UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARà INSTITUTO DE LETRAS E COMUNICAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS FLÃVIA ROBERTA MENEZES DE SOUZA A NARRADORA E AS PERSPECTIVAS DO NARRAR EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM BELÉM 2021 FLÃVIA ROBERTA MENEZES DE SOUZA A NARRADORA E AS PERSPECTIVAS DO NARRAR EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará, para obtenção do tÃtulo de Doutora em Letras (Ãrea de Concentração: Estudos Literários) Orientador: Professor Dr. Gunter Karl Pressler BELÉM 2021 FLÃVIA ROBERTA MENEZES DE SOUZA A NARRADORA E AS PERSPECTIVAS DO NARRAR EM RELATO DE UM CERTO ORIENTE, DE MILTON HATOUM Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará para obtenção do tÃtulo de Doutora em Letras (Ãrea de Concentração: Estudo Literários) BANCA EXAMINADORA ___________________________________________ Prof. Dr. Gunter Karl Pressler (UFPA) (Orientador e Presidente da Banca) __________________________________________ Prof. Drª. Maria Flora Süssekind (UNIRIO) (Avaliadora Externa) _________________________________________ Prof. Drª Sylvia Maria Trusen (UFPA – Campus Castanhal) (Avaliadora Externa) _________________________________________ Prof. Dr. Otávio Guimarães Tavares (UFPA) (Avaliador Interno) __________________________________________ Prof. Drª. Maria de Fátima do Nascimento (UFPA) (Avaliadora Interna) _________________________________________ Prof. Dr. Luis Heleno Montoril del Castillo (UFPA) (Suplente Interno) ________________________________________ Prof. Dr. Juri Leander Jakob (Universidade de Colônia) (Suplente Externo) Para Gunter Karl Pressler & Vovó Deusa, que virou estrelinha há tão pouco tempo. AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu professor, orientador e incentivador, Gunter Karl Pressler, por ter feito parte de toda a minha trajetória acadêmica. Com ele aprendi a ler melhor; Aos professores e pesquisadores que aceitaram ler esse trabalho e compor a banca de avaliação dessa tese. É uma honra contar com a presença de cada um. Ao Instituto Federal do Pará, em especial aos colegas do Colegiado de Letras, que me apoiaram durante o afastamento de minhas atividades docentes, em especial, à amiga professora Camila Prado; Ao grupo de pesquisa ANA – AMAZONIA NARRATOLOGIