de alcançarmos resultados que 
possibilitem uma interpretação. A instância do leitor abstrato vai depender da configuração 
que o autor abstrato vai assumir ao final deste trabalho, mas, mesmo sendo possível com a 
leitura da crítica e os breves exemplos de discursos de crítica social, lançar alguma ideia 
sobre esse autor abstrato, podemos projetar uma configuração para a outra instância também. 
Nesse sentido, podemos lançar hipóteses de que o leitor abstrato do romance de Hatoum tem 
as características de um destinatário presumido, uma vez que a mensagem do autor abstrato, 
que pressupõe o domínio do leitor acerca dos códigos e compreensão quanto às suas posições 
ideológicas, chega sem o menor conflito de entendimento. Essa obra não é um dos casos que 
Schmid descreveu, em que o autor pode se enganar em relação ao próprio público: 

ele pode se enganar sobre a posição ideológica da maioria pela dos seus 
contemporâneos, pode superestimar a competência de seus leitores em decodificar 
um discurso impróprio, ou pressupor muita compreensão para a inovação estética. 
Não é incomum que um autor falhe na projeção do público que pretende alcançar, 
seja porque ele se engana com a linguagem, valores e normas de seu público ou 
porque seja incapaz de codificar sua mensagem. (SCHMID, 2020, p. 55) 

 

A narradora começa a sua narrativa reconstruindo trechos da sua infância, apelando 
para a questão da memória, logo a crítica chamou o romance de Hatoum de um romance de 
memórias. A narradora afirma que todos os relatos foram recolhidos e reunidos em um só, 
em função do caderno e do gravador que a auxiliavam nos registros. A crítica recebe isso e 
aceita. Mas será mesmo que “o resultado final” dessa narrativa realizada por ela, “o relato 
final”, contou mesmo com o apoio de um gravador, de um caderno? O fato é que a crítica 
confiou nessa mensagem e se o autor abstrato realmente objetivou essa leitura idealizada 
para a obra, podemos dizer que ele obteve sucesso. Schmid coloca que “A diferença entre 
os dois papéis funcionais, o de destinatário presumido e o de destinatário ideal, será mais 
relevante quanto mais específica for a ideologia da obra, tudo isso exige mais esforço do 
pensamento do que em relação à doxa” (SCHMID, 2010, p. 55). Nesse sentido, a avaliação 
acerca do leitor abstrato da obra vai depender da, por assim dizer, força ideológica da obra, 


e dos procedimentos e indícios que a obra traz que direcionam ou não a leitura para um 
determinado caminho, mas Schmid adverte que o destinatário ideal, não ignora a atividade 
co-criativa do leitor: 

A concepção do leitor abstrato como receptor ideal não postula, naturalmente, a 
natureza obrigatória de um sentido ideal dado na obra, que o leitor concreto só tem 
que compreender corretamente. Não há dúvida de que a atividade co-criativa do 
receptor pode levar a uma direção que não está prevista na obra, e que leituras que 
erram ou mesmo recusam deliberadamente uma recepção desenhada na obra 
certamente podem aumentar o significado dela. (SCHIMID, 2010, p. 57) 

 Compreender a força dessa instância dentro do texto, sem dúvida, contribui para 
identificarmos, através dos indícios deixados na obra, qual leitura o autor pressupõe para a 
obra. Ajuda também a compreender “as decisões” tomadas pela crítica, a escolha por essa 
ou aquela leitura, por que Sherazade aparece, por exemplo, quase como palavra-chave ao se 
fazerem referências à estrutura narrativa. Partir da ideia de que a obra sugere esses caminhos, 
ou seja, pré-estabelece certas possibilidades de leitura, contribuirá para a interpretação dos 
resultados de nossa análise do texto, ainda que consideremos a liberdade do leitor. Sobre os 
indícios presentes no texto, que direcionam a uma leitura idealizada, Schmid diz: 

Deve-se notar que em cada obra há referências mais ou menos inequívocas à sua 
leitura ideal. Essa leitura ideal consiste apenas em casos raros de um sentido 
concreto em termos de conteúdo. Como regra geral, a recepção ideal cria um 
espectro menos amplo de configurações funcionais, concretizações individuais e 
de atribuições de sentido subjetivo. No caso extremo, a leitura ideal pode entrar 
em contradição com uma configuração apresentada e um sentido exposto, quando 
um autor exige do seu leitor a negação da posição de sentido que o narrador sugere. 
(SCHMID, 2020, p. 57) 

O papel do narrador, que está em um outro nível dentro do esquema dos níveis de 
comunicação, deve ser considerado como parte fundamental no desdobramento dos 
discursos dentro da obra. Trata-se de uma instância fictícia que cria, como já dissemos, o 
mundo narrado e todos os elementos que o compõe. O narrador pode sugerir, em seu 
discurso, ou na maneira como escolhe apresentar a história, posições de sentido que poderão 
ou não ser compartilhadas pelo leitor. 

3.3 O narrador fictício 

Quando lemos o romance Relato de um certo Oriente e entramos no nível do mundo 
narrado, que repete toda aquela configuração da comunicação vista no nível do mundo 
representado entre autor e leitor, observamos as instâncias fictícias: narrador, mundo narrado 
e leitor fictício. O narrador fictício é o responsável pela transmissão da comunicação 
narrativa representada. Em outras palavras, a narradora do romance é responsável pela 


apresentação do espaço ficcional Manaus e, dentro de Manaus, a casa de sua mãe e a de 
Emilie. Do mesmo modo, é responsável pelo seu discurso, pelas personagens e pelo discurso 
das personagens. Sendo essa uma narradora explícita, já que a marcação dessa instância 
mediadora é bem forte e evidente na narrativa, seguiremos os parâmetros dados por Schmid, 
com a finalidade de descrever suas características. Fixemos nossa atenção nos capítulos 1, 6 
e 8 do romance, pois são esses os capítulos que contribuem para a noção de uma sequência 
temporal dos acontecimentos na narrativa, já que esses se encontram fora de ordem. 

No romance temos a narração do retorno da narradora à sua cidade de origem e à 
casa da infância vivida ao lado do irmão. A narração desse retorno, narrado nos capítulos 
mencionados, está fragmentada e, nesse sentido, propomos iniciar nosso caminho pelo 
último capítulo, ponto em que a narradora fala da sua condição de saúde, fala que é motivada 
pelos questionamentos do irmão em cartas: 

Lembro-me de que na penúltima carta quiseste saber quando eu ia deixar a clínica, 
e “sem querer ser indiscreto” me fizeste várias perguntas, e até brincaste: “Não se 
trata de uma inquisição epistolar”. Sei que não era uma carta inquisitória, mas a 
tua curiosidade exorbitante às vezes me assusta, a ponto de me deixar perplexa e 
desarmada. O que aconteceu enquanto morei na clínica? As primeiras semanas 
vivi imersa na escuridão pacata de um sono contínuo e sem sonhos. Era como se 
eu tivesse os olhos vendados, ou como se uma cegueira precoce e súbita fosse uma 
defesa à vinda de nossa mãe, que chegou assim que foi informada do meu 
internamento. Creio que não cheguei a vê-la, nem sequer de longe. (HATOUM, 
2017, p. 181) 

 

Que tipo de narradora podemos identificar nesse trecho considerado aqui como o 
ponto de partida da sequência temporal dos acontecimentos? Trata-se, sem dúvida nenhuma, 
de uma narradora dotada de personalidade, isto é, a narradora tem características pessoais 
individuais, uma vez que ela revela seus laços familiares, seus sentimentos por seus entes, 
sua condição psicológica afetada que motivou a sua entrada em uma clínica de reabilitação. 
O fato de ser uma narradora do tipo pessoal faz com que o seu grau de marcação seja forte, 
pois há indícios de sua presença como instância mediadora em todo trecho em destaque, 
basta observar os verbos conjugados na primeira pessoa. As considerações feitas sobre a 
presença da mãe na clínica nos permitem concluir que a relação entre as duas era mínima; 
continuemos: “Talvez fosse ela, porque escutei a mesma voz que nos abandonou há tanto 
tempo: uma voz dirigida a Emilie, sondando de um lugar distante, notícias da nossa vida. ” 
(HATOUM, 2017, p. 181). A narradora comunica a sua condição e estado psicológico e a 
todo instante deixa muito claro a quem se dirige, pois, a figura do irmão está presente em 
cada fala sua, principalmente quando ela representa a fala do outro entre aspas, conforme 
mostrado no penúltimo trecho. Mais adiante, sobre a sua internação, ela continua: 


Alguns dias passei ali pensando: como tinha ido parar naquele lugar, e esperando 
que minha amiga me revelasse o que mais temia, mas que para mim já era uma 
certeza, pois intimamente estava persuadida de que fora internada a mando da 
nossa mãe, depois do meu último acesso de fúria e descontrole, quando nada ficou 
de pé nem inteiro no lugar onde morava. Vim sem muita resistência, como um 
cego ou uma criança perdida que são conduzidos a algum lugar familiar. E ali, a 
alguns quilômetros do centro da cidade, a loucura e a solidão me eram familiares. 
(HATOUM, 2017, p. 182) 

 

Os dêiticos que funcionam como índices de tempo e de espaço, como “passei” e “ali”, 
permitem saber que a estadia na clínica é passado em relação ao tempo da narração, portanto, 
ela não narra de dentro da clínica. Ela descreve o espaço que a abrigou e comenta a presença 
de uma amiga que lhe visitava enquanto esteve internada: 

Às vezes recebia a visita de minha amiga, para quem contava o meu dia-a-dia, a 
conversa com os médicos, e os relatórios que escreviam depois de observar meus 
gestos, meu olhar, as pessoas a quem me dirigia. O minucioso itinerário do meu 
cotidiano era rigorosamente inventariado. Para me divertir, para distorcer alguma 
verdade, para tornar a representação algo em suspense, contava sonhos que não 
tinha sonhado e passagens fictícias da minha vida. Só não inventei a respeito dos 
pais, mas falei muito pouco disso. (HATOUM, 2017, p. 183-4) 

 

 Nada é dito em todo o romance sobre a identidade dos pais da narradora. O pouco 
que se sabe sobre a mãe é o conflito causado pelo sentimento de abandono gerado na filha, 
pois a mulher deu os dois filhos para que Emilie os criasse. Sobre o pai nada é dito, mas 
nesse trecho é possível imaginar que a narradora tem ideia de quem seja o seu pai. No trecho 
seguinte, cheio de marcas de interlocução com o irmão, dá ainda para ter uma noção sobre a 
diferença da relação entre essa mãe e cada filho: o irmão desfrutou mais da presença da mãe 
que a narradora, que foi a primeira a deixar Manaus. 

Miriam me trazia livros, cartas, agulha, linha e notícias. Ela soube que minha mãe 
ia viajar pela Europa e passaria por Barcelona para te visitar. Minha história com 
ela é a história de um desencontro. Sei que este assunto melindroso não te atrai 
muito, “é uma conversa de cristal”, dizias, sempre que eu voltava a falar nisso. 
Assunto que arde, palavras de fogo, conversa do diabo, não? Sei também que 
conviveste um certo tempo com ela, mas eu, que saí mais cedo de Manaus, só a vi 
uma única vez durante a infância. Emilie nunca me escondeu nada, como se me 
dissesse: tua mãe é uma presença impossível, é o desconhecido incrustado no outro 
lado do espalho. (HATOUM, 2017, p. 184) 

 

Até que chegamos ao ponto em que a ideia de uma viagem é cogitada: 

Miriam estranhava o fato de eu não sair dali o quanto antes; ela se incomodava 
quando lhe pedia para sentar no pátio, e estremecia ao ver as duas beatas que se 
acercavam com os olhos arregalados e se ajoelhavam à nossa frente, segurando 
nas mãos um terço de contas transparentes. “O que te atrai para continuares aqui?”, 
me dizia. Quis responder perguntando o que me atraía lá fora, mas preferi dizer 
que estava pensando numa viagem. (HATOUM, 2017, p. 184) 

 

Entendemos que toda a informação dada a seu próprio respeito ajuda a caracterizar o 
grau de pessoalidade dessa narradora, o que nos permitirá comparar com as características 


das narrações nos capítulos 2, 3, 4, 5 e 7. Nesse sentido, seguiremos explorando essas 
informações que constam no final do romance: 

Do tempo que permaneci na clínica, ora procurava o pátio para ficar com as 
outras, ora me confinava no quarto cuja janela se abria para dois mundos. Do 
mundo da desordem, ofuscado pela atmosfera suja do movimento vertiginoso da 
cidade que se expande a cada minuto, eu ainda guardava as cicatrizes do desespero 
e da impaciência de sobreviver, dilacerada pela árdua conquista de prazeres 
efêmeros. (HATOUM, 2017, p. 184-5) 

 

A narradora não é precisa em relação ao tempo que passou na clínica, mas diz que 
“ao fim de algumas semanas” podia reconhecer as vozes das pessoas de olhos fechados. 
Depois, ela fala das atividades manuais que desenvolveu na solidão do quarto da clínica, 
onde aprendeu a bordar: “Retalhei um lençol esfarrapado para fazer lenços, onde bordei as 
iniciais dos nomes e apelidos, teci formas abstratas nos pedaços de pano que desejava 
presentear às que não tinham nome ou não eram conhecidas através dos nomes” (HATOUM, 
2017, p. 185). Não dá para não pensar na relação entre os retalhos de panos e a narrativa, tal 
como a sua preferência por presentear justo aquelas que não tinham nome, como ela mesma. 
Entre as atividades manuais, ela também praticou a escrita: 

escrevi um relato: não saberia dizer se conto, novela, ou fábula, apenas palavras e 
frases que não buscavam um gênero ou uma forma literária. Eu mesma procurei 
um tema que norteasse a narrativa, mas cada frase evocava um assunto diferente 
uma imagem distinta da anterior, e numa única página tudo se mesclava: 
fragmentos das tuas cartas e do meu diário, a descrição da minha chegada a São 
Paulo, um sonho antigo resgatado pela memória (HATOUM, 2017, p. 186) 

 

Mas, ao invés de permitir que o relato escrito fosse lido, tomou uma decisão 
diferente: 

Pensei em te enviar uma cópia, mas sem saber por que rasguei o original, e fiz do 
papel picado uma colagem; entre a textura de letras e palavras colei os lenços com 
bordados abstratos: a mistura do papel com o tecido, das cores com o preto da tinta 
e com o branco do papel, não me desagradou. (HATOUM, 2017, p. 186) 

 

Ela cria uma forma a partir dos retalhos de tecido e do papel picado e se agrada do 
feito, como se estivesse produzindo arte. Isso faz lembrar a leitura feita por Daniela Birman 
(2007), que considerou o traço artístico da narradora, embora tenha tratado dela como 
“escritora moderna”, baseando-se na composição do relato enquanto romance. O fato é que 
o produto final dessa mistura do trabalho artesanal da narradora gera para ela uma imagem: 

O desenho acabado não representa nada, mas quem o observa com atenção pode 
associá-lo vagamente a um rosto informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado, 
talvez uma busca impossível neste desejo súbito de viajar para Manaus depois de 
uma longa ausência. Não desejava desembarcar aqui à luz do dia, queria evitar as 
surpresas que a claridade impõe, e regressar às cegas, como alguns pássaros que 
se refugiam na copa escura de uma árvore solitária, ou um corpo que foge de uma 


esfera de fogo, para ingressar no mar tempestuoso da memória. (HATOUM, 2017, 
p. 186 - grifo nosso) 

 

Mais uma vez é possível pensar a relação entre o acabamento final da narrativa e o 
“rosto informe” que se poderia enxergar a partir do desenho criado por ela. Essa narradora 
demonstra traços de muita sensibilidade para questões estéticas, como veremos mais adiante 
também. O trecho acima também chama atenção porque traz a identificação do espaço onde 
a narradora se encontra enquanto narra: o dêitico aqui dá a informação de que ela se encontra 
em Manaus no tempo da enunciação do discurso narrativo. Nesse ponto, ela explica também 
que a viagem foi um desejo súbito e que o horário da chegada na cidade de sua infância foi 
muito bem pensado. Tudo isso é informado com uma linguagem carregada de comparações 
e metáforas, característica presente em seu discurso em toda narrativa. Esse traço pôde ser 
observado nas descrições feitas sobre a clínica, quando ela compara o espaço a uma 
mariposa: 

Era uma construção cuja planta lembrava uma mariposa: o corpo era o volume que 
abrigava os quartos, a sua cabeça a administração, e nas duas asas simétricas 
situavam-se os pátios, os refeitórios e os jardins com seus caminhos de grama e 
pedra que circundavam as árvores e terminavam nos portões de ferro. (HATOUM, 
2017, p. 183) 

 

A identificação do lugar de onde a narradora realiza a narração nos permite continuar 
a traçar uma ordem para os acontecimentos narrados. Em seguida, chegamos ao ponto que 
poderíamos identificar como o início da história, o momento em que ela chega a Manaus, 
depois de ter calculado o período ideal para retornar à cidade da infância. Vejamos: 

Já passava das onze quando cheguei na casa que desconhecia. Ninguém foi 
avisado de que eu chegaria aquela noite, mas eu sabia que, na ausência da mãe, a 
empregada ficaria sozinha na casa construída próxima ao sobrado onde Emilie 
morava. Dirigi-me ao quintal, após ter atravessado uma espécie de caramanchão: 
passagem entre um vasto jardim e o fundo da casa. Ali, onde se encontravam as 
edículas, tudo estava escuro. Um único globo de luz aclarava o jardim. Preferi não 
acordar a empregada e passar a noite ao ar livre, deitada na grama ou sentada nas 
cadeiras espalhadas sob os jambeiros, ou entre palmeiras mais altas que a casa. 
(HATOUM, 2017, p 187) 

 

 Seria possível, inclusive, encaixar esse trecho antes das primeiras linhas do romance 
e teríamos uma interessante conexão entre as partes: 

Quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança. As duas figuras 
estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa da manhã nublada devolvia 
os dois corpos ao sono e o cansaço de uma noite mal dormida. Sem perceber, tinha 
me afastado do lugar escolhido para dormir e ingressado numa espécie de gruta 
vegetal, entre o globo de luz e o caramanchão que dá acesso aos fundos da casa. 
(HATOUM, 2017, p. 7) 

 


Contudo, voltemos às páginas finais do romance, para tomar nota de mais detalhes. 
Um verbo confirma mais uma vez a localização da narradora no momento da narração: “Na 
última, ao saber que vinha a Manaus, pedias para que eu anotasse tudo que fosse possível: 
‘Se algo de inusitado acontecer por lá, disseque todos os dados, como faria um bom repórter, 
um estudante de anatomia...’” (HATOUM, 2017, p. 188 – grifo nosso). E, desse ponto em 
diante, a narradora declara três informações: a primeira é que toda a história que lemos, isto 
é, o relato, foi feito a pedido do irmão; a segunda é que ela se equipou de todas as maneiras 
possíveis para colher os dados que iriam compor o relato: 

O teu presságio me deu trabalho. Gravei várias fitas, enchi de anotações uma 
dezena de cadernos, mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa. Confesso que as 
tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas ao final de cada passagem, de 
cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de episódios, 
rumores de todos os cantos, fatos medíocres, datas e dados em abundância. 
Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então 
surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto 
que minava a sequência de ideias. E isso me alijava do ofício necessário e talvez 
imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, 
modulado pelo acaso. (HATOUM, 2017, p. 188). 

 

A terceira informação diz respeito à sua dificuldade de concatenar os dados, os 
episódios registrados. Podemos identificar isso em um dos trechos mais citados em textos 
críticos, momento em que a narradora confessa a sua incompetência para lidar com a 
diversidade da fala de cada um: 

Também me deparei com outro problema: como transcrever a fala engrolada de 
uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos 
dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha 
própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras 
vozes. Assim os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audível e 
visível passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação 
e os murmúrios do passado. (HATOUM, 2017, p. 188-9) 

 

A justificativa para a uniformização da linguagem dada pela narradora, como vimos 
na seção anterior deste trabalho, foi lida de formas diversas pelos críticos: Flora Süssekind 
(1989) entendeu como uma desculpa para uma falta do autor. Toledo (2006), através dessa 
uniformização, concluiu que a narradora é, na verdade, o próprio autor, Milton Hatoum; e 
Daniela Birman (2007) leu o mesmo fenômeno como um “jogo de encenação” que nada tem 
a ver com o autor e sim com a narradora. Mas o que de fato pertence às personagens no 
discurso da narradora? E o que pertence à narradora no discurso das personagens? Mesmo a 
narradora afirmando que recorreu à própria voz, tal informação não é capaz de calar as 
perguntas que surgem após a leitura dos capítulos anteriores, uma vez que, narrados com 
verbos em primeira pessoa, tentam fazer com que creiamos que os personagens são 


“narradores”. Vale ainda atentar sempre para a presença das comparações, das metáforas 
constantes em seu discurso, como uma marca de identificação do estilo dessa narradora, “a 
voz que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes”. Avançando 
mais na leitura do texto, a narradora diz aquilo que motivou o seu trabalho com as 
lembranças da infância na construção dessa carta, que é o próprio relato, para o irmão: 

Para te revelar (numa carta que seria a compilação abreviada de uma vida) que 
Emilie se foi para sempre, comecei a imaginar com os olhos da memória as 
passagens da infância, as cantigas, os convívios, a fala dos outros, a nossa 
gargalhada ao escutar o idioma híbrido que Emilie inventava todos os dias. 
(HATOUM, 2017, p. 189) 

 

Esse trecho chama a atenção para algo que, desde o início do romance, 
acompanhamos: a importância da personagem Emilie para a narradora e para todos os 
demais personagens. A história gira em torno dessa figura e sua morte parece cumprir o 
“evento” dessa narrativa. Para a narradora, a figura de Emilie está diretamente relacionada 
com a infância, que é o que ela busca recuperar ao escrever para o irmão, a fim de atenuar a 
gravidade da notícia. Essa morte gera nela uma atitude enquanto alguém que prepara e pensa 
uma forma de escrita: “comecei a imaginar com os olhos da memória”, pois ela precisava 
dar a notícia triste ao irmão. Nesse sentido, no plano diegético, a morte de Emilie, enquanto 
“evento”, sinaliza, pelo menos, dois critérios pensados por Schmid: essa morte é uma 
mudança de estado relevante dentro da história; e tal mudança contraria as expectativas da 
narradora, que não viajou a Manaus prevendo esse acontecimento. 

Para confirmar e alcançarmos uma ideia mais concreta a respeito do papel dessa 
morte no plano diegético e, continuarmos a pensar as características dessa narradora, 
precisaremos verificar o trajeto feito por ela ao chegar em Manaus. A reconstrução do tempo 
e da ordem dos acontecimentos nos permitem saber que ela chega à cidade da sua infância 
em uma noite de quinta-feira. A narradora adormece no jardim da casa da mãe, localizada 
ao lado do sobrado de Emilie e é acordada pela empregada da casa, que parecia já esperar 
pela chegada da visitante. Importante ressaltar que em todo momento a narradora tem o 
irmão como seu interlocutor: 

Quis saber quando nossa mãe tinha viajado, mas não toquei no assunto. Apenas 
disse que ia sair para visitar Emilie. Pela primeira vez a mulher me encarou com 
um olhar sereno e demorado; e enfim pronunciou as frases mais longas da breve 
temporada que passei na cidade. 

 - Leva um pouco de mel do interior para ela, é o que mais gosta – disse enquanto 
dava corda no relógio de parede. 

- Emilie 

 Já está acordada? – perguntei. 

- Dizem que tua avó há muito tempo não dorme; ela sonha dia e noite contigo, 
com teu irmão e com os peixes que vai comprar de manhãzinha no mercado; a essa 


hora já deve estar de volta para conversar com os animais. (HATOUM, 2017, p. 
9-10 – grifo nosso) 

 

O trecho apresenta uma informação de tempo importante: no momento em que a 
narradora enuncia o discurso, ela se encontra fora da cidade; os acontecimentos narrados são 
anteriores ao tempo da enunciação. A temporada na cidade foi breve, ela diz. Nesse trecho 
também, é mencionado o carinho de Emilie pela narradora e pelo irmão, o laço afetivo de 
uma avó para com seus netos, mas não fica explícita nenhuma informação sobre doença, que 
pudesse gerar na narradora a expectativa da morte da avó. 

No trecho seguinte a apresentação de personagens relevantes, que compõem o núcleo 
dessa família adotiva: 

Sim, com certeza Emilie já lhe havia contado algo a nosso respeito. A mulher sabia 
que éramos irmãos e que Emilie nos havia adotado. Talvez já soubesse da 
existência dos quatro filhos de Emilie: Hakim e Samara Délia, que passaram a ser 
nossos tios, e os outros dois, inomináveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o 
demônio tatuado no corpo e uma língua de fogo. (HATOUM, 2017, p. 10) 

 

A narradora deixa a casa da mãe, logo pela manhã, com a intenção de visitar Emilie: 
“Já eram quase sete horas quando resolvi sair de casa. Retirei do alforje o caderno, o gravador 
e as cartas que me enviaste da Espanha e coloquei tudo sobre uma mesinha de ônix” 
(HATOUM, 2017, p. 10). E, em seguida, temos um dado que aponta que a narradora enuncia 
o discurso narrativo, já ciente de tudo o que lhe aconteceria no futuro: “Por distração ou 
hábito, deixei no pulso o relógio. Nunca imaginei que naquele dia iria consultá-lo mil 
vezes, muitas inutilmente, outras para que o tempo voasse ou desse um salto inesperado” 
(HATOUM, 2017, p. 10 – grifo nosso). Então enquanto ela narra, todos os acontecimentos 
já são do conhecimento dela, porque estão no passado. Inclusive, quando ela narra a 
coincidência entre os sons da pancada do relógio e o trinado do telefone, tal acontecimento 
só fará sentido capítulos depois, quando ela dirá quem estava telefonando ou tentando fazer 
contato naquele instante: 

Foi nesse instante que a coisa aconteceu com uma precisão incrível; mal posso 
afirmar se houve um intervalo de um átimo entre as pancadas do relógio da copa 
e o trinado do telefone. Os dois sons surgiram ao mesmo tempo, e pareciam 
pertencer à mesma fonte sonora. A coincidência de sons durou alguns segundos; 
no momento em que o telefone emudeceu, a criança arremessou a cabeça da 
boneca de encontro às hastes do relógio, provocando uma sequência de acordes 
graves e desordenados, como os sons de um piano desafinado. As duas hastes 
ainda se chocavam quando ouvi a última pancada do sino da igreja. Só então corri 
para atender o telefone, mas nada escutei, senão ruídos e interferências. 
(HATOUM, 2017, p. 10-1) 

A narração da coincidência sonora, apesar de não fazer sentido no primeiro momento, 
é enfatizada pela narradora como uma “coisa de precisão incrível” que foi interrompida pela 


ação da criança. Ela narra com certo grau de detalhamento o episódio, que fica em suspense, 
porque ela muda de assunto, voltando-se para o irmão, fazendo-o recordar de um tempo 
distante. Nesse momento, ocorre uma interrupção da narrativa, marcada pelo salto da página 
no romance e no tempo. Na outra página, ela faz referência ao ano de 1954, ano que marca 
o seu primeiro contato com a morte, a perda de Soraya Ângela e, muito provavelmente, o 
ano mais longínquo alcançado pela “memória” dela, uma vez que ela diz: “na minha 
passagem pela nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954” 
(HATOUM, 2017, p. 11). O que ela narra desse ponto em diante? Episódios de sua vida, do 
tempo em que convivia com o irmão que ainda engatinhava. Daí podemos destacar algumas 
personagens importantes que são introduzidas: em primeiro lugar, a criança Soraya Ângela, 
que era filha de Samara Délia, única filha de Emilie; Hindié Conceição, grande amiga de 
Emilie; o marido de Emilie, que não tem o nome mencionado em toda narrativa; e a 
empregada Anastácia Socorro. 

A narrativa ganha um ritmo diferente, porque há uma série de episódios que a 
narradora resgata desse passado mais distante, bem antes de ela sair de Manaus: as 
artimanhas de Soraya Ângela, a sua triste morte por atropelamento, aos seis anos de idade e 
todo sofrimento vivenciado pela narradora que ainda era uma criança na época em que 
perdeu a prima. Mas, em um trecho, podemos ter a noção de que a narradora deixou Manaus 
já madura, pelo nível da conversa que ela teve com a tia: 

Muitos anos depois da morte da filha, numa conversa que tivemos antes de eu 
deixar Manaus, tia Samara me disse que se arrependeu de ter sido feliz naquele 
instante. 

- Ainda era ingênua – desabafou ela. – Pensava que meus irmãos haviam me 
perdoado por ter tido uma filha, mas tudo não passou de uma encenação para 
conquistar a simpatia de minha mãe; Emilie pensou que eles tivessem quebrado o 
gelo comigo, mas só me cumprimentavam na frente dela; bajulavam a coitada e 
fingiam respeitar meu pai porque precisavam da chave da casa e de uns trocados 
para farrear; disse isso a minha mãe e sabes o que ela me respondeu? Tua filha 
nasceu surda e muda e tu estás ficando insensível; teus irmãos te adoram, às vezes 
são incompreensíveis contigo porque ainda são meninos: a adolescência é a idade 
da rebeldia. (HATOUM, 2017, p. 13 – grifo nosso) 

 

Sobre o avô e a sua relação com ele, a narradora diz: 

 

Na verdade, ao elogiar a filha ele se mostrava mais lúcido que nunca. A sua fama 
de homem sisudo, austero e maníaco se diluiu com o tempo, e dos comentários 
apressados sobre a sua personalidade, restou a verdade unânime de que ele era 
antes de mais nada uma pessoa generosa que cultuava a solidão. Foi ele que me 
ajudou a sair da cidade para ir estudar fora, e além disso nunca se contrariou com 
a nossa presença na casa, desde o dia em que Emilie nos aconchegou ao colo, até 
o momento da separação. (HATOUM, 2017, p. 20) 

 


Embora ela e o irmão soubessem de sua origem, em nenhum momento são ditas as 
condições que os levaram a ser adotados pela família, e, como se pode ver, o tratamento 
dispensado aos dois era o mesmo dispensado ao restante da família: 

Desfrutamos os mesmos prazeres e as mesmas regalias dos filhos, e com eles 
padecemos as tempestades de cólera e mau humor de um pai desesperado e de uma 
mãe aflita. Nada e ninguém nos excluíam da família, mas no momento conveniente 
ele fez questão de esclarecer quem éramos e de onde vínhamos, contando tudo 
com poucas palavras que nada tinham de comiseração ou de drama. (HATOUM, 
2017, p. 20) 

 

Logo se nota que essa narradora deixa algumas informações suspensas: nem nos 
momentos de representação da fala dos personagens em diálogo, ela revela seu nome, assim 
como não diz o nome do irmão. O nome do avô também não é dito. Também não é informado 
nada sobre a identidade dos pais biológicos, as razões que ocasionaram a adoção do casal de 
irmãos. Essas lacunas aumentam o mistério dessa narradora, que está inserida na história que 
narra. E podemos divisar claramente e basicamente três tempos em que ela se situa: o tempo 
da enunciação do discurso, pois as marcas presentes no texto já evidenciaram que a narração 
inteira não acontece no mesmo tempo: em um momento ela se encontra em Manaus e, em 
outro, ela está fora de Manaus. Quanto à sua posição dentro da história, ela narra os 
acontecimentos que ocorreram desde o período em que esteve internada em uma clínica em 
São Paulo até a sua viagem a Manaus, tempo mais próximo ao da enunciação do discurso. 
E, depois, ela narra os acontecimentos de um passado mais distante, vinculados à sua 
infância. A diferença dos tempos é que sinaliza e ajuda a diferenciar as sequências de 
acontecimentos. Nesse sentido, a narrativa “moldura” da história é a da viagem para Manaus, 
tanto que, em dado momento, a narradora retorna do passado mais longínquo, em que ela 
trata do relógio de Emilie, para o tempo da viagem, em que todos aguardavam pela chegada 
de Hakim: 

Eu também sempre fui ávida de desvendar o motivo do interesse de Emilie pelo 
relógio. Sabia que entre os tios, apenas Hakim era uma fonte de segredos. No 
momento em que ele desembarcou, Emilie já tinha expirado. Chegou no início 
da noite de sexta-feira, depois de mais de dez horas de um voo complicado e cheio 
de escalas. [...] Chegou também com um pouco de esperança, pois tio Emílio, 
discreto e comedido, evitou falar a verdade ao sobrinho. Avisou por telefone que 
Emilie estava mais triste e saudosa que idosa, e implorou a presença dele antes do 
pôr-do-sol daquela sexta-feira. (HATOUM, 2017, p. 30-1 – grifo nosso) 

 

A sexta-feira marca o dia seguinte à chegada da narradora a Manaus e o dia em que 
Emilie faleceu. O acontecimento da morte é o que motiva também a ida de Hakim à cidade. 
É nessa oportunidade que a narradora e Hakim combinam um encontro: 


O encontro aconteceu na noite do domingo, sob a parreira do pátio pequeno, bem 
debaixo das janelas dos quartos onde havíamos morado. Na manhã da segundafeira 
tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala para rever os animais 
e dar uma volta no pátio da fonte, onde molhava o rosto e os cabelos; depois 
retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, como 
alguém que acaba de encontrar a chave da memória. (HATOUM, 2017, p. 34). 

 

Ao final desse trecho, ocorre uma mudança de capítulo, em que a narradora cede a 
palavra a Hakim, que irá falar também sobre a sua curiosidade em torno do relógio da mãe. 
Observamos que a narradora dá um salto no tempo, pula do dia do sepultamento para o 
domingo à noite. No capítulo 6, em que retorna como instância do narrar, a narradora conta 
aquilo que foi suprimido nesse capítulo 1: o que ela fez quando saiu da casa da mãe para ir 
ao encontro de Emilie? O que aconteceu? No capítulo 6, encontramos os acontecimentos da 
sexta-feira. Vejamos como inicia o capítulo: “Menos de quinhentos metros separavam a casa 
onde nossa mãe morava da de Emilie. Ao longo dessa breve caminhada, impressionou-me 
encontrar certos espaços ainda intactos petrificados no tempo” (HATOUM, 2017, p. 137). 
A narradora vai apreciando cada detalhe do caminho, a fim de se recordar do que existia no 
passado e que não conseguia mais enxergar ali: 

Quando cruzei o portão de ferro da casa de Emilie, também estranhei a ausência 
dos sons confusos e estridentes de símios e pássaros, e o berreiro das ovelhas. A 
porta da entrada estava trancada e, através do muro vazado, vi o corredor deserto 
que terminava no patiozinho coberto pelas folhas ressecadas da parreira e uma 
parte do pátio dos fundos. A casa toda parecia dormir, e foi em vão que bati à porta 
e gritei várias vezes por Emilie. Lembrei-me então das palavras da empregada: 
Emilie devia estar voltando do mercado, carregando a cesta repleta de peixes e 
frutas e legumes que numa manhã distante se espalharam sobre as pedras cinzentas 
que já foram cobertas pelo asfalto, deixando incerto o lugar onde o corpo da 
menina tombara. (HATOUM, 2017, 138-9) 

 

Lembrando-se do local onde ocorrera o acidente que matou Soraya Ângela, a 
narradora espera por um sinal de Emilie em vão. Nesse momento, ela decide “perambular 
pela cidade, dialogar com a ausência de tanto tempo, e retornar ao sobrado à hora do almoço” 
(HATOUM, 2017, p. 139). Segue desse ponto em diante a narração do caminho feito por ela 
nos arredores do centro da cidade, onde ela enxerga uma porção de misérias. “Há quase vinte 
anos passados fora” (HATOUM, 2017, p. 141) da cidade, depois de andar pelo porto e pela 
praça, quando ela se depara com uma figura conhecida: 

Tu não imaginas o susto que eu levei ao sentir uma pessoa estranhíssima se 
aproximar, alguém que visivelmente não era turista nem da terra, uma figura 
vestida de branco, altíssima [...] Ao escutar minha voz engrolada, o rosto dele se 
iluminou, como se as palavras diluíssem a amargura de uma fisionomia outrora 
serena. Ele abriu os braços e disse: “Du hier, Mädchen?!” (HATOUM, 2017, p. 
146-7) 

 

Ela encontra Dorner, o amigo fotógrafo alemão, com quem conversa: 


 

A sua discrição ajudou-me a silenciar sobre a minha vida. Ao notar um quê de 
curiosidade nos seus olhos, apressava-me a perguntar alguma coisa, fingindo 
interesse, pinçando um detalhe que havia escapado. Mas ao tentar me esquivar de 
sua curiosidade, acabava enveredando por trilhas indesejáveis de sua vida. 
Conversar era roubar uma crença, violar um segredo do outro. Para quebrar o 
silêncio e evitar uma revelação, recorríamos ao destino dos amigos. [...] se exaltou 
ao lembrar de tio Hakim. Não desconfiávamos que naquele instante ele estaria a 
caminho de Manaus. (HATOUM, 2017, p. 149) 

 

Esse trecho é um dos que bem ressaltam essa característica subjetiva e introspectiva 
da narradora. Enquanto ela deseja se distanciar daquilo que poderia vir a ser matéria de 
narrativa, isto é, episódios e acontecimentos de sua vida, ela prefere fugir. Essa conversa é 
apenas comentada por ela, não havendo nenhuma representação em forma de diálogo no 
texto. Nesse sentido, todas as impressões sobre esse encontro são extremamente subjetivas. 
Nessa ocasião, Dorner entrega a ela uma folha de papel com dois versos que evoca na 
narradora a imagem de um cometa. A presença de Dorner, que nem era alguém tão próximo 
a ela, como ela diz no texto, parece servir para ilustrar melhor a imagem de seu irmão. Dorner 
dava aulas de alemão para o garoto e era com ele que o fotógrafo tinha uma relação. Vejamos 
como, em alguns momentos, isso se expressa no texto: “Os versos, o seu olhar melancólico 
e, sobretudo, o silêncio não eram maneiras sutis de recorrer a uma presença impossível? 
Porque parecia que tudo o que ele dizia, ou poderia ter dito, ou queria ter dito, era dirigido 
para ti; ou se precipitava rumo ao passado (HATOUM, 2017, p. 152) 

A aparição de Dorner não tem nenhuma função no desenvolvimento da história no 
sentido de não revelar nada e nem realizar qualquer ação que interfira nos acontecimentos 
seguintes. Após a despedida dos dois, quando ela decide retornar do passeio, começa a 
consultar o relógio sem saber exatamente por quê; faz um percurso maior do que o necessário 
para chegar à casa de Emilie: “Talvez quisesse adiar o encontro com Emilie, afastar-me do 
sobrado naquele instante ou suprimir da caminhada o espaço inconfundível da nossa 
infância” (HATOUM, 2017, p. 154). A imprecisão dos seus sentimentos vai configurando 
essa narradora sempre muito subjetiva, sempre presa aos próprios sentidos e percepções de 
tudo ao seu redor. Até que a presença de uma personagem, dessa vez, modifica o curso dos 
acontecimentos: 

Abrindo um clarão entre as pessoas, eu a vi surgir e correr na minha direção, 
vestida de negro, os cachos de cabelo caindo até os ombros. Com os braços abertos 
gritava palavras incompreensíveis, chorava, e do seu rosto molhado saltavam duas 
esferas em chamas. O seu gesto desesperado e decidido me fez entender que eu 
não devia entrar na casa, que me afastasse dali, pois tudo estava perdido. Hindié 
me enlaçou com os braços e despejou todo o corpo opulento sobre o meu; ficamos 
assim, de pé, abraçadas no outro lado da rua, e eu escutava entre soluços o disparo 


ardente do coração de uma mulher que acabara de perder uma amizade de meio 
século. (HATOUM, 2017, p. 155) 

 

A morte enquanto acontecimento é contada de forma bastante emocionada por 
Hindié, com gritos, choro, palavras incompreensíveis, gestos desesperados que impedem a 
narradora de prosseguir com a ação programada, entrar na casa de Emilie. Então ela retornou 
à casa da mãe, onde encontrou a empregada chorando a morte da mulher. Já em casa, a 
narradora reflete: “Subi ao quarto e fiquei pensando no gesto de Hindié, que não me deixara 
entrar na casa enlutada. Para que atravessar a rua, se além do portão reinava o rumor de 
curiosidade e dor, tantos olhares turvos diante da morte? (HATOUM, 2017, p. 155). Então, 
diz sobre a dor de ter adiado tanto o encontro com Emilie: 

Foi doloroso não ter visto Emilie, aceitar com resignação a impossibilidade de um 
encontro, eu que adiei tantas vezes essa viagem, presa na armadilha do dia-a-dia, 
ao fim de cada ano pensando: já é tempo de ir vê-la, de saciar essa ânsia, de 
enfronhar-me com ela no fundo da rede. (HATOUM, 2017, p. 155) 

 

Embora a narradora seja introspectiva, subjetiva e fale, na maioria das vezes, a partir 
do seu próprio lugar no espaço e no tempo, depois que fala do baque sofrido pela morte da 
avó, adota uma postura diferente ao narrar acontecimentos que nada tem a ver com a própria 
vida nem com os próprios sentimentos. Ela se porta assim ao narrar como costumava ser o 
dia-a-dia de Emilie, que já morava sozinha em seu sobrado: 

Todos os dias, às sete horas, Hindié ia encontrar-se com a amiga. Na manhã de 
sexta-feira ela estranhou, como eu, o silêncio da casa. Hindié sempre levava dentro 
do corpete o rosário de contas e as chaves do sobrado. Ela entrou pelo portão 
lateral e, antes de chegar no pátio dos fundos, teve um pressentimento funesto. “Os 
animais, filha, nem se mexeram quando entrei no pátio”, disse Hindié. Parecia que 
todos os olhos eram um só, unidos por uma melancolia atroz. (HATOUM, 2017, 
p. 157) 

 

Essa breve objetivação na forma como narra se deve à presença da personagem, 
Hindié Conceição, que informa os episódios sobre a amiga para a narradora, dando a ela 
conhecimento de acontecimentos que esta não presenciou. É Hindié quem diz à narradora 
como Emilie se encontrava quando foi achada pela amiga, por isso, a narradora, que tem 
conhecimento limitado, é capaz de falar que: “Emilie estava inerte, já quase sem vida, e o 
fio do telefone estava enroscado no pescoço e nos cabelos dela; o auricular sumia na sua 
mão direita, e a outra mão cobria os seus olhos”. (HATOUM, 2017, p. 157). Essa informação 
a faz lembrar daquela coincidência de sons entre o relógio e o trinado do telefone de manhã, 
enquanto se arrumava para ir ao encontro da avó: “Lembrei-me assustada de que, de 
manhãzinha, antes de sair de casa, havia escutado o telefone tocar duas ou três vezes. Talvez 


tenha sido o último apelo de Emilie, a sua maneira de me encontrar e dizer adeus”. 
(HATOUM, 2017, p. 157). Estando próxima a Hindié, o capítulo 6 é finalizado pela 
narradora, que conta os procedimentos feitos pela mulher ao descobrir a amiga naquele 
estado. Também é essa mulher que vai contar episódios da vida de Emilie, principalmente 
de sua relação com os filhos. Percebe-se um novo salto no tempo: numa manhã de domingo, 
a conversa com Hindié rende todo o capítulo 7 do romance. 

E eu, que me recusei a velar o corpo de Emilie, ouvi de Hindié a narração de cenas 
e diálogos; ela gesticulava muito, falava com uma voz meio travada, e quando nos 
olhos estriavam uns fios vermelhos ela saía da cadeira e vinha me abraçar e me 
beijar. Aqueles olhos graúdos ainda ardiam na manhã do domingo, e os cabelos 
amarelados e soltos pareciam imprimir no rosto dela uma aflição bem próxima do 
desespero” (HATOUM, 2017, p. 161) 

 

O capítulo 8, em que a narradora reassume a instância do narrar, inicia com o silêncio 
de Hindié Conceição, após a longa fala. No fim da manhã de domingo, nada mais acontece. 
Então, a narradora retoma os acontecimentos do início da tarde de sexta-feira, quando recebe 
uma ligação de Yasmine, amiga de Emilie, informando tudo sobre o sepultamento da avó e 
a chegada de Hakim. A narradora preferiu chegar ao fim de tudo: “Preferi não sair do carro, 
a fim de permanecer à margem da cerimônia fúnebre. Aquela tarde extenuante terminou na 
casa de Emilie, onde encontramos tio Hakim, sozinho” (HATOUM, 2017, p. 179). 

O relato dessa viagem termina na página 181, quando a narradora conta que só visitou 
o jazigo da avó no dia seguinte, sábado. Ela encontra Adamor Piedade, que trabalhava no 
cemitério há anos, e ele a reconhece como a prima de Soraya Ângela, “a criança que chorou 
a morte de outra criança” (HATOUM, 2017, p. 179). Adamor conta a ela algo curioso: 

Mas no fim da madrugada do sábado ele foi surpreendido por uma voz grave, nem 
alta nem baixa: uma alternância de melodia e lamento, às vezes interrompida 
bruscamente, dando lugar a uma breve quietude, a um sopro de silêncio. “Estou 
habituado a ouvir todo tipo de ladainha”, disse, “mas aquela era diferente de 
todas.” Ele foi de encontro à voz, até avistar um vulto ao lado do jazigo da família. 
Não foi apenas a estranheza do canto que lhe chamou a atenção, mas também a 
posição do corpo: nem de joelhos, nem deitado, meio agachado, com os dois 
braços estirados para as bandas do sol nascente. (HATOUM, 2017, p. 180) 

 

A representação da fala de Adamor Piedade, assim como a de Dorner, não tem tanto 
espaço na narrativa. Quando esteve com Hakim e com Hindié Conceição, todo o curso da 
narrativa foi entregue aos dois, para que a expressão deles pudesse ser representada, 
ganhando espaço na narrativa. Já a conversa com Dorner e Adamor Piedade foi brevemente 
narrada, com a representação de algumas falas entre aspas e algumas com travessão. A 
pontuação é decididamente um dos aspectos relevantes dessa narrativa, quando se trata das 


representações das falas das personagens pela narradora. Tanto que, a fala de Adamor, um 
trecho antes, representada entre aspas, em seguida, aparece após um travessão: 

- Fiquei na espreita – continuou Adamor - , esperando um fiozinho da manhã; aí 
enxerguei um rosto que logo perdi de vista, pois a cabeça embiocava querendo 
procurar a terra, mergulhar no finzinho da noite, sumir. Depois é que percebi: 
aquele vozeirão não vinha da boca do tio Hakim; quem rezava era um objeto 
escuro: uma caixa preta sobre o túmulo do teu avô. Fiz o sinal da cruz, como 
muitos que passam ao lado deste túmulo e ficam abismados porque ali não há uma 
cruz, nem coroa de flores, nem imagem de santo, nenhum sinal de morto cristão. 
E ainda mais vendo aquele corpo sem voz murmurar, de costas para os defuntos... 
(HATOUM, 2017, p. 180) 

 

Sem dúvida, ainda não é possível dizer algo concreto sobre essas diferentes escolhas 
feitas pela narradora, mas é necessário tomar nota disso, para observamos como esse 
procedimento ocorre nos capítulos em que ela cede a palavra às personagens. Ela “finaliza” 
o relato sobre a viagem, conforme já foi dito, fazendo uma reflexão sobre a fala de Adamor. 
E, nesse momento, ela faz uma reflexão que sai do seu mundo interno, da sua vida particular 
e se direciona para um tema mais amplo: 

Eu mesma relutei em acreditar que um corpo em Manaus estivesse voltado para 
Meca, como se o espaço da crença fosse tão vasto quanto o Universo: um corpo 
se inclina diante de um templo, de um oráculo, de uma estátua ou de uma figura, 
e então todas as geografias desaparecem ou confluem para a pedra negra que 
repousa no íntimo de cada um. (HATOUM, 2017, p. 181) 

 

Na mesma página onde termina o relato da viagem começa a narração dos dias em 
que ela esteve na clínica de reabilitação. Dessa forma, “esse corte” feito no tempo, na 
narrativa, torna o texto fragmentado. Notamos que as divisões dos capítulos, os saltos de 
página e até mesmo os espaçamentos de um parágrafo para outro, como esse da página 181, 
não obedecem a uma lógica da própria história, nem do tempo. A narrativa parece assumir a 
forma dos retalhos de tecido feitos por ela na clínica. Seguindo a proposta de uma tipologia 
do narrador de Wolf Schmid e, levando em conta todos os dados que observamos ao longo 
do texto, expressaremos no quadro a seguir as características dessa narradora, a fim de 
pensarmos um tipo para ela. Ao traçarmos um tipo, verificaremos as narrações nos demais 
capítulos e compararemos os procedimentos nas falas de Hakim e de Hindié Conceição. 

 

 

 

 

 

 


Critérios 

Narradora 

Modo de representação 

Explícita 

Status diegético 

Diegética 

Hierarquia 

Primária 

Grau de marcação 

Fortemente marcada 

Personalidade 

Pessoal 

Homogeneidade de sintomas 

Difusas 

Posição avaliativa 

Subjetiva 

Competência 

Conhecimento limitado 

Ligação espacial 

Fixa em lugar específico 

Introspecção 

Com introspeção 

Confiabilidade 

Não confiável 



SCHMID, W. 2010, p. 69 

3.4 Leitor Fictício ou destinatário 

 

Não fica muito difícil, seguindo esta análise, afirmar que o leitor fictício no esquema 
dos níveis de comunicação é o irmão da narradora, uma vez que ela escreve todo o relato 
para ele e se remete a ele a todo momento. A obra que estudamos, nesse caso, tem dupla 
destinação: uma fictícia e uma real. A primeira destinação, podemos dizer, no plano da 
ficção, é o leitor fictício, o irmão, que não aparece na história, não tem “presença”, tampouco 
alguma autonomia enquanto personagem. Não existe diálogo entre a narradora e seu leitor 
fictício, porque ele não responde. Não existe “um capítulo” para representar, pela fala, essa 
personagem tão lembrada por ela, por Emilie, por Dorner; não há trechos de cartas, exceto 
algumas frases e reflexões que ela atribui ao irmão. Não se pode nem falar da questão da 
ausência do nome, porque outros personagens também não recebem nome, tal como ela 
mesma não se nomeia. O que sabemos sobre o leitor fictício o sabemos pelas projeções 
realizadas pela própria narradora. A segunda destinação é o leitor abstrato, esse que, no plano 
da obra, mesmo sendo uma projeção virtual, extrapola a fronteira da ficção, porque é 
materializado sempre na figura de um leitor real. Nesse sentido, leitor fictício e leitor abstrato 
são instâncias diferentes que não devem ser confundidas. Schmid coloca que 

Em princípio, toda narrativa cria um leitor fictício (assim como todo texto cria um 
leitor abstrato como destinatário presumido ou receptor ideal), uma vez que signos 
indiciais que apontam para sua existência, não importa quão fracos eles possam 
ser, nunca podem desaparecer completamente. (SCHMID, 2010, p. 82) 

 

Em Relato de um certo Oriente, o leitor fictício é muito bem marcado, tanto quanto 
a própria narradora é. Schmid inclusive afirma que “quanto mais marcado for o narrador, 
mais evocará uma determinada imagem da contraparte à qual se dirige” (SCHMID, 2010, p. 


82). Podemos identificar uma característica importante da narradora no texto, quando 
avaliamos a sua relação com o seu destinatário: a narradora utiliza essa figura como uma 
“orientação” para como vai narrar os acontecimentos. A orientação é o “alinhamento do 
narrador com o destinatário, sem o qual não pode haver comunicação compreensível. A 
orientação no destinatário só pode ser reconstruída naturalmente à medida que influencia o 
modo de representação”. (SCHMID, 2010, p. 83). A orientação da narradora de Hatoum leva 
em consideração dois aspectos: “os códigos e normas que presumem as ações do 
destinatário” (SCHMID, 2010, p. 83) e, nesse sentido, estamos falando do conhecimento que 
ela tem do que pensa o próprio irmão dela, de como ele avalia a família adotiva, a cidade de 
Manaus, a própria mãe biológica e; segundo, já que ela conhece bem o seu destinatário, ela 
é capaz de antecipar certos comportamentos dele, tanto que ela fala um pouco da rotina na 
clínica de reabilitação, porque isso é algo que interessa a ele. Ela não se demora muito 
falando da má relação com a mãe biológica, porque sabe que com ele a relação se deu de 
forma diferente. Nesse sentido, a narradora tem claramente a noção de que seu interlocutor 
não é alguém passivo, que só receberá o conteúdo da narrativa: ele vai julgar, assumir 
posições, levantar questões, como ela deixa parecer muito bem. 

Como podemos avaliar a posição da narradora no instante em que, no capítulo 2, a 
fala de Hakim é representada? E do mesmo modo, no capítulo 7, quando é a fala de Hindié 
Conceição que aparece manifestada? 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 4. PERSPECTIVA DO NARRAR 

De fato, o belo se encontra na extensão e na ordenação, eis por que 
um ser vivente não seria belo se fosse muito pequeno (pois a visão 
se confunde na duração que se constitui de modo imperceptível), 
assim como também não o seria se fosse muito grande (pois a visão 
não se constituiria numa única visada, escapando à percepção dos 
espectadores a unidade e a totalidade), tal como ocorreria no caso 
de um ser que medisse dez mil estádios. 

Aristóteles 

4.1 Os acontecimentos como objeto da perspectiva 

Quando W. Schmid chamou a atenção para a categoria da Perspectiva nos estudos 
narratológicos, ele quis distinguir tal categoria de uma tipologia do narrador. O teórico tece 
críticas à diversidade de tipologias criadas que disputaram entre si o alcance de um maior 
grau de diferenciação: 

Enquanto Percy Lubbock (1921) distinguiu apenas quatro tipos de narrador ou de 
perspectiva, Norman Friedman (1955) chegou a oito, e Wilhelm Füger (1972) 
conseguiu encontrar doze tipos (ver a visão geral por Lintvelt 1981, 111-76). No 
entanto, os sistemas dessas tipologias bem diferenciados nem sempre são 
convincentes e a sua utilidade não é de forma alguma evidente. Esses sistemas, 
muitas vezes, confundem o tipo de narrador com o tipo de perspectiva e definem 
os critérios subjacentes imprecisamente. Além disso, nem todos os tipos de 
narrador obtidos pela combinação de critérios estão comprovados na literatura. 
Essas três falhas podem ser vistas na tipologia de Füger, na qual mais se observa 
a ambivalência da dicotomia “posição externa – posição interna” do narrador. Da 
mesma forma, como Erwin Leibfried (1970, 245-48), de quem esta oposição foi 
tomada de empréstimo, Füger mistura duas categorias: (1) a presença do narrador 
na história narrada e a (2) perspectiva do narrador. (SCHMID, 2010, p. 66) 

Sabendo que a confusão entre tipologia e perspectiva tem sido uma questão dentro 
do histórico do debate teórico da narratologia, Schmid descreve o fenômeno que, para ele, é 
uma categoria central dessa teoria, também conhecida como teoria do “ponto de vista” ou da 
“focalização”. O conceito “ponto de vista”, dentro da teoria anglo-saxã, foi introduzido pelo 
inglês Henry James, no ensaio A arte da Ficção (1884), e desenvolvido no prefácio de suas 
novelas; posteriormente, “o conceito foi sistematizado por Percy Lubbock como ‘a relação 
do narrador com a história narrada’(1921)” (SCHMID, 2010, p. 89). Nas teorias alemãs se 
popularizou o termo “perspectiva”, mas, desde a década de 1980, com os estudos de Gérard 
Genette, o termo “focalização” ganhou bastante notoriedade e aceitação nos estudos de 
Narratologia pelo mundo. Para além dessas diferenças de nome, há outras diferenças que 
valem a retomada da teoria para a elaboração de uma nova proposta. Schmid coloca que: 

A variedade de concepções existentes da perspectiva nos estudos literários não é 
baseada tanto na diferença de terminologia ou nos diferentes princípios que a 


sublinham, mas preferivelmente e acima de tudo, na divergência de conteúdo que 
se ligou ao conceito. (SCHMID, 2010, p. 89) 

Os diferentes conteúdos atribuídos ao conceito levaram Schmid a constatar a 
necessidade de maior investigação sobre o fenômeno, que ainda precisava de maiores 
esclarecimentos. Antes de dar a sua proposta de definição para o fenômeno, ele examinou 
os modelos mais influentes dessa teoria, dentre eles, a de Franz K.Stanzel, Gérard Genette e 
Mieke Bal22. Por nenhum dos modelos vistos expressarem, satisfatoriamente, a quais 
conteúdos se referem ao se projetar o conceito, Schmid propõe a questão: “O que poderia ou 
deveria significar ‘a perspectiva da narrativa’ no sentido narratológico?” (SCHMID, 2010, 
p. 99) e, em seguida, estabelece, “Perspectiva é definido aqui como o complexo formado por 
fatores internos e externos de condições para a compreensão e representação de 
acontecimentos.” (SCHMID, 2010, p. 99). Para Schmid, “não se aplica a perspectiva a uma 
história constituída, mas ao acontecimento que forma sua base” (SCHMID, 2010, p. 99). 
Contrariando outras referências sobre o assunto, como Genette, que postulou a “focalização 
zero” em seus estudos, Schmid defende que, sem perspectiva não pode haver história, uma 
vez que essa é constituída de acontecimentos submetidos à seleção e hierarquização de uma 
perspectiva. Ele coloca, ainda, que uma das premissas de seus estudos sobre o assunto “é 
que cada representação de realidade implica perspectiva nos atos de seleção, nomeação e 
avaliação de seus elementos” (SCHMID, 2010, p. 99). 

22 Sobre a discussão teórica dessas referências e de outras de origem eslava, ler a introdução do capítulo sobre 
Perspectiva no trabalho de Schmid (2010). 

Nesse sentido, para Schmid, não se pode narrar um acontecimento, sem selecionar, 
dentre incontáveis aspectos, características e momentos referentes a tal acontecimento; por 
essa razão, a seleção está sempre acompanhada de uma perspectiva. Assim, em relação ao 
romance de Hatoum, avaliamos ser pertinente a perspectiva para pensar, inicialmente, a 
questão da “compreensão e representação”, enquanto “diferentes atos de narração” 
(SCHMID, 2010, p. 99) realizados pela narradora. Esses diferentes atos de narração dizem 
respeito ao fato de que um narrador pode representar um acontecimento de uma forma 
diferente da maneira como ele o compreende ou o havia compreendido. Para iniciar, ciente 
de que temos uma narradora diegética, podemos identificá-la em duas situações: a primeira 
situação diz respeito ao tempo presente da enunciação do discurso; enquanto ela narra, ela é 
um “eu narrando” (SCHMID, 2010, p. 76); a outra situação diz respeito a um tempo passado 
em relação ao discurso; a narradora narra acontecimentos dos quais ela mesma participa, 


porque ela faz parte da história, nesse sentido, ela é um “eu narrado” (SCHMID, 2010, p. 
76) e, somente nesse aspecto, se assemelha a uma personagem como as outras. 

O eu narrado e o eu narrando da narradora de Relato de um certo Oriente estão 
submetidos a uma distância temporal e psicológica. A mulher adulta que narra os 
acontecimentos vividos na infância já não é a “criança que chorou a morte de outra criança”. 
A mulher que narra está mais velha e viveu a experiência de uma clínica de reabilitação, em 
razão de surtos e outras complicações não descritas no texto, portanto, já passou por 
mudanças significativas. Existe uma correlação entre a perspectiva do eu narrando e do eu 
narrado? Ou podemos enxergar a predominância de uma sobre a outra? No primeiro capítulo, 
segunda parte, em que ela fala de Soraya Ângela, a narradora inicia o relato da morte da 
menina na página 14 e continua até a página 22 

Estavas ausente naquela manhã. Emilie te levara ao mercado, os tios dormiam e 
Samara Délia madrugava na Parisiense com vovô. Tudo aconteceu de uma forma 
rápida e inesperada, como se o golpe fulminante da fatalidade perseguisse o corpo 
de Soraya Ângela” (HATOUM, 2017, p. 14). 

Nesse trecho, onde se observa o início da narração do acontecimento com Soraya 
Ângela, percebemos a perspectiva da narradora, ou ainda, a “perspectiva narratorial”, pois 
não há qualquer indício de que a seleção, nomeação e avaliação dos acontecimentos sejam 
feitas por uma personagem. 

Na oposição perspectiva narratorial vs. figural, o segundo elemento é marcado. 
Isto significa: se a perspectiva não é figural (e a oposição de pontos de vista não é 
inteiramente neutralizada), ela se assemelhará à narratorial. Então, a perspectiva é 
narratorial não somente quando o narrador apresenta traços de compreensão e 
representação de um narrador individual, mas também quando o narrador 
aparenta-se “objetivo” ou contém somente traços ínfimos de um ser real refratado 
por algum tipo de prisma. Isto se dá porque o narrador está sempre presente na 
obra narrativa como um fornecedor de significado, mesmo se apenas por 
intermédio da seleção de elementos. (SCHMID, 2010, p. 106) 

 

A perspectiva narratorial é marcante em toda descrição que a narradora realiza sobre 
as frutas, as flores que faziam parte do jardim onde ela costumava brincar com a menina. A 
narradora compara o jambo a um coração de veludo, utiliza-se de adjetivações, do grau 
aumentativo e advérbio, como se pode ver no trecho seguinte. Inclusive, pode-se notar 
também, que a própria narradora sinaliza que só foi capaz de compreeder mais tarde a 
necessidade que Soraya Ângela tinha de cheirar por mais tempo as frutas e as flores, 
evidenciando o quanto o distanciamento temporal entre eu narrando e eu narrado interfere 
na forma de se representar os acontecimentos na narrativa: 

Soraya me ajudava e era curiosa a sua maneira de colher os jambos e as papoulas 
umedecidos pelo sereno. Permanecia um tempão a mirar a polpa desse coração 


de veludo que é jambo; as papoulas, as orquídeas e as flores ela cheirava 
demoradamente e mais tarde intuí que o odor e o olhar compensavam de certa 
forma a ausência dos dois sentidos. (HATOUM, 2017, p. 14-5 grifos nossos) 

 

Em seguida a narração do instante da morte de Soraya. Observamos não a cena do 
atropelamento, porque a narradora, como vimos na seção anterior deste trabalho, não tem 
uma visão holística dos acontecimentos, por se encontrar espacialmente fixa, mas o 
momento em que a narradora percebe o baque, uma vez que tudo é narrado pela perspectiva 
narratorial: 

Eu, pasmada, olhando para a rua, e aquele baque surdo que parecia flutuar no vapor 
emanente das pedras cinzentas. Procurava Soraya ao meu redor, por detrás dos 
troncos, da folhagem que lambia a terra, fingindo encontrá-la, aceitando 
absurdamente a hipótese de que ela teria ido ao pátio ver os animais, banhar-se 
na fonte, pular a cerca do galinheiro e gesticular furiosamente diante do poleiro 
para que, em pânico, as aves passassem do sono à debandada caótica, soltando as 
asas, ciscando a terra e o ar, debatendo-se, encurraladas entre a cerca 
instransponível e a figura lânguida que com seus excessos de contorções sequer a 
a ameçava. (HATOUM, 2017, p. 16 grifos nossos) 

 

Como a narradora era criança também, ela aceitou a possibilidade de Soraya não estar 
perto dela por outras razões que não a morte. A narradora enquanto eu narrado não pensava 
na morte como possibilidade, mas a avaliação do eu narrando, expressa pelas palavras 
“fingindo”, “absurdamente”, revela a presença de duas perspectivas coexistindo no texto, a 
da narradora enquanto criança e enquanto adulta. Enxergamos aí a diferença entre 
compreensão e representação dos acontecimentos pela narradora, mas, sem dúvida, 
prevalece a perspectiva do eu narrando, pois as descrições daquele acontecimento tão 
marcante para a narradora são narrados pelo prisma da mulher já adulta, como se pode notar 
pela forma como ela avalia o comportamento de Soraya e dos bichos e pelo nível da reflexão 
que ela realiza em torno da morte de Soraya: “a chance de ter sido escutada ou percebida”, 
já que não podia falar. Esse aspecto pode ser visto com mais clareza ainda no trecho que 
vem logo em seguida ao anterior: 

Mas essa encenação matinal, presenciada com espanto e comiseração por todos 
nós, talvez fosse uma festa para Soraya, uma maneira de ser escutada ou percebida 
sem ter acesso à palavra, um parêntese no seu cotidiano (o galinheiro, o quintal, 
os animais) para escapar aos olhares, aos sussurros de constatação: ela não fala, 
não ouve, o seu corpo se reduz a um turbilhão de gestos no centro de um espetáculo 
visto com olhos complacentes. (HATOUM, 2017, p. 16) 

A narradora narra os acontecimentos da infância com a perspectiva do eu narrando, 
basta notar a seleção e avaliação de certos detalhes do passado. Ela cogita hispóteses de 
como se sentia Soraya Ângela diante do menino mais novo, levantando questões complexas 
que não poderiam ser levantadas por uma criança: 


Na mesa, à hora das refeições, tu e Soraya eram servidos pelas mãos de Emilie, 
sempre em movimento: descascando frutas, separando os alimentos para cada um 
de vocês, mas tu já podias negar ou aceitar a comida com poucas palavras, com 
monossílabos, enquanto Soraya resignava-se a afastar o prato, negacear com a 
cabeça ou curvá-la em direção ao prato, às vezes olhando para ti, para tua boca, 
talvez pensando: “Quando me faltou a palavra?”, ou pensando: “Em que momento 
descobri que não podia falar?”, talvez vexada porque tu, com a tua pouca idade, já 
eras capaz de construir frases mal acabadas, fracionadas, desconexas, é verdade, 
mas com um movimento dos teus lábios, alguém reagia, alguém movia os lábios, 
o mundo ao teu redor existia” (HATOUM, 2017, p. 16-7) 

A narradora retoma o momento em que tirou Hakim do sono na rede, para lhe 
comunicar o ocorrido e conta o que viu na cena do acidente; como Emilie passou a tratar a 
boneca de Soraya Ângela e todos os outros brinquedos como objetos de recordação: 

A boneca, por exemplo, escapou ilesa do acidente e continuou guardada entre as 
coisas de Emilie, que proibiu a filha de queimar o brinquedo. Foi tio Hakim que 
fisgou a boneca das mãos das crianças, logo após o acidente. Eu o despertei 
balaçando a rede, e com o susto os óculos fixados na sua testa caíram no chão. 
Estava grogue de sono e custou para desgrudar as pestanas [...] então chacoalhei a 
rede com força, e enquanto atirava as begônias, as flores e os caroços de frutas no 
rosto dele, soletrei não sei o que e apontei para a rua: o lugar do desastre. Ele deu 
um salto, olhou para mim e eu mergulhei na rede e fiquei pensando no clarão 
aberto no meio da rua, preocupada contigo, te procurando, mas só havia enxergado 
Emilie debruçada sobre um volume coberto por um lençol manchado de vermelho. 
(HATOUM, 2017, p. 21-2) 

Qual o lugar desse acontecimento na narrativa? A narradora narra a história de Soraya 
Ângela exatamente depois de “saltar” do momento em que o relógio e o telefone tocam ao 
mesmo tempo, significando a morte de Emilie. A narradora deixa de narrar essa morte, para 
narrar a outra mais distante, a que aconteceu em um tempo remoto: 

Foi uma das imagens mais dolorosas da minha infância; talvez por isso tenha 
insistido em evocá-la em duas ou três cartas que te escrevi; na tua resposta me 
chamavas de privilegiada, porque esses eventos haviam acontecido quando eu já 
podia, bem ou mal, fixá-los na memória. (HATOUM, 2017, p. 22) 

Depois de falar tudo o que podia sobre Soraya Ângela, o relógio de Emilie passa a 
ser o objeto de recordação da narradora. O objeto que fascinava Soraya Ângela, a única que 
não se incomodava com “as pancadas graves e intensas” (HATOUM, 2017, p. 26), era 
curioso para todos da família, que não compreendiam o porquê do apego de Emilie pelo 
objeto: “Para o meu avô, para todos nós, a aquisição exigente do relógio foi um mistério 
durante muito tempo” (HATOUM, 2017, p. 29). A narradora continua mais adiante: “Eu 
também sempre fui ávida de desvendar o motivo do interesse de Emilie pelo relógio. Sabia 
que entre os tios, apenas Hakim era uma fonte de segredos” (HATOUM, 2017, p. 30). O 
relógio, nesse sentido, é selecionado como o objeto que, por assim dizer, tematiza outros 
acontecimentos, porque, após o enterro de Emilie, esse é exatamente o assunto sobre o qual 


Hakim começa a falar. Ele, e não outro, era o mais indicado para responder às perguntas 
curiosas sobre a mãe. 

O capítulo 2 do romance, que inicia com a fala de Hakim, foi lido em muitos estudos 
como um capítulo “narrado por Hakim”. O problema dessa afirmação, muitas vezes 
despretenciosa, é que um personagem não pode se tornar narrador, a menos que ele funcione 
“como um narrador secundário” (SCHMID, 2010, p. 69). Em outras palavras, seria 
necessário ele contar uma outra história, dentro da qual ele já existe como personagem. De 
outro modo, “o narrador, como portador da função narrativa, torna-se personagem apenas 
quando ele é narrado por um narrador de um grau mais elevado” (SCHMID, 2010, p. 69) e 
essa dinâmica precisa ser esclarecida, para que não sejam feitas afirmações ingênuas ou 
precipitadas. Hakim não conta uma outra história, inclusive, a própria “equivalência 
temática” (SCHMID, 2014, p. 11) representada pelo relógio enquanto um motivo, coloca a 
história no mesmo nível. Precisa-se ainda levar em consideração o contexto da história no 
momento em que esse capítulo muda, pois a narradora e Hakim conversavam, tratava-se, 
portanto, de um diálogo cujo capítulo consiste numa epécie de enorme resposta aos apelos 
da narradora. 

 

4.2 Perspectivas narratorial e figural no romance 

 

Quando Hakim diz ter tido “a mesma curiosidade na adolescência” (HATOUM, 
2017, p. 35), está fazendo referência a algo dito anteriormente pela narradora, a uma pergunta 
implícita, já que a pergunta não é expressa no texto. Nesse sentido, temos a representação 
da fala da personagem pela narradora. A representação dessa longa fala, que se inicia na 
página 35, é interrompida na página 67, quando temos o início da fala de Dorner e, depois, 
da fala do marido de Emilie. Os capítulos 3, 4 e primeira parte do 5 não podem ser 
examinados como os capítulos 2, 5 e 7, uma vez que Hakim e Hindié Conceição estão de 
fato em diálogo com a narradora e tudo que é dito por eles é resultado da interação com a 
narradora. Diferentemente de Dorner e do marido de Emilie, que não estão em contato com 
a narradora. A fala de Dorner está contida na fala de Hakim e a fala do marido de Emilie 
está contida na fala de Dorner. 

 A disposição dessas falas em capítulos diferentes criam no leitor a ideia de que 
estamos diante de narradores diferentes e estamos certos de que esse aspecto do texto já não 
está mais ao encargo da narradora e sim do autor, enquanto instância abstrata que deixa suas 


marcas na obra, pressupondo uma leitura ou interpretação esperada. Porém, antes de 
chegarmos aos capítulos referentes à fala de Dorner e do marido de Emilie, examinaremos 
como ocorre a perspectiva figural na fala de Hakim. Schmid propõe cinco parâmetros para 
a identificação da perspectiva: perceptiva, ideológica, espacial, temporal e linguística; mas, 
nem sempre é possível identificar indicadores para os cinco parâmetros. 

Anos depois, ao arrancar algumas palavras de Hindié Conecição é que a coisa 
ficou mais ou menos clara. Ela me contou uma passagem obscura da vida de 
Emilie. Minha mãe e os irmãos Emílio e Emir tinham ficado em Trípoli sob a 
tutela de parentes, enquanto Fadel e Samira, os meus avós aventuravam-se em 
busca de uma terra que seria o Amazonas. Emilie não suportou a separação dos 
pais. (HATOUM, 2017, p. 37) 

 

“Anos depois” marca o tempo sucedido após a primeira resposta de Emilie ao filho 
sobre o relógio e “obscura” consiste na avaliação que Hakim faz sobre o episódio da vida da 
mãe, que, no passado, ingressara no noviciado de Ebrin e só saiu de lá porque o irmão Emir 
ameaçou suicidar-se com um tiro nas têmporas. Hakim diz: 

Foi um golpe terrível na vida de Emilie. Ela concordou em deixar o convento 
naquele dia, mas suplicou que a deixassem rezar o resto da manhã e tocar ao meiodia 
o sino anunciando o fim das orações. Foi a Vice-Superiora, Irmã Virginie 
Boulad, quem atribuiu a Emilie a tarefa de puxar doze vezes a corda do sino 
pendurado no teto do corredor contíguo ao claustro. Essa atribuição fora fruto do 
fascínio de Emilie por um relógio negro que maculava uma das paredes brancas 
da sala da Vice-Superiora. Ao entrar pela primeira vez nesse aposento, exatamente 
ao meio-dia, Emilie teria ficado boquiaberta e estática ao escutar o som das doze 
pancadas, antes mesmo de ouvir a voz da religiosa. (HATOUM, 2017, p. 36) 

 

Ao advertir sobre a possibilidade de não se identificar os cinco parâmetros na 
identificação da perspectiva, seja narratorial ou figural, Schmid chama a atenção para uma 
análise básica: é preciso se questionar quem seleciona, avalia e nomeia os momentos em um 
determinado trecho de texto: 

Quem é responsável pela seleção de momentos dos acontecimentos em um dado 
trecho textual? A qual instância o autor responsabiliza o ato da seleção dos 
momentos de acontecimentos da história narrada: o narrador ou a personagem? Se 
a seleção de unidades narrativas corresponde ao horizonte da personagem, a 
pergunta é, se essas unidades são conteúdo atual da consciência do personagem 
ou se o narrador somente as reproduz de acordo com os modos da personagem de 
compreensão e pensamento. (SCHMID, 2010, p. 117) 

 

A seleção dos momentos de acontecimentos da história é da responsabilidade de 
Hakim, que tem o domínio desse conteúdo graças a Hindié Conceição, que lhe revelou essas 
passagens da vida da mãe. Percebemos também que essa seleção corresponde ao horizonte 
de Hakim, pois, ao mencionar determinados elementos do passado, como a estadia de Emilie 
no convento, ele atualiza as suas reflexões e conclusões quanto ao valor que a mãe atribuia 
ao relógio: “Talvez por isso Emilie parava de viver cada vez que o eco quase imperceptível 


das badaladas da igreja dos Remédios pairava e desmanchava-se como uma núvem sobre o 
pátio onde ela polia os anjos de pedra após extrair-lhes o limo e os carunchos” (HATOUM, 
2017, p. 37). Nesse sentido, a perspectiva perceptiva figural pode ser identificada por meio 
da seleção dos momentos, mas a linguagem, na expressão dessa percepção da personagem, 
não se altera. Não há nada que identifique a perspectiva figural linguística. Inclusive há 
semelhanças muito grandes entre a linguagem da narradora e a do personagem. 

Na seção anterior, em que foram analisados os trechos referentes ao discurso da 
narradora, apontamos um aspecto linguístico muito característico dela, suas constantes 
comparações e usos de metáforas para realizar descrições. A fala de Hakim não se distancia 
muito disso. Ele parece, inclusive, ter tanta sensibilidade e minuciosidade em suas descrições 
quanto ela ao dar conta de certos detalhes bastante específicos, dentre eles, o incômodo pelos 
“excessos” de Hindié Conceição: 

Hindié tratava qualquer criança como se fosse seu filho, despejando uma 
enxurrada de beijos, abraços e palavras carinhosas nas pequenas vítimas que 
moravam nos arredores de sua casa. Mas essa entrega parecia a manifestação de 
um sadismo requintado, pois o carinho exagerado que recebíamos de uma mulher 
como Hindié dava-nos uma incômoda sensação física, sem a transcendência e 
naturalidade do gesto materno, que, para ser caloroso e sensual, não necessita de 
excessos nem de grandes encenações. Talvez por isso, quando criança, eu me 
sentia sufocado e acuado na presença de Hindié, não tanto pela feiúra e desleixo 
do seu corpo, e sim pela maneira que me seguia, ou melhor, me perseguia, com os 
dois braços abertos e agitados, que para o tamanho de uma criança, pareciam um 
par de tentáculos. (HATOUM, 2017, p. 39-40) 

Hakim recupera as impressões que tinha na infância sobre o toque da mulher, 
atualizando, segundo a perspectiva de um Hakim já adulto, o que lhe ocorria naquele tempo. 
Esse movimento também é muito semelhante ao da narradora quando lembra de passagens 
da infância dela. Observamos agora a descrição que Hakim faz do cheiro que sentia na 
infância de Hindié Conceição: 

Mas havia algo mais forte e repulsivo no corpo dela: o cheiro, o odor de azedume 
que flutuava ao redor daquela mulher como uma aura de fétidos perfumes. Na 
infância há odores inesquecíveis. Durantes esses anos de ausência, não sei se seria 
capaz de recompor na memória o corpo inteiro de Hindié, mas o bafo que se 
despregava dela, mesmo à distância, me perseguiu como a golfada de um vento 
eterno vindo de muito longe. Meu pai dizia que era um cheiro mais enjoativo que 
o do gato maracajá. Com uma ponta de ironia, ele me segredava: se esta mulher 
entrar no mato, jaguatirica no cio vai lamber as pernas dela. (HATOUM, 2017, p. 
40 – grifo nosso) 

Observa-se a presença da comparação na fala de Hakim, “me perseguiu como a 
golfada de um vento eterno vindo de muito longe”, o que faz lembrar as comparações feitas 
pela narradora, ricas em imagens. Se utilizássemos a linguagem, com o objetivo de 
diferenciar a perspectiva narratorial da figural, correríamos o risco de enxergar somente a 


narratorial. O curioso é que o tema da linguagem aparece de fato na fala de Hakim, quando 
ele diz mais adiante sobre como iniciou seus estudos de língua árabe, depois que viu a mãe 
escrever um bilhete em árabe para o marido e passá-lo por debaixo da porta: 

Desde então, cresceu em mim um fascínio, uma curiosiade desmensurada pelas 
três linhas rabiscadas por Emilie e pela voz de meu pai. Já estava me habituando 
àquela fala estranha, mas por algum tempo pensei tratar-se de uma linguagem só 
falada pelos mais idosos; ou seja, pensava que os adultos não falavam como as 
crianças. Aos poucos me dei conta de que eles gesticulavam mais ao falar naquele 
idioma, e houve casos em que intuí ideias através dos gestos. (HATOUM, 2017, 
p. 54-5) 

Nas próximas três páginas, Hakim fala de como era curiosa aquela forma de falar, 
para ele, na infância. Ele recorda o que pensava sobre a fala dos pais, “linguagem dos mais 
idosos”, característica que os tornavam diferentes das crianças. Emilie, diante do interesse 
de Hakim pelo que ouvia, tomou uma decisão naquele tempo: 

Nessa noite, ao me acompanhar até o quarto, minha mãe sussurrou que no próximo 
sábado começaríamos a estudar juntos o “alifebata”. Sentada na cama, me 
confidenciou que sua avó lhe ensinara a ler e escrever, antes mesmo de frequentar 
a escola. Para comentar a aprendizagem da língua-mãe, me contou sucintamente 
como falecera, Salma, minha bisavó, aos cento e cinco anos de idade. (HATOUM, 
2017, p. 55) 

Hakim recorda a ansiedade pelo dia em que teria sua primeira aula: “Esperei o 
sábado, ansioso para que evaporassem as horas e os minutos, redobrando a atenção quando 
o meu pai deixava escapar uma frase no outro idioma” (HATOUM, 2017, p. 56). Citaremos 
as passagens em que ele descreve a sua primeira aula, verificando que, curiosamente, 
nenhuma palavra em árabe é citada. 

As primeiras lições foram passeios para desvendar os recantos desabitados da 
Parisiense, os quartos e cubículos iluminados parcialmente por clarabóias: o corpo 
morto da arquitetura. Sentia medo ao entrar naqueles lugares, e não entendia por 
que o contato inicial com um idioma inaugurava-se com a visita a espaços 
recônditos. Depois de abrir as portas e acender a luz de cada quarto, ela apontava 
para um objeto e soletrava uma palavra que parecia estalar no fundo de sua 
garganta. (HATOUM, 2017, p. 56) 

A tentativa de uma “descrição fonológica” que Hakim faz se assemelha a de alguém 
que sente o idioma com o estranhamento da primeira vez, nesse sentido, ele recupera as suas 
impressões iniciais ocorridas na infância sobre a pronúncia das palavras. Do mesmo modo 
ele também descreve a sua descoberta da língua escrita: 

ela escrevia cada palavra, indicando as letras iniciais, centrais e finais do alfabeto. 
Eu copiava tudo, esforçando-me para escrever da direita para a esquerda, 
desenhando inúmeras vezes cada letra, preenchendo folhas e folhas de papel 
almaço pautado. No fim da tarde, corria para mostrar ao meu pai as anotações, que 
ele corrigia [...]. Ela ensinava sem qualquer método, ordem ou sequência. Ao 


longo dessa aprendizagem abalroada eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o 
halo do “alifebata”, até desvendar a espinha dorsal do novo idioma: as letras 
lunares e solares, as sutilezas da gramática e da fonética que luziam em cada objeto 
exposto nas vitrinas. (HATOUM, 2017, p. 57) 

A seguir as comparações, as metáforas cheias de imagem em torno das letras e da 
pronúncia: 

Passei cinco ou seis anos exercitando esse jogo especular entre pronúncia e 
ortografia, distinguindo e peneirando sons, domando o movimento da mão para 
representá-los no papel, como se a ponta do lápis fosse um cinzel sulcando com 
esmero uma lâmina de mármore que aos poucos se povoava de minúsculos seres 
contorcidos e espiralados que aspiravam às formas dos caracóis, das goivas e 
cimitarras, de um seio solitário que a língua ao contato com o dorso dos dentes e 
ajudada por um espasmo fazia jorrar dos lábios entreabertos um peixe Fenício. 
(HATOUM, 2017, p. 57) 

Dentre tantos outros episódio relatados: os objetos secretos que Emilie guardava, 
como correspondências, as festas em sua casa, Hakim fala em Emir, o irmão de Emilie que 
cometeu suicídio e cujo nome era pouco pronunciado em reuniões de família: “O nome de 
Emir quase nunca era mencionado nas horas das refeições ou nas conversas animadas por 
baforadas de narguilé, goles de áraque e lances de gamão” (HATOUM, 2017, p. 63). Emir é 
a segunda “equivalência temática” (SCHMID, 2014, p. 11), pois, ao falar nele, Hakim aciona 
uma conversa que teve com Dorner. Vejamos: 

Dorner fotografou Emir no centro do coreto da praça de Polícia. Foi a última foto 
de Emir, um pouco antes de sua caminhada solitária que terminaria no cais do 
porto e no fundo do rio. A história desse retrato me contou o próprio Dorner, anos 
depois, com palavras medidas para não revelar um fato atroz que eu já havia 
intuído ao ler as cartas de Virginie Boulad. A foto contava o que Dorner não me 
pôde dizer: o rosto tenso de um corpo que caminhava em círculo ou sem rumo; 
uma das mãos de Emir desaparecia no bolso da calça, e a outra mão acariciava 
uma orquídea tão rara que Dorner nem atinou ao desespero do amigo. (HATOUM, 
2017, p. 67) 

O capítulo 3 inicia com a fala de Dorner, que tem Hakim como seu interlocutor, mas, 
diferentemente do que ocorre entre a narradora e Hakim, que estão juntos no tempo e no 
espaço, a fala de Dorner está no passado, é uma lembrança de Hakim. Do mesmo modo, é 
também uma lembrança de Dorner a fala do pai de Hakim. Caracterizaremos os capítulos 3 
4, 5 e 7 de antemão como uma amostra mais acentuada da “super-determinação funcional” 
(SCHMID, 2010, p. 119) da fala das personagens no texto narrativo, isto é, enquanto essas 
falas: 

expressam, de um lado, os conteúdos figurais por outro lado, esses segmentos 
assumem a dupla tarefa de caracterização figural e de sustentação da narração. Isso 
significa que as palavras usadas por uma personagem falante intencionadas como 
ato comunicativo servirão, também, ao narrador em sua reprodução narrativa, à 


caracterização da personagem como a representação da história (diegese). 
(SCHMID, 2010, p. 119) 

Vejamos a fala de Dorner sobre Emir: 

Na manhã em que avistei Emir no coreto da praça, eu me encaminhava para a 
moradia de uma dessas famílias que no início do século eram capazes de alterar o 
humor e o destino de quase toda população urbana e interiorana, porque 
controlavam a navegação fluvial e o comércio de alimentos. (HATOUM, 2017, p. 
68) 

O capítulo 3 inicia com essa equivalência temática. Emir é esse elo que interliga a 
fala de Hakim e a fala de Dorner e que não nos leva a concluir que Hakim se torna um 
narrador hierarquicamente secundário. Hakim não ascende ao status de narrador e, ainda que 
não esteja naquele mesmo tempo e espaço da enunciação do discurso ao lado de Dorner, o 
que se vê no texto é mais uma vez a representação de um diálogo, pois há marcas de 
interlocução na fala de Dorner. No trecho em que se observa a fala de Dorner, identificamos 
a perspectiva figural, uma vez que o fotógrafo menciona acontecimentos dos quais a 
narradora não participa e de cujos detalhes ela desconhece. Dorner foi o último a ver Emir 
antes do suicídio. No início de sua fala, Dorner se situa no tempo, no espaço e diz aonde 
pretendia ir naquele momento em que a tragédia ocorreu. A perspectiva figural do 
personagem fica evidente também pela presença bem marcada da avaliação de Dorner 
quando ele se refere àquelas famílias; há uma perspectiva ideológica da personagem sobre 
elas. Vejamos como a “super-determinação funcional” se desenvolve quando Dorner 
caracteriza Emir: 

Enquanto fazia as fotos da famíia Ahler, eu pensava nas conversas que tivera com 
Emir, ele falava uma algaravia, era difícil compreendê-lo; me sentia diante de um 
narrador oral do norte da África, ele tinha esse dom de narrar e convencer com a 
voz o interlocutor, com a voz, não exatamente com as palavras, porque muitas 
frases eram incompreensíveis. Também não entendia o passeante solitário que de 
manhãzinha deixava o hotel Fenícia, acordava um catraieira na beira do mercado, 
e na canoa os dois remavam até a outra margem do igarapé dos Educandos; depois 
ele continuava a pé, alcançava o centro da cidade, e eu o seguia pelas ruas estreitas, 
alinhadas por sobrados em ruínas. Não, Emir não era como os outros imigrantes, 
não se emaranhava no interior enfrentando as feras e padecendo as febres, não se 
entregava ao vaivém incessante entre Manaus e a teia de rios, não havia nele a 
sanha e a determinação dos que desembarcam jovens e pobres para no fim de uma 
vida atormentada ostentarem um império. Emir se esquivava de tudo, ele tinha um 
olhar meio perdido, de alguém que conversa contigo, te olha no rosto, mas é o 
olhar de uma pessoa ausente. (HATOUM, 2017, p. 69) 

Nessa transcrição de sua fala, identificamos a caractertização de Emir e não se trata 
de uma caracetrização qualquer: Ele diz que Emir “falava uma algaravia”, Dorner não 
conseguia compreendê-lo. A relação feita entre o amigo e um narrador oral do norte da 
África evidencia o conhecimento cultural do persoangem viajante. Dentre tantos aspectos de 


Emir, Dorner elege a voz do amigo como algo que convencia o interlocutor. O fotógrafo não 
esconde o quanto o amigo árabe era interessante aos seus olhos e o quanto atraía a sua 
atenção, ao ponto de dizer que Emir não era como os outros imigrantes, pois não ficava 
encantado pelo exótico, não se deixava atrair pelos caminhos aventureiros que aquele espaço 
continha. Emir não tinha os objetivos que os imigrantes que ali chegavam tinham em 
comum, pois carregava uma expressão desorientada, distante. As escolhas dessas 
características são feitas em função da perspectiva figural de Dorner. Emir era diferente 
justamente porque ele era o contrário de Dorner, que se embrenhava pelos rios e se 
relacionava com índios e toda a gente que vivia às margens dos rios. A “super-determinação 
funcional” nesse caso serve à caracterização de uma personagem que não é conhecida pela 
narradora e à caracterização do próprio Dorner. Por meio da expressão de sua fala, de suas 
seleções, avaliações, compreendemos mais a seu respeito. Do mesmo modo, sua fala sustenta 
a narrativa, conferindo conteúdos para a história. 

Dorner fala de seus sentimentos em relação à essa morte: “Não sem um certo 
arrependimento, eu pensava: por que não levara Emir para a casa dos Ahler? Por que 
fotografá-lo com a orquídea na mão e deixá-lo vagar, atordoado, a um passo do desastre?” 
(HATOUM, 2017, p. 74). Como notamos nos demais capítulos, no discurso da narradora e 
na fala de Hakim, há na fala de Dorner também a presença de uma linguagem cheia de 
metáforas, que provoca um efeito estético: 

Nos sonhos, eu e Emir aparecíamos à beira do cais, cujo limite era a espessa cortina 
do chuvisco num momento do dia marcado pelo silêncio. O que dizíamos um ao 
outro não delineava exatamente uma conversa e sim um amálgama de enigmas, de 
vozes refratárias, pois recorríamos à nossa língua materna, que para o outro nada 
mais era senão sons sem sentido, palavras que passam por um prisma invisível, 
melodia pura tragada pelo vento morno, sons lançados na atmosfera e engolfados 
pela bruma. (HATOUM, 2017, p. 75) 

 

Além de essa fala do estrangeiro não ser representada nem por meio de uma palavra 
ou outra em alemão, ou ainda por uma estrutura sintática diferente, o que se observa é uma 
semelhança entre a linguagem do personagem alemão e da narradora. Dando prosseguimento 
à compreensão da “super-determinação funcional” de sua fala, Dorner conta como conheceu 
o pai de Hakim, ocasião em que encontraram o corpo do amigo no fundo de um igarapé: 

Quem encontrou o corpo foi Lobato, um índio que teu pai conhecera antes de se 
casar com Emilie. Teu pai não era esquivo aos da terra, mas sempre foi imbuído 
de uma indiferença glacial para com todos, inclusive os filhos, como tu deves 
saber. Interessava-lhe conferir mercadorias, lustrar vitrinas e sobretudo orar em 
alguma caverna de Hira, nos confins da casa ou da loja. Ele se encontrou com 
Emilie pela primeira vez no dia em que o corpo de Emir foi localizado. 
(HATOUM, 2017, p. 75-6) 


Dorner conta que foi o pai de Hakim que encontrou uma prova irrefutável de que o 
corpo achado no fundo do igarapé era mesmo de Emir e que isso o aproximou afetivamente 
de Emilie. “Ele retirou da algibeira uma caixinha, colocou-a na palma da mão direita e a 
ofereceu a Emilie” (HATOUM, 2017, p. 77) e se casaram meses após o enterro de Emir. A 
fala de Dorner também presta a uma caracterização de si mesmo, quando ele imagina como 
seria visto pelo casal de amigos, Emilie e o marido: “Nunca me perguntaram se eu era 
religioso, mas talvez condenassem secretamente este estrangeiro que vivia no mato entre os 
índios, que nunca entrara numa igreja, e no entanto podia rezar uma Ave-Maria em 
nhengatu” (HATOUM, 2017, p. 77). Depois de dizer que presenciou o início da relação de 
Emilie com o marido, Dorner se dedica a falar desse personagem tão curioso, até para ele 
mesmo: “Aproveitei sua disposição para uma conversa (pois não poucas vezes ele sentenciou 
que o silêncio é mais belo e consistente que muitas palavras), e tentei sondar algo do seu 
passado” (HATOUM, 2017, p. 79). Nesse ponto da narrativa, há a interrupção da fala de 
Dorner, para a apresentação da fala do marido de Emilie, resultado de uma sondagem sobre 
o passado do muçulmano: “A mania que cultivei aqui, de anotar o que ouvia, me permitiu 
encher alguns cadernos com transcrições da fala dos outros. Um desses cadernos encerra, 
com poucas distorções, o que foi dito por teu pai no entardecer de um dia de 1929” 
(HATOUM, 2017, p. 79). A “equivalência temática” que conecta a fala de Dorner à fala do 
pai de Hakim é o passado do imigrante libanês, que chegou ao Brasil, para cumprir uma 
missão familiar, atender ao chamado de seu tio Hanna: 

Passados onze anos, talvez em 1914, Hanna enviou-nos dois retratos seus, colados 
na frente e no verso de um papel-cartão retangular; dentro do envelope havia 
apenas um bilhete em que se lia: “entre as duas folhas de cartão há um outro 
retrato; mas este só deverá ser visto quando o próximo parente desembarcar aqui”. 
Ao ler o bilhete, meu pai, dirigindo-se a mim, sentenciou: chegou a tua vez de 
enfrentar o oceano e alcançar o desconhecido, no outro lado da terra. (HATOUM, 
2017, p. 81) 

A fala do muçulmano pode ser notada pela presença da perspectiva figural: quando 
recebeu a carta do tio, ele se encontrava em seu país de origem e precisaria fazer esse 
deslocamento sentenciado pelo pai, “alcançar o desconhecido”, “no outro lado da terra”. 
Atentamos para a linguagem marcadamente rica em comparações e metáforas e, sobretudo, 
para o tom religioso empregado nas descrições do personagem e que configuram a sua 
percepção dos elementos da natureza: 

Ansioso, esperei o amanhecer: a natureza, aqui, além de misteriosa é quase sempre 
pontual. Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mundo invisível; em 
poucos minutos a claridade surgiu como uma súbita revelação, mesclada aos 


diversos matizes do vermelho, tal um tapete estendido no horizonte, de onde 
brotavam miríades de asas faiscantes: lâminas de pérolas e rubis; durante esse 
breve intervalo de tênue luminosidade, vi uma árvore imensa expandir suas 
raízes e copa na direção das nuvens e das águas, e me senti reconfortado ao 
imaginar ser aquela árvore do sétimo céu. (HATOUM, 2017, p. 82 grifo nosso) 

A descrição do céu e do horizonte na ótica do recém-chegado à nova terra enfatizam, 
portanto, a presença da perspectiva figural: “Antes das seis, tudo já era visível: o sol parecia 
um olho solitário e brilhante perdido na abóboda azulada; e de uma mancha escura alastrada 
diante do barco, nasceu a cidade” (HATOUM, 2017, p. 82). A seguir, destacamos outros 
trechos para mostrar o quanto a fala da personagem cumpre, nesse capítulo 4, a “superdeterminação 
funcional” de caracterização e de sustentação da narrativa: “Morei alguns anos 
no povoado, conheci os rios mais adustos e logo aprendi que o comércio, além das quatro 
operações elementares, exige malícia, destemor e descaso (senão desrespeito) a certos 
preceitos do Alcorão” (HATOUM, 2017, p. 85). O capítulo 4, o mais curto de todos, com 
sete páginas, finaliza com o personagem contando como conheceu Emilie. As quatro 
primeiras páginas do capítulo 5 trazem a continuação da fala de Dorner, interrompida no fim 
do capítulo 3: “Foi assim que teu pai resumiu sua vinda ao Brasil, numa tarde em que o 
procurei para puxar assunto. Curiosa era a maneira como se dirigia a mim: sempre olhando 
para o Livro aberto” (HATOUM, 2017, p. 87). O texto do capítulo 4 é o único que não 
apresenta marcas de interlocução, o que serve à característica do personagem, homem de 
poucas palavras, não habituado a conversas. 

Dorner conta a Hakim, no capítulo 5, sobre uma influência: 

O convívio com teu pai me instigou a ler As mil e uma noites, na tradução de 
Henning. A leitura cuidadosa e morosa desse livro tornou nossa amizade mais 
íntima; por muito tempo acreditei no que ele me contava, mas aos poucos constatei 
que havia uma certa alusão àquele livro, e que os episódios de sua vida eram 
transcrições adulteradas de algumas noites, como se a voz da narradora ecoasse na 
fala do meu amigo (HATOUM, 2017, p. 90) 

 

Trata-se da única referência feita ao clássico famoso no romance e que ainda sim é 
feita na perspectiva figural do personagem alemão diante do amigo muçulmano árabe. Essa 
fala serve à caracterização dos dois personagens: Tanto um quanto o outro eram amantes de 
literatura e cultuavam as grandes obras; há uma passagem em que Dorner diz ter trocado 
todo seu laboratório e material fotográficos por uma biblioteca com obras raras. Nesse 
sentido, a perspectiva figural presente na fala de Dorner faz uma alusão a algo muito 
importante, para o qual a nossa análise encaminha: a identificação de indícios da presença 
do autor na obra. Observamos esse trecho em que o alemão continua a caracterizar o amigo 
árabe, vejamos, inclusive a beleza e o sentido da frase que constitui o primeito período: 


Às vezes, a leitura de um livro desvela uma pessoa. Mas o curioso é que ele 
sempre deixava uma ponta de incerteza ou descrédito no que contava, sem nunca 
perder a entonação e o fervor dos que contam com convicção. Os fatos e incidentes 
ocorridos na família de Emilie e na vida da cidade também participavam das 
versões confidenciadas por teu pai aos visitantes solitários da Parisiense. O que 
me fez pensar nisso foi a coincidência entre certas passagens da vida de outras 
pessoas, que mescladas a textos orientais ele incorporava à sua própria vida. 
Era como se inventasse uma verdade duvidosa que pertencia a ele e a outros. 
Fiquei surpreso com essas coincidências, mas, afinal, o tempo acaba borrando 
as diferenças entre uma vida e um livro. (HATOUM, 2017, p. 90 grifo nosso) 

 

Assim finaliza a fala de Dorner. Ao longo da observação da fala desse personagem e 
da fala dos demais e da descrição do tipo de narradora que identificamos nesse romance, não 
não foi possível notar qualquer diferença entre o discurso da narradora e as falas das 
persoangens, a não ser pela alteração da perspectiva. A constante presença dos verbos em 
primeira pessoa e de dêiticos que situam os personagens no espaço e no tempo contribui para 
que enxerguemos semelhanças quanto à forma como a narradora se expressa, com seus 
traços diegéticos, marcas de pessoalidade, subjetividade e de instrospecção, e as persoangens 
isto é, podemos atribuir à fala das personagens os mesmos sintomas que encontramos no 
discurso da narradora; tanto ela, quanto eles, demonstram limitação do conhecimento sobre 
os fatos, o que torna mais relevante as mudanças de perspectiva narratorial e figural no texto. 
No estudo teórico de Schmid, a análise dos sintomas da linguagem presentes no discurso do 
narrador aparece no estudo da Perspectiva, em que o estudioso mostra a possibilidade de 
diferentes variantes linguísticas contribuírem para a identificação da perspectiva narratorial 
ou figural. Em Relato de um certo Oriente, examinar a perspectiva linguística não ajuda a 
perceber as diferenças entre o que é discurso do narrador e a fala da personagem, muito pelo 
contrário, esse exame nos diria que são uma coisa só. 

 Não é uma variação de nível de linguagem ou de qualquer natureza sintática que 
chama atenção no texto quando se quer examinar discurso e fala, mas uma semelhança de 
caráter estético, pois todas as falas, incluindo o discurso da narradora, são carregadas de uma 
linguagem rica em metáforas; existe uma beleza estética na fala dos personagens que 
acompanha a mesma caracterítica presente no discurso da narradora. Não é difícil 
compreender por que é muito fácil imaginar que cada personagem desses seja também 
narrador da história, pois a cada um deles é dada uma função muito semelhante à 
desempenhada pela narradora e eles, inclusive, falam como ela. A fim de enfatizar nossa 
afirmação sobre a semelhança entre o discurso da narradora e a fala das personagens, 
concluiremos nossa análise da perspectiva na narrativa, observando a fala de Hindié 
Conceição que compõe todo o capítulo 7. A narradora encontra com Hindié Conceição no 


domingo e descreve a aflição ainda presente nos olhos da mulher, quando cede a palavra a 
ela. Notemos que o início da fala da personagem não é o início de uma narrativa, de uma 
história a ser contada, mas a resposta a um apelo feito pela narradora, sua interlocutora 
naquela ocasião: 

Não apenas os amigos, também os curiosos vinham falar comigo, sabiam que eu 
era uma irmã para Emilie; alguns levaram ramalhetes de flores que exalavam o 
aroma de uma morbidez antecipada, pois no sofá da sala, Emilie ainda respirava, 
como um corpo que ainda vive, mas à sombra da morte. Sim, flores brancas e 
ramagens verdes, telefonemas e mensagens de luto, tudo isso era como levar o 
túmulo para dentro da casa. (HATOUM, 2017, p. 162 grifo nosso) 

 

A perspectiva figural, marcada pela perceção da personagem sobre os 
acontecimentos, reforça o papel da fala de Hindié para a narradora, que é o de dar conta 
daquilo que não foi vivido, experenciado por ela, que preferiu manter-se distante daqueles 
acontecimentos. Os sentimentos da mulher pelos filhos homens mais novos de Emilie fica 
exposto: 

Um outro fato também me incomodou: a presença daqueles dois desaforados, não 
falaram comigo, nem sequer tocaram no corpo de Emilie, era como se uma estátua 
estivesse ali deitada. Lembro que na adolescência faziam danações com todo 
mundo, foram expulsos de todas as escolas da cidade, e muitas vezes castigados 
pelos padres, uma punição amarga: ficar de joelho sobre um monte de milho, em 
pleno sol do meio-dia, até aparecer na noite a primeira estrela. Emilie não perdia 
a paciência, tolerava essas diabruras, ao contrário do marido dela, que certa vez 
amarrou os dois na mesa da sala, onde permaneceram sozinhos, como alimárias 
sem dono, até Emilie convencer o marido a soltá-los. (HATOUM, 2017, p. 163) 

 

A fala de Hindié também é um exemplo de “super-determinação funcional” à medida 
que adiciona mais conteúdos para a história e apenas reforça tudo aquilo que já conhecemos 
dos personagens a quem ela se refere: sabemos sobre o mal caratismo desses filhos de Emilie, 
sobre a condescendência dessa mãe para com eles e sobre a discordância do marido em 
relação ao tratamento dispensado a esses filhos. A leitura ou opinião sobre esses personagens 
não se altera conforme lemos as falas dos outros personagens, assim como, nem por um 
“descuido”, o nome do marido de Emilie é revelado. Vejamos: 

Também não atenderam ao pedido do pai, que muitos anos antes de morrer reuniu 
os homens da casa e pediu ao único filho letrado para traduzir em voz alta um 
versículoda surata das Mulheres, a fim de que todos entendessem que na palavra 
de Deus, o Misericordiosíssimo, sempre havia perdão e clemência. Admitiu que a 
filha nascera e crescera diante de um espelho mal polido, mas que uma mulher 
tentada pelo pecado pode arrepender-se meditando sozinha num quarto vedado à 
luz do sol e a todos os olhares durante cinco dias e cinco noites. Mas nem isso os 
tornou sequer tolerantes com a irmã. Na verdade, passaram a desprezar o pai por 
ter recorrido a um texto sagrado para perdoar o imperdoável (HATOUM, 2017, p. 
163-4) 

Todo o capítulo 7 é um resumo dos últimos anos e dias de Emilie: 


Mas desde o ano passado, não sei por que cargas-d’água, ela se convenceu de que 
a volta de Samara dependia unicamente dos dois filhos. Já um pouco fora de si, 
ela queria que ambos fizessem uma declaração pública em que juravam uma 
reconciliação definitiva com Samara Délia. Eu e Emílio conseguimos persuadí-la 
a deixar de lado essa ideia tantã, que era um sinal de desespero e descontrole, e 
não um ato pertinente. Mesmo assim, ela tentou tudo para persuadí-los a reatarem 
com a irmã. [...] Fizeram pouco das palavras da tua avó, e um deles cuspiu à 
queima-roupa uma frase que a deixou transtornada nestes últimos dias: “A senhora 
deu à luz a uma mulher da vida; a senhora devia se odiar, e mais que ninguém 
entender o ódio” (HATOUM, 2017, p. 173) 

Observamos que, em meio a fala de Hindié Conceição, também aparece a fala de 
Emilie representada em discurso direto: 

– O pouco que durmo é para sonhar – disse no domingo passado, enquanto 
arrumava fotografias e cartas, e remexia sem parar os objetos mofados dentro de 
um baú. Nesses últimos dias conversamos algumas vezes sentadas no pátio onde 
ela recordava o nome de uma planta e acrescentava: “Foi a Anastácia que plantou, 
e aquela trepadeira foi presente de uma empregada que fugiu de casa com medo 
dos meus meninos”. (HATOUM, 2017, p. 174) 

Notemos que em um momento a fala de Emilie é precedida pelo travessão e depois 
aparece entre aspas. Ocorre uma alternância na escolha do recurso gráfico para representar 
a fala de Emilie, semelhantemente ao que foi identificado na fala de Adamor Piedade no 
último capítulo do romance. Que instância é responsável pela representação dessas falas de 
Emilie dentro da fala de Hindié Conceição? No discurso da narradora, no capítulo 8, 
observamos a mesma alternância do uso do recurso: ora aparece o travessão, ora aparecem 
as aspas para indicar a fala do outro. Em todo caso, a narradora é a instância fictícia, criada 
pelo autor, responsável por representar a fala das personagens, mas no caso da fala de Hindié 
Conceição, a quem atribuímos o poder de representar a fala de Emilie, muito embora pareça 
ser a própria Hindié Conceição a responsável por isso? A história como é contada, a 
construção da narrativa provoca uma ilusão, isto é, acompanhamos a fala da personagem 
Hindié Conceição, acreditando que ela pode representar a fala de Emilie, quando a própria 
fala de Hindié já é uma representação. 

A linguagem e, nesse caso, o uso dos recursos gráficos apontam uma semelhança 
entre o discurso da narradora e a fala das personagens. Seguindo essa linha de raciocínio, 
apresentaremos a formulação teórica de Wolf Schmid em torno do problema do texto do 
narrador e do texto da personagem, a fim de compreendermos melhor em que medida a 
instância fictícia da narradora está presente em todos os capítulos do romance e não somente 
onde ela parece estar. 

 


4.3 Os dois componentes do texto narrativo 

 

Schmid lembra-se de Platão e do reconhecimento do filósofo de que “o texto da obra 
literária narrativa é configurado por dois componentes” (SCHMID, 2010, p. 118). Para 
Platão, a epopeia seria um “gênero misto” por conter tanto o narrar (diegesis), quanto a 
“imitação” (mimesis) das falas das personagens. Nesse sentido, Schmid parte do pressuposto 
de que: 

o texto narrativo é configurado por dois componentes: o discurso do narrador e 
as falas das personagens. Enquanto o discurso do narrador é produzido 
primeiramente no ato do narrar, as falas das personagens são fingidas como tendo 
existência antes do ato de narrar e meramente reproduzidas na realização desse 
ato. (SCHMID, 2010, p. 118) 

 Em Relato de um certo Oriente, essa configuração do texto narrativo descrita por 
Schmid, segundo Platão, coloca-se de maneira mais visível; a narradora mesma expõe a sua 
tarefa de ter de lidar com a fala das personagens que aparecem no texto. A narradora do 
texto, enquanto narra, fala das anotações que precisou fazer para “reproduzir” as falas de 
seus conhecidos, o que se assemelha à formulação teórica da condição das falas das 
personagens que aparecem no texto como se existissem antes do ato de narrar. Nesse sentido, 
essa questão puramente teórica é colocada de forma explícita, quando a narradora, em seu 
discurso, diz que não foi fácil dar conta da fala engrolada de uns, do sotaque de outros. A 
justificativa sobre a incapacidade de reproduzir as especificidades da linguagem de cada 
personagem contada por ela toca em primeiro plano nessa tarefa do narrador, que é a de 
unificar o seu discurso e a fala das personagens para configurar o texto narrativo. Sem 
dúvidas, em um segundo plano, podemos tocar na questão da competência do narrador em 
diferenciar as falas de seus personagens, mas, por ora, falemos dessa tarefa do narrador: 

No texto narrativo, o discurso do narrador e a fala das personagens são unificadas 
pelo narrador. As falas das personagens são citações no discurso do narrador que 
as seleciona. A subordinação básica da fala da personagem já foi indicada por 
Platão: na Ilíada, na reprodução do discurso dos heróis, Homero “não procura 
levar a nossa atenção para outra parte nem se esforça por parecer que não é ele, 
mas outra pessoa que está com a palavra” (República, 393ª). A autonomia da fala 
da personagem é, de acordo com Platão, ilusória; na realidade, a instância 
discursiva da personagem ainda é o poeta (que nós diríamos: o narrador). 
(SCHMID, 2010, p. 118) 

 

Se a autonomia da personagem é ilusória, conforme já discutido há tantos anos por 
Platão, não pensaremos, dentro dessa abordagem narratológica do texto, a personagem como 
ser ontológico. Sabe-se que o interesse pela personagem nos estudos narrativos, depois do 


tratamento estruturalista que a colocou à margem de seus interesses investigativos, elevoua 
a um novo lugar de importância à medida que cresceram as relações de identificação entre 
o leitor e ela. Sobre essas relações de indentificação e a forma como implicaram em uma 
abordagem ontológica da categoria, vale lembrar Carlos Reis no artigo Narratologia(s) e a 
teoria da Personagem: “Refiro-me aqui a uma espécie de disseminação da figura ficcional 
no nosso viver e no nosso agir empíricos, quando em alguém notamos propriedades 
quixotescas, edipianas, hamletianas ou bovaristas”. (REIS, 2006, p. 34). A própria 
interdisciplinaridade valorizada pelos estudos narrativos contemporâneos conferiu à 
personagem um tratamento mais aproximado da ideia de um ser, visto que a personagem 
ganhou um “vigor de transcendência que é também efeito directo do potencial semântico 
desta crucial categoria narrativa” (REIS, 2006, p. 34) 

Em Milton Hatoum, a identificação da personagem como ser pode ser enxergada nas 
leituras em que se estabelecem relações entre a vida ficcional das figuras e as teorias que 
refletem sobre a vida do homem real, suas culturas, identidades, seus movimentos 
migratórios, preconceitos e etc. Nesse sentido, ainda que cada personagem carregue em si 
esse potencial semântico, uma vez que suas experiências representam mimeticamente a 
complexidade das experiências humanas, encararemos sua existência como representações 
de um discurso sobre os homens e mulheres reais e não como homens e mulheres. É 
exatamente por isso que examinamos seus textos cientes de que toda a fala que parece ser 
autenticamente deles, nada mais é que uma artifício da própria construção do discurso do 
narrador.Dentro de nossa abordagem, então, identificamos a personagem como produto do 
discurso do narrador. Schmid coloca que “a inclusão do discurso da personagem no texto 
narrativo não significa, necessariamente, que se trata de uma reprodução autêntica” 
(SCHMID, 2010, p. 119) e que até mesmo quando o narrador é capaz de reproduzir 
autenticamente a fala do outro, sendo fiel ao seu conteúdo, aos aspectos axiológicos e 
estilísticos do discurso, até mesmo na expressão personalizada da personagem, ele empresta 
a sua narratorialidade, pois seleciona partes de um contínuo de fala e de pensamento dela. 
Schmid fala de casos em que o narrador causa realmente a impressão de uma reprodução 
autêntica, mas em Relato de um certo Oriente temos o caso oposto, pois não é difícil enxergar 
a narratorialidade presente nos capítulos da fala de Hakim, de Dorner, do muçulmano e de 
Hindié Conceição, isto é, a presença da narradora é evidente nesses capítulos. Conforme 
colocamos na seção anterior, “a super-determinação funcional” que ocorre da presença das 
extensas falas dos personagens contribui para as suas caracterizações enquanto figuras e para 


a própria representação da história, mas serve, sobretudo, à tarefa de narrar da narradora. 
Assim, podemos complementar 

 dizendo que “o narrador, por citar as palavras (ou pensamentos) da personagem, 
emprega o discurso de outrem para suas próprias finalidades narrativas. A fala da 
personagem assumiria um papel narrativo substituindo o discurso do narrador” (SCHMID, 
2010, p. 119). 

Como pensar, então, essa presença da narradora nas falas das personagens no 
romance de Milton Hatoum? Schmid observa que desde o início da narrativa moderna no 
século XVIII, o chamado discurso do narrador não corresponde ao puro e não mesclado texto 
do narrador. Por conseguinte, ao falarmos em discurso do narrador, estamos tratando de um 
discurso que contém características das falas das personagens. Schmid introduz, então, uma 
diferenciação entre os dois componentes que se misturam no discurso do narrador da prosa 
moderna: texto do narrador e texto das personagem. Ele continua: 

De modo geral, o texto da personagem “finge” como se fosse a representação 
totalmente mimética nas falas das personagens. Isto é, as regras da ficção 
determinam que o leitor compreenda que as falas das personagens são a 
reprodução autêntica do texto figural não mesclado. (SCHMID, 2010, p. 120) 

Ainda que faça parte das regras da ficção a ilusão de que as falas das personagens 
correspondem ao texto figural, o que pode se observar em Relato de um certo Oriente é que 
nas falas das personagens não é reproduzido inteiramente o texto figural. A narradora 
adiciona elementos narratoriais ao texto figural em função de sua falta de competência de 
reproduzir autenticamente a fala do outro. Vejamos um trecho em que Schmid coloca que 
essa introdução do elemento narratorial ao texto figural pode ocorrer por pura 
intencionalidade: 

Nas anotações de sua obra O Adolescente, Dostoiévski expressava, repetidamente, 
a ideia de que o jovem narrador não seria suficientemente hábil para reproduzir 
com autenticidade a concreta forma da fala de adultos em todas as suas 
características. O próprio narrador então admitia por vezes, que ele estava 
reproduzindo a fala do outro unicamente para indicar que havia compreendido o 
que fora dito e que podia se lembrar disso. (SCHMID, 2010, p. 120) 

Coincidentemente a mesma observação feita sobre o narrador de O Adolescente pode 
muito bem ser aplicada à narradora de Hatoum. A diferença entre os dois casos é que o 
narrador de O Adolescente tinha uma competência superior ao que se poderia esperar de um 
adolescente, daí a necessidade de ele justificar aquele conhecimento; já a narradora de Relato 
de um certo Oriente traz a questão da sua competência para o seu discurso, ela alerta para 
essa dificuldade de dar conta da fala do outro. Tanto no caso de Dostoiévski quanto no caso 


de Hatoum, essa falta de compatibilidade entre o que se espera do narrador e a competência 
demonstrada coloca em risco a regra da ficção, o que obriga o narrador, no primeiro caso, a 
simplesmente justificar de onde vem todo aquele conhecimento e, no segundo caso, a colocar 
explicitamente o problema em questão e dizer a solução encontrada, mesmo depois de o 
leitor já a conhecer. 

Em Relato de um certo Oriente, que é um exemplo de prosa moderna, o discurso do 
narrador é resultado de uma complexa mistura de características indicadas pelo texto do 
narrador e pelo texto das personagens. Schmid distingue o termo texto de discurso/fala: 

Para nosso uso, o termo texto será distinguido de discurso/fala quando estiver na 
esfera subjetiva da respectiva instância, sua perspectiva perceptiva, ideológica e 
linguística na sua forma pura e não mesclada. Essa forma pura e genotípica, na 
qual o texto do narrador e o texto das personagens devem ser concebidos, será, 
claramente, uma abstração da forma fenotípica na qual o discurso do narrador e a 
fala das personagens estão presentes. (SCHMID, 2010, p. 121) 

Schmid deixa evidente que o texto do narrador e o texto da personagem são apenas 
uma abstração, uma vez que essas duas formas puras não podem ser identificadas 
isoladamente no texto. O conceito de texto se estende às falas exteriores e interiores, 
pensamento, e percepção tanto do narrador quanto das personagens. Dentro de nosso estudo, 
pensar o conceito de texto contribui para o entendimento da presença do componente 
narratorial nas falas das personagens do romance de Milton Hatoum, de maneira que se pode 
enxergar a presença da narradora nos capítulos em que falam as personagens. A 
caracterização da tipologia da narradora revela sintomas no discurso da narradora, que 
podem ser encontrados nas falas das personagens. Todas as falas são carregadas de 
subjetividade, pois o conteúdo delas é repleto de experências íntimas. Nesse sentido, 
podemos falar de uma “figuralização da narração” (SCHMID, 2010, p. 120), que consiste na 
orientação da narração a partir da perspectiva das personagens. 

A figuralização da narração também é um traço característico da prosa moderna. O 
narrador observa os acontecimentos pela perspectiva figural, e o que ficam expostas são as 
percepções, ideologias e linguagem da personagem. Isso tudo ficaria mais evidente se o 
narrador de Milton Hatoum fosse não diegético, pois enxergaríamos os verbos em terceira 
pessoa, fazendo referência às ações das personagens, mas toda a narração de um determinado 
acontecimento carregaria traços de uma percepção, ideologia ou linguagem da personagem. 

Como em Relato de um certo Oriente temos uma narradora diegética e os verbos estão em 
primeira pessoa, identificamos praticamente uma repetição do seu discurso na fala das 
personagens, que, ao fazerem referência a si mesmas, também falam na primeira pessoa. 


5. NARRATOLOGIA E INTERPRETAÇÃO DA OBRA 

 

Assim, tal como em outras artes miméticas, é necessário que haja 
mimese de um único evento, como ocorre com o enredo, que é a 
mimese de uma ação, ou seja, de uma ação única e que forma um 
todo; desse modo, as partes, que constituem os acontecimentos 
ocorridos, devem ser compostas de tal modo que a reunião ou a 
exclusão de uma delas diferencie e modifique a ordem do todo. 

 

Aristóteles 

 

5.1 Interferência Textual 

 

Já é sabido que a narradora de Relato de um certo Oriente é tipologicamente 
subjetiva, uma vez que a leitura analítica mostrou esse sintoma no texto. Contudo, quando 
identificamos sua presença ainda nos capítulos em que as falas das personagens cumprem 
uma “super-determinação funcional”, percebemos a necessidade de caracterizar esse 
fenômeno como uma “interferência textual” (SCHMID, 2010, p. 137) que, de acordo com 
Schmid, é um fenômeno híbrido, no qual a mímeses e a diegese (no sentido platônico) estão 
amalgamadas como uma estrutura que une duas funções: a reprodução do texto das 
personagens (mímeses) e a real narração (diegese)” (SCHMID, 2010, p.137). Esse fenômeno 
pode acontecer de formas diferentes e se tornou comum na prosa narrativa a partir do final 
do século XVIII. Schmid exemplifica a interferência textual ocasionada pela interferência 
do texto da personagem no texto do narrador, para lançar as bases do conceito de discurso 
vivenciado23, caracterizado justamente por essa identificação da subjetividade da 
personagem no discurso do narrador em um dado segmento do texto narrativo, isto é, da 
subjetividade figural que penetra na estrutura do discurso do narrador. 

23“O discurso vivenciado é um segmento do discurso do narrador que reproduz palavras, pensamentos, 
sentimentos, percepções ou posição de sentido de uma personagem narrada, enquanto a reprodução do texto 
da personagem não é marcada, nem gramaticalmente, nem por nenhum tipo de indicador explícito.” (SCHMID, 
2010, p. 157) 

Essa presença simultânea do texto do narrador e do texto da personagem em um dado 
segmento já havia sido discutida por Mikhail Bakhtin (1934/1935; tr. 1981, 304), aponta 
Schmid. Bakhtin, ao notar essa dupla estrutura característica do fenômeno, chamou o 
fenômeno de “construção híbrida”, mas o conceito “interferência textual” foi traçado a partir 
da “interferência do discurso” discutida por Valentin Voloshinov (1929; tra. 1973, 137), 
embora, ressalta Schmid, esse termo não se refira exatamente ao mesmo conteúdo que o 
conceito em questão. 


O conceito usado por Voloshinov de “interferência do discurso” pressupõe uma 
dupla-acentuação pela “entonação” (ideológica) dos dois discursos. Ao contrário, 
a nossa interferência textual está presente mesmo quando as características de um 
segmento se referem uma vez a uma, outra vez à outra instância. Uma determinada 
diferença das posições avaliativas dos dois textos em presença não são necessárias 
para a interferência textual. A concordância ideológica total entre dois textos é 
também possível como um caso fronteiriço. Então, o conceito de interferência 
textual é usado aqui com um escopo mais amplo do que a “interferência do 
discurso” de Voloshinov, e não implica automaticamente aquelas estruturas 
agonais que Bakhtin e Voloshinov posicionam debaixo das estruturas “dialógicas” 
tais como interferência e dialogicidade. (SCHMID, 2010, p 138)24 

24 Schmid escreveu mais sobre a diferença entre o seu con 

ceito de “interferência textual” e a “interferência do discurso” de Voloshinov, e a respeito da concentração da 
estrutura de textos agonais de Bakhtin e Voloshinov (Schmid 1989). 

 

Nesse sentido, o conceito proposto por Schmid não está “amarrado” a uma necessária 
co-existência de discursos diferentes em um dado segmento do texto, pois, como veremos 
mais adiante, os indicativos presentes no texto que apontam para o texto do narrador ou para 
o texto da personagem não irão necessariamente coincidir, ou ainda, podem muito bem 
aparecer de forma neutralizada no fenômeno da interferência textual. Schmid, então, 
apresenta um catálogo de características que servem à diferenciação entre o texto do narrador 
e o texto da personagem, que são as mesmas características usadas para a identificação das 
perspectivas narratorial e figural, vejamos: 

 

Parâmetros da perspectiva 

Características para diferenciação de TN 
e TP 

Percepção 

Temática 

Ideologia 

Ideológica 

Espaço 

gramaticais 

Tempo 

gramaticais 

Linguagem 

Estilísticas 



Fonte: SCHMID, 2010, p.141 

 

Segundo as características temáticas, o texto do narrador e o texto da personagem 
podem se diferenciar conforme a seleção dos temas característicos; segundo as 
características ideológicas, podem diferenciar na avaliação das unidades temáticas 
individuais; segundo as características gramaticais de pessoa, o texto do narrador e o texto 
da personagem podem se diferenciar no uso da pessoa gramatical, pronomes e formas 
verbais. Para fazer referência às personagens do mundo narrado, o narrador não diegético 
usa pronomes e formas verbais apenas em terceira pessoa. Já no texto da personagem, as três 
pessoas gramaticais são usadas da seguinte forma: a instância falante é designada com a 


primeira pessoa, a personagem endereçada com a segunda pessoa e a personagem em 
discussão é referida com a terceira pessoa; segundo as caracteríticas gramaticais de tempo 
verbal, tanto o texto do narrador quanto o texto da personagem podem ser diferenciados no 
uso dos tempos verbais; Segundo as características gramaticais de sistema dêitico, os dois 
textos podem usar diferentes dêiticos para designar espaço e tempo; Segundo a função da 
linguagem, podem ser diferenciados pelas funções da linguagem (representativa, expressiva 
e apelativa); Segundo características estilísticas do léxico, Schmid exemplifica que os dois 
textos podem ser diferenciados pelo uso de diferentes nomes para o mesmo objeto e pelo 
repertório lexical em geral; Segundo características estilísticas de sintaxe, os dois textos 
podem ser caracterizados por padrões sintáticos distintos. 

A fim de exemplificar a presença dessas características capazes de opor texto do 
narrador e texto da personagem em um dado segmento de texto, Schmid apresentou dois 
quadros que simulam a análise de textos puros, vejamos: 

 

Texto do Narrador (TN) 

 

 1 

Tema 

 2 

Avaliação 

 3 

Pessoa 

 4 

Tempo 

 5 

Sistema 
dêitico 

 6 

Função da 
Linguagem 

 7 

Léxico 

 8 

Sintaxe 

TN 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

TP 

 

 

 

 

 

 

 

 



SCHMID, 2010, p. 143 

Texto da Personagem (TP) 

 

 1 

Tema 

 2 

Avaliação 

 3 

Pessoa 

 4 

Tempo 

 5 

Sistema 
dêitico 

 6 

Função da 
Linguagem 

 7 

Léxico 

 8 

Sintaxe 

TN 

 

 

 

 

 

 

 

 

TP 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 



SCHMID, 2010, p. 143 

Uma vez que esses dois quadros apenas ilustram a distribuição dessas características 
segundo a identificação do texto do narrador e do texto da personagem, Schmid coloca que 
esse pureza não será vista na realidade em textos literários, ocorrendo com frequência a 
neutralização de uma ou mais características. Essa neutralização será representada com a 


marcação com X na característica do texto do narrador e do texto da personagem. A 
neutralização da oposiçao entre os dois textos ocorrerá quando alguma característica não 
aparecer no segmento ou quando os dois textos coincidirem em alguma. Para dizer melhor 
ainda, “a coincidência do TN com o TP em uma característica acontece quando os dois 
textos são idênticos com respeito a uma mesma característica. Então, o uso do passado 
gramatical pelo TP pode coincidir com o pretérito épico do TN.” (SCHMID, 2010, p. 143). 
Em Relato de um certo Oriente, o texto da narradora e o texto da personagem estão separados 
pelas determinações dos capítulos, mas, conforme construímos essa tese, verificamos a 
continuidade da narradora nos capítulos referentes à fala das personagens. Por meio desse 
quadro, estabeleceremos as relações de oposição e neutralização entre os textos da narradora 
e das personagens, com a intenção de visualizar melhor o fenômeno que já vínhamos 
identificando. 

Fala de Dorner, no capítulo 3: “Mesmo de longe foi possível divisar os 
mergulhadores: duas figuras negras, como se pairassem na atmosfera embaçada pelo 
chuvisco.” (HATOUM, 2017, p. 71) 

 

 1 

Tema 

 2 

Avaliação 

 3 

Pessoa 

 4 

Tempo 

 5 

Sistema 
dêitico 

 6 

Função da 
Linguagem 

 7 

Léxico 

 8 

Sintaxe 

TN 

 

 

 X 

 X 

 

 X 

 X 

 X 

TP 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 



 

 Indicamos que o tema pertence ao texto da personagem, pois Dorner falava do dia 
em que Emir cometeu suicídio. Ele foi a única testemunha próxima da família no local do 
acontecido e descreve a cena dos mergulhadores em busca do corpo. A avaliação pertence 
ao texto da personagem também, porque, conforme visto na seção referente à perspectiva, a 
perspectiva é figural, a partir de seu conhecimento, seu ponto de vista, os acontecimentos 
são apresentados. No entanto, na característica 3 ocorre neutralização das oposições: os 
personagens falam em primeira pessoa, tal como a narradora (sem contar os trechos em que 
o personagem se dirige a um “tu” e faz referência a “eles”, como também ocorre no texto da 
narradora); O tempo também é neutralizado porque Dorner se refere a um acontecimento 
passado e os verbos encontram-se no passado, exatamente como acontece no texto da 
narradora; Quanto ao sistema dêitico, “mesmo de longe” identifica o distanciamento da 


personagem em relação ao ponto espacial a que ela se refere; a função de linguagem 
informativa também aparece neutralizada porque não diverge do texto da narradora que 
informa ao irmão tudo o que ela vê quando chega a Manaus; O léxico e a sintaxe aparecem 
também neutralizados, porque nem mesmo a nacionalidade de Dorner alterou seu léxico e 
sintaxe em comparação com o léxico e sintaxe do texto da narradora. 

Fala de Hakim, no capítulo 5: “Quando lhe comuniquei diante dos outros irmãos a 
minha decisão de ir embora daqui, ela expressou sua supresa com uma torrente verbal que 
só nós dois entendemos.” (HATOUM, 2017, p. 116). 

 

 1 

Tema 

 2 

Avaliação 

 3 

Pessoa 

 4 

Tempo 

 5 

Sistema 
dêitico 

 6 

Função da 
Linguagem 

 7 

Léxico 

 8 

Sintaxe 

TN 

 

 

 X 

 X 

 

 X 

 X 

 X 

TP 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 



 

 O tema pertence ao texto da personagem, pois Hakim fala de quando comunicou à 
mãe sobre sua partida para outro estado. A avaliação também pertence ao texto da 
personagem, pois a perspectiva é figural, ele sabe o que a mãe sentiu ao ouvir o filho. Da 
terceira característica em diante, aparecem os casos de neutralização das oposições. Em 
relação à pessoa, Hakim fala em primeira pessoa, tal como a narradora; O tempo nos textos 
da personagem e da narradora é o passado; O sistema dêitico pertence ao texto da 
personagem, pois “quando lhe comuniquei” diz respeito a uma marcação temporal que só 
existe para Hakim, muito embora o dêitico “aqui” possa sugerir tanto a localização espacial 
de Hakim quanto a da narradora, que se encontrava frente a ele; A função de linguagem 
também é neutralizada por ser referencial; o léxico e a sintaxe também são neutralizados, 
ainda que Hakim tenha um bom conhecimento da língua árabe e fale em algumas passagens 
sobre o idioma, ele não diz uma palavra sequer. 

Fala do pai de Hakim, no capítulo 4: “Não procurei saber como e quando morrera. 
Após ter vivido alguns anos naquele lugar, foi possível presumir uma causa: as febres 
proliferavam tanto quanto as facadas que rasgavam o ventre dos homens” (HATOUM, 2017, 
p. 85) 

 

 1 

 2 

 3 

 4 

 5 

 6 

 7 

 8 




1 

Tema 

2 

Avaliação 

3 

Pessoa 

4 

Tempo 

5 

Sistema 
dêitico 

6 

Função da 
Linguagem 

7 

Léxico 

8 

Sintaxe 

TN 

 

 

 X 

 X 

 

 X 

 X 

 X 

TP 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 



 O tema e a avaliação pertencem ao texto da personagem: a morte de seu tio Hanna e 
o seu raciocínio em busca da causa da morte; A personagem faz referência a si mesma na 
perimeira pessoa como a narradora, neutralizando a oposição entre os dois textos. O tempo 
também é neutralizado, pelo emprego dos verbos no passado; O sistema dêitico indica o 
texto da personagem, pois a referência de tempo e de espaço diz respeito à personagem: 
“após ter vivido anos naquele lugar”. A função de linguagem referencial também é 
neutralizada, tal como léxico e sintaxe. Não há vocabulário nem sintaxe variada para 
caracterizar o texto do pai de Hakim. 

Fala de Hindié Conceição, no capítulo 7: “Com a morte do teu avô, tentaram ir mais 
longe. Enviavam bilhetes ameaçadores, telefonavam em plena madrugada insultando-a de 
filha disso e filha daquilo, e uma vez pegaram uns moleques para apedrejar a clarabóia do 
quarto onde ela dormia sozinha.” (HATOUM, 2017, p. 164). 

 

 

 1 

Tema 

 2 

Avaliação 

 3 

Pessoa 

 4 

Tempo 

 5 

Sistema 
dêitico 

 6 

Função da 
Linguagem 

 7 

Léxico 

 8 

Sintaxe 

TN 

 

 

 X 

 X 

 

 X 

 X 

 X 

TP 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 

 X 



 

Semelhantemente ao que ocorre com os outros personagens, as características 1 e 2 
pertencem ao texto de Hindié Conceição. Ela fala das ações dos filhos de Emilie, após a 
morte do pai e emprega sua avaliação sobre o acontecimento: “tentaram ir mais longe”, 
“bilhetes ameaçadores”. Quanto à pessoa, ocorre uma neutralização, pois a personagem 
também faz referência a si mesma com uso da primeira pessoa e considera a segunda pessoa 
do discurso, tal como a narradora. O tempo é uma característica neutralizada, em função dos 
verbos no passado. O sistema dêitico também caracteriza o texto da personagem, pois “com 
a morte do teu avô” marca um tempo, seguido de acontecimentos, conhecido somente por 


ela e não pela narradora. A função de linguagem tem uma característica, nesse segmento, 
que é a expressividade, Hindié fala com emoção, mas esse traço não distingue seu texto do 
texto da narradora, que também tem emoção. O léxico e a sintaxe também não são 
características que distinguem os dois textos, ainda que Hindié seja estrangeira como Emilie. 

Schmid explica que a proliferação da interferência textual é: 

uma consequência do aumento da figuralização do narrar, isto é, o deslocamento 
da perspectiva narratorial para figural. Essa figuralização às vezes dá a impressão 
de que o narrador está abdicando de sua função narrativa em favor da personagem 
e, como se o fosse, ‘abandona o palco’. (SCHMID, 2010, p. 146) 

 

Caracterizar esses breves segmentos de texto das personagens, segundo as 
características sugeridas por Schmid, ajuda-nos a refletir sobre o grau de neutralização 
desses textos e, antes de mais nada, concluir que mesmo com a figuralização do narrar, a 
interferência textual revela a presença da narradora até mesmo na fala dos personagens. Sem 
dúvida, esse dado contribui para identificar o quanto que o texto literário em si e toda a sua 
estrutura narrativa encaminham o leitor para determinadas leituras já apontadas no discurso 
da crítica. Não vendo uma oposição entre o texto da narradora e o texto da personagem, a 
crítica questiona a narradora, agarrando-se à justificativa dada pela própria narradora: a de 
que ela não foi capaz de dar conta do sotaque e fala engrolada de cada um. E chegamos a 
uma conclusão muito semelhante, porém, não levando em consideração o discurso dela, mas 
a análise do texto. A narradora de Hatoum é como o jovem narrador de O Adolescente, 
porque precisou explicar no próprio texto a problemática competência narrativa. Conforme 
apontou Schmid em suas pesquisas, o acesso a anotações do autor, Dostoiévski, revelam a 
sua preocupação com a questão, o que, evidentemente, contribui para que Schmid não 
descarte a presença do autor no texto da obra, não como instância concreta ou fictícia, mas 
como instância abstrata que deixa suas marcas na própria criação. 

Chamar a atenção para a instância do autor em uma análise narratológica é algo que 
podemos por em destaque na teoria de Schmid, principalmente, desde que Roland Barthes 
(1968) no conhecido texto A morte do autor coloca o autor como uma espécie de invenção 
moderna e defende a supremacia da escrita, reforçando o papel do leitor nesse processo de 
mudança do olhar crítico. Certamente, ainda podemos observar as marcas dessa “morte do 
autor” quando lemos as ressalvas em trabalhos acadêmicos sobre a utilização de dados 
biográficos para tratar do texto literário de Milton Hatoum. No últimos tempos, essa 
instância vem reaparecendo nos trabalhos de crítica, se é que podemos dizer que algum dia 
despareceu. Milton Hatoum está sempre muito próximo de seus leitores e, principalmente, 


da leitura de sua obra, quando participa de eventos, bate-papos literários que acabam por 
promover a sua obra. A crítica também questiona a instância do autor, não à toa, Tolledo 
pergunta se a narradora seria então Milton Hatoum? Ele teria se escondido por trás da 
narradora? Em que lugar podemos colocar o autor Milton Hatoum dentro de nossa leitura? 

 

5.2 A presença do autor no texto 

 

Quando nos referimos à instância do autor, empregamos o conceito de autor abstrato 
de Schmid. De fato, não estamos falando do homem Milton Hatoum, o autor concreto, 
tampouco intencionamos, nesse ponto de nossa pesquisa, recorrer a dados biográficos, a fim 
de justificar qualquer acontecimento dentro da história narrada no livro. O autor deve ser 
compreendido aqui como um conjunto de marcas textuais que já não poderão ser atribuídas 
à narradora: 

Se os signos indiciais contidos em um texto narrativo podem expressar tanto autor 
quanto narrador, cada exemplo levanta a questão de para qual das duas instâncias 
os indiciais devem ser aplicados. Esse é um problema hermenêutico que pode ser 
respondido apenas com observações muito gerais. (SCHMID, 2014, p. 78) 

 

 As observações muito gerais sugeridas por Schmid serão feitas, a fim de pensarmos 
a estrutura e organização dos “relatos” elaborados pela narradora. Uma vez que observamos 
“bem de perto” a presença da narradora em todo romance e de como a perspectiva figural na 
narrativa garante a configuração das personagens, que contam acontecimentos que não 
fazem parte do domínio dessa narradora, resta-nos refletir sobre a organização textual do 
todo desse Relato de um certo Oriente. 

O fingir de uma história e de um narrador que a apresenta é questão do autor. Em 
cada um desses atos, todos os índices apontam para o autor como a última instância 
responsável por eles. A seleção de momentos dos eventos narrados, suas 
combinações em uma história, suas avaliações e nomeações são operações que 
caem na competência do narrador, que revela a si mesmo neles. (SCHMID, 2014, 
p. 78) 

 

 É esse fingir de uma história e de uma narradora que pretendemos enfatizar agora: 
os acontecimentos apresentados no romance não estão dispostos de forma ordenada 
cronologicamente, característica da prosa moderna, porém a própria narração aponta para 
uma descontinuidade. A análise do discurso da narradora mostra que a ação de narrar não 
ocorreu de uma vez só. Conforme vimos na segunda seção desse trabalho, na página 9 do 
romance, encontramos um dêitico que aponta que enquanto a narradora enunciava o discurso 
ela estava fora de Manaus. Enquanto ela fala da visita que fez à casa da mãe, enquanto 


esperava dar a hora de visitar Emilie, ela já não está em Manaus. Já nas páginas 186 e 188, 
encontramos dêiticos que revelam que ela narra estando em Manaus, o que nos leva a 
concluir que a própria narração também é retalhada. Se somarmos essas fragmentações da 
narrativa e da narração, mais as lacunas impreenchíveis da própria história, como o mistério 
em torno dos nomes das personagens, a exata origem da narradora, poderemos dizer que o 
romance de Milton Hatoum é aberto, porque abre inúmeras possibilidades de interpretação. 
A crítica, sem dúvida, percebeu isso e leu o romance apoiando-se nas principais temáticas: 
identidade, migração, memória. Sabemos que apesar do forte apelo presente na obra em 
torno desses temas, há muitos outros que podem ainda ser explorados, porque o romance 
abre espaço para isso. Ao final dessa análise, concluímos também que não se pode confiar 
nessa narradora e crer que “os relatos” são resultados puros de suas anotações e gravações, 
esses “relatos” não são transcrições. A escrita é dela não porque ela se desculpa ao dizer que 
não conseguiu reproduzir aquelas falas, mas porque a análise do texto de fato aponta isso. A 
desculpa é um acessório pensado muito provavelmente pelo próprio autor. O autor é, 
conforme diz Schmid, responsável por esse fingir da narradora, pois ele é a última instância 
após ela. 

 À narradora cabe a responsabilidade de selecionar os acontecimentos e, inclusive, 
de indicar os momentos em que as personagens irão falar. Toda a ordenação dessas falas que 
aparecem dispostas em capítulos é de responsabilidade dela. Mas ressaltamos que estamos 
falando da disposição das falas apenas e não dos capítulos propriamente ditos: acreditamos 
que a titulação de cada fala desses personagens como 3, 4, 5, 6, 7, é uma marca do autor, no 
sentido de dar acabamento à obra, de dar confirmação ao trabalho que a narradora executa, 
até porque ela não está escrevendo um livro, mas uma enorme carta ao irmão. Quanto à 
ordem das falas das personagens, até mesmo essas aparecem no texto fora de uma ordem 
cronológica: a narradora conversa com Hindié, no domingo de manhã e, com Hakim, no 
domingo à noite. A fala de Hindié é a última a ser representada. O conteúdo da fala de Hindié 
Conceição tem um caráter melancólico, tem um conteúdo de revolta, diferente do conteúdo 
da fala de Hakim, que prioriza as recordações da história daquela família, sobretudo, a 
história das divergências culturais e sociais presentes na casa onde viveu. A fala de Hakim 
tem um apelo muito forte aos temas caros à memória, que estão bem mais de acordo com os 
objetivos da narradora naquela viagem de volta ao lugar da sua infância. Para reforçar mais 
uma vez a ideia que defendemos: 

No texto figural, é principalmente o falar, o pensar ou a percepção da personagem 
que expressa a si mesmo. No entanto, existe um componente narratorial contido 


em cada manifestação do texto dos personagens. O narrador é, afinal, fingido 
como a instância que seleciona palavras, pensamentos e percepções dos 
personagens e – pelo menos no caso do discurso indireto ou indireto livre – tornaos 
mais ou menos narratoriais. (SCHMID, 2014, p. 78) 

 

Nas falas e percepções das personagens podemos enxergar as suas configurações, as 
suas “existências” no texto, porque as falas servem à expressão da própria figura, de modo 
que cada personagem, ou melhor, a fala de cada personagem cumprirá de um modo 
específico a sua “super-determinação funcional”. A fala de Hakim é a mais extensa de todas 
as personagens. Ele tem maior quantidade de texto, depois da narradora. Evidentemente que 
isso não ocorre em vão: ele é aquele que mais sabe, é o filho preferido de Emilie, o único 
que aprendeu árabe com a mãe. Nesse sentido, ao refletirmos sobre o componentente 
narratorial na fala desse personagem, especificamente, podemos dizer que o conhecimento 
que ele tem sobre a intimidade e a história dessa família, mais a sua sobriedade diante da 
morte da mãe, é o que confere a ele tanto espaço na narrativa, uma vez que a seleção da 
personagem segue as escolhas da narradora. Além disso, é por meio desse personagem que 
o marido de Emilie e Dorner são lembrados e “trazidos” ao texto de forma mais contundente, 
a expressão de suas falas e a escolha da narradora por representá-las é o que determina isso. 

 Destacados os papeis da narradora e do autor na ordenação das falas das personagens 
em capítulos, lembraremos outro aspecto que recebeu atenção da crítica: o emprego das 
aspas no início e fim de cada uma das falas: 

Todos os atos que revelam o personagem e o narrador, naturalmente também, 
funcionam, em última análise, como índices para o autor, responsável pela criação 
das duas instâncias fictícias. Mas os processos narrativos não alcançam uma 
função indicial para o autor direta e imediatamente, mas sim com certa refração 
ou deslocamento. (SCHMID, 2014, p. 78) 

 

 No caso do romance que estudamos, podemos relativizar a fala de Schmid: em 
Relato de um certo Oriente os processos narrativos alcançam diretamente uma função 
indicial para o autor. Sendo a narradora uma instância fictícia criada por ele para apresentar 
a história, a responsabilidade sobre ela, sobre a configuração dela é grande. Qualquer 
incoerência na construção dessa instância põe em risco a narrativa enquanto discurso e a 
história. Como a narradora conserva um certo anonimato e mistério, e o discurso e a história 
se encontram fragmentados, os indícios do autor aparecem no acabamento da obra. As aspas 
parece-nos os indícios desse acabamento dado pelo autor. As autoras dos trabalhos 
acadêmicos que discutiram a presença dessas aspas no texto, Maquêa (2007) e Ribeiro 
(2013), encararam a questão como um produto gerado no mundo narrado pela instância 
responsável, a narradora. As conclusões de Maquêa (2007) foram as que mais se 


aproximaram das nossas, mas é preciso estabelecer aqui as diferenças. Maquêa recorreu à 
ideia de autor enquanto figura do discurso, traçada por Foucault, afirmando que a narradora 
se desloca da figura de relatora para a de autor. Para Maquêa, esse autor representado pela 
narradora é alter-ego de Milton Hatoum. Nosso percurso de análise diferente revelou que a 
narradora não compôs capítulos e muito menos colocou entre aspas o seu próprio discurso e 
as falas das personagens. De fato, o autor, não como figura do discurso, mas como instância 
abstrata deixou marcas concretas no texto, nesse caso, totalmente intencionais. Somente o 
capítulo inicial do livro não recebe aspas e o critério claramente não foi empregar as aspas 
apenas nas falas das personagens, caso contrário, os capítulos 6 e 8 não receberiam aspas. 

 Se os capítulos 6 e 8 não estivessem entre aspas também seria fácil atribuir essa 
ação à narradora, a justificativa seria simples. Esse indício do autor revela uma preocupação 
com a forma como ele presumiu que o leitor recebesse o texto. O autor confere à narradora 
a responsabilidade da apresentação da história, logo, inicialmente, o discurso dela não 
poderia vir entre aspas. Ela prescisa convencer o leitor, ganhar sua confiança. Ao passar do 
primeiro capítulo, o leitor já entende que ela tem uma posição hieraquicamente diferente no 
texto, até mesmo aqueles que crêem na ideia de vários narradores, como foi possível ler nos 
trabalhos acadêmicos que defendem a mesma ideia. Ocorre que a quebra temporal no 
discurso da narradora e nas sequências dos acontecimentos transformam o todo do texto em 
retalhos e as aspas são a representação desses fragmentos, desses recortes. As aspas 
aparecem no texto como recurso estético, tal como a capitulação das falas das personagens. 

 Isso tudo nos diz muito sobre o leitor presumido para essa obra. O leitor vai 
seguindo as pistas fornecidas pelo autor, que ao criar a obra inscreve nela seus indícios: as 
aspas chamam logo a atenção, depois ocorre o salto de página e o salto no tempo, a presença 
do leitor fictício (o irmão da narradora) e as marcas de interlocução no texto convidam o 
leitor concreto, que sente maior proximidade com a narradora, envolvido por ela. Em 
seguida, a apresentação das longas falas das personagens quase fazem com que a narradora 
seja esquecida pelo leitor, que passa a “ouvi-las” como novas narradoras do texto, até porque 
o leitor não precisa se adaptar a um texto diferente, a linguagem é a mesma do capítulo 
inicial. Depois de muitas páginas, a narradora retorna, retomando a história interrompida 
logo nas primeiras páginas do primeiro capítulo e expõe, no fim do texto, seus problemas de 
saúde e a dificuldade que sentiu em representar todos os textos das personagens. 

 É preciso dizer que Milton Hatoum de fato ousou na técnica, para repetir a fala de 
Flora Süssekind, e conseguiu muitos admiradores. Mesmo com as dificuldades que qualquer 


ficcionista deve sentir em fazer valer as regras da ficção, o seu conhecimento técnico 
contribuiu para arrematar as possíveis dissonâncias estilísticas a favor do seu engenho e do 
seu trabalho como romancista do século XXI. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


CONSIDERAÇÕES FINAIS 

 

Cada escritor tem suas particularidades, que estão na sua vida, na 
sua linguagem, no modo de ser, do seu registro cultural. Se eu fosse 
um escritor paulistano, é provável que eu já tivesse escrito muita 
coisa sobre São Paulo. O que mais interessa é como eu transfiro, 
usando um termo freudiano, a minha experiência de vida para a 
linguagem, de vida e de literatura. Porque a leitura, a realidade 
lida, é tão importante quanto a realidade vivida para quem escreve 

Milton Hatoum 

O romance é [...] um trabalho paciente e exaustivo de engenharia, 
em que as partes vão sendo construídas lentamente. [...]a forma 
depende[da] experiência, que pode ser vivenciada, sonhada ou 
ouvida pelo escritor. Eu fiz um projeto para o romance, trabalhei 
que nem um arquiteto, pois naquela época eu ainda fazia projetos 
de arquitetura. Fiz gráficos, desenhos, esboços, mas perdi tudo 
numa das minhas mudanças ou andanças. 

Milton Hatoum 

A leitura analítica do romance Relato de um certo Oriente foi impulsionada 
sobretudo pela leitura dos textos críticos sobre a obra. Esse foi nosso ponto de partida. A 
compreensão dos problemas levantados pela crítica requeria uma teoria capaz de nomear os 
procedimentos textuais da obra literária e, nesse contexto, a narratologia aparece aqui como 
uma teoria que não só fornece nomes e conceitos adequados às questões referentes ao texto, 
como também gera condições metodológicas para um trabalho prático. Durante o processo 
de leitura do romance, conseguimos identificar os planos de comunicação na obra e suas 
instâncias concretas, fictícias e abstratas. Conseguimos acompanhar os passos dessa 
narradora do romance, que tanto cede a vez de falar a seus personagens e que tanto chama a 
atenção dos críticos. Toda a análise foi possível graças ao modelo teórico ajustado ao 
problema da pesquisa. A narratologia, no seio dos estudos literários, tem ferramentas 
fundamentais para a leitura e análise do texto; sem recorrer a modelos linguísticos, porque, 
de fato, não se trata de uma análise linguística, mas literária. Ao final da escrita, temos 
consciência do deslocamento que fizemos do nosso ponto de partida até os resultados 
obtidos. Nesse deslocamento se encontram, de forma escrita, respostas a algumas questões 
feitas sobre essa pesquisa no XVII Seminário de Pesquisa em Andamento: por que fazer um 
estudo sobre essa narradora se há outros trabalhos que se preocuparam com o mesmo 
problema? Ora, essa pesquisa preencheu uma lacuna nos estudos da obra, justamente porque 
embora a pretensão em outros trabalhos também fosse a análise da narradora, a metodologia 


e os conceitos não se ajustavam ao problema identificado. Além disso, quanto vale a 
atividade de análise em si para a formação da pesquisadora que a realiza? 

Ler textos teóricos, testar formas metodológicas diferentes de se ler um texto gera 
não só resultados de leitura sobre a obra, mas transformam o sujeito pesquisador que se 
ocupa dessa atividade fundamental para a pesquisa em Literatura e para a atividade de crítica. 
Tendo em vista o cenário literário atual, em que o nome do escritor Milton Hatoum foi posto 
em um lugar de prestígio, não podíamos deixar de considerar o quanto o seu engajamento e 
forte aproximação do público leitor não poderiam criar condições para certas inclinações 
sobre a sua obra. O interesse pela vida de qualquer escritor cuja obra alcança o grande 
público não é novidade nem negativo, mas essa característica se mostra acentuada quando 
lemos os trabalhos escritos sobre o autor de Relato de certo Oriente. A sua infância, sua 
relação com a cultura árabe e o seu engajamento político e literário estão sempre associados 
às leituras de seus textos. Não à toa, a coletânea Arquitetura da Memória: ensaios sobre os 
romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum 
reúne os textos de críticos mais as entrevistas feitas com o autor, trazendo por vezes 
perguntas sobre a relação entre a vida e a obra do escritor, entre os personagens e seus 
familiares. Nessas ocasiões, o homem Milton Hatoum parece chamar tanta atenção quanto a 
sua obra. 

Uma das preocupações metodológicas no desenvolvimento dessa pesquisa foi não 
recorrer a saídas biográficas, ainda que a instância autor tenha sido descrita no plano de 
comunicação da obra. Inclusive, a reflexão sobre a presença do autor na obra, através das 
marcas textuais, serviu para encontrarmos o lugar do autor no plano do desenvolvimento do 
texto, isto é, mesmo que, no processo de criação da obra, não seja, de modo geral, intencional 
o aparecimento de determinadas marcas do autor no texto, ele se faz presente. No caso do 
romance estudado, a presença de marcas que não puderam ser atribuídas à narradora foi 
atribuída ao autor abstrato, que deixou indícios de sua presença, na busca pela configuração 
de um leitor abstrato que lesse a obra de forma presumida por ele. Nesse sentido, a própria 
teoria ilustrou o quanto a configuração do autor abstrato interfere na configuração do leitor 
abstrato. Com isso, conseguimos abordar a organização das falas das personagens em 
capítulos e a presença/ausência das aspas nos textos, graças à compreensão dessas instâncias 
no plano de comunicação da obra. 

Quando iniciamos a pesquisa, estávamos cientes de que alcançar os resultados de 
uma análise não corresponde ao mesmo que alcançar os resultados de uma interpretação. A 


interpretação extrapola os limites o texto, representa um “salto” das letras, daquilo que está 
escrito. A instância autor, dentro da teoria de Schmid, dá a possibilidade de interpretar a 
obra, mas, sem dúvidas, os ganhos em relação aos resultados de análise são maiores. Nesse 
sentido, a realização desse trabalho representou um verdadeiro exercício de prática de estudo 
do texto literário. O trabalho teórico de W. Schmid nos permitiu descrever, caracterizar todas 
as instâncias presentes na obra e, principalmente, organizar as informações sobre a narradora 
dentro do quadro da tipologia do narrador: identificamos uma única narradora diegética, 
primária, bem marcada, pessoal, espacialmente fixa, subjetiva, de conhecimento limitado. A 
narradora do romance tem um leitor fictício bem marcado no texto, que serve a ela como 
uma orientação para as suas estratégias narrativas. Ela narra para ele tudo aquilo que ele há 
tempos não vê, por se encontrar fora do país, mas, sem dúvida, como a leitura revelou, o 
evento dessa narrativa é a morte de Emilie, a matriarca da família. A comunicação dessa 
morte ao irmão é também o que constitui a narratibilidade da obra. A narrativa tem sua razão 
fundada nesse acontecimento, que gera e motiva o esforço da narradora em organizar todo o 
relato para o irmão distante. 

O entendimento da morte de Emilie como evento responde a todos os critérios 
estabelecidos por W. Schmid em seu estudo teórico: um acontecimento inesperado pela 
narradora e pelos personagens, de grau irreversível e que modifica as atitudes de todos os 
personagens dentro da história. O que era para ser uma simples viagem de retorno à cidade 
natal e de reencontro com a avó, acaba se tornando um momento doloroso de perda e de 
reencontros inesperados. Da mesma forma, os demais personagens não esperavam se reunir 
naquele espaço. Todo esse conjunto de dados confirma o evento. A morte de Emilie faz 
emergir outras mortes, que marcaram aquela família: a de Emir por suicídio e a de Soraya 
Ângela por acidente. A morte, assim, torna-se uma razão para voltar ao passado, ano de 
1954, ano da morte da criança, filha de Samara Délia. O tema da morte, uma grande questão 
e mistério da humanidade, aparece no romance como pano de fundo e responde à questão 
que se pode fazer a qualquer narrativa: para quê narrar isso tudo? Por que vale à pena contar 
essa história? A memória não é o assunto principal do romance, mas a morte. A memória é 
uma das formas encontradas pela narradora para lidar com a morte. 

Vale lembrar que a elaboração da tese ocorreu paralelamente ao estudo e tradução do 
livro de Wolf Schmid, o que contribuiu muito no estudo dos fenômenos da perspectiva e da 
interferência textual, dois temas complexos, mas bastante interessantes porque a 
metodologia empregada torna a leitura produtiva. O nosso close reading do texto nos 


permitiu confirmar a existência de uma única narradora que, com a perspectiva figural, 
apresenta as personagens por meio de suas falas e experiências particulares. Ao mesmo 
tempo em que as personagens falam, a narração não fica parada, porque as falas têm uma 
“super-determinação funcional”, isto é, servem à caracterização das personagens, mas 
sustentam a narração do mesmo jeito. Sobre a notória semelhança entre o discurso da 
narradora e as falas das personagens, esclarecemos a noção de texto da narradora e texto da 
personagem, os quais tratam de um conteúdo puro e específico de cada uma dessas 
instâncias. A interferência de um texto no outro, a interferência textual, pode ser melhor 
visualizada num dado segmento de texto narrativo, com a identificação das características 
sugeridas por Schmid, que apontam para o texto da narradora ou para texto da personagem. 

Em Relato de um certo Oriente, identificamos a neutralização das oposições entre 
texto da narradora e texto da personagem nas características pessoa, tempo, léxico e sintaxe. 
A neutralização dessas características implica dizer que elas são idênticas tanto em um texto 
quanto em outro. Léxico e sintaxe são características que, quando neutralizadas na 
interferência textual, causam maior impacto quanto a não oposição entre os dois textos. O 
resultado é que praticamente não se identifica diferença entre o discurso da narradora e a 
fala das personagens, porém ambos coexistem no mesmo segmento de texto narrativo. Esses 
procedimentos de análise nos ampararam diante desses hibridismos presentes no texto, uma 
vez que identificamos a permanência do componente narratorial mesmo na fala das 
personagens. As falas das personagens não são apenas representação do discurso direto já 
que é possível identificar traços do discurso da narradora nessas falas, isto é, as interferências 
textuais são um fenômeno muito presente no texto de Milton Hatoum, mas isso não impede 
que as duas instâncias narradora e personagens sejam também percebidas em suas relativas 
individualidades. 

 

 

 

 

 

 

 


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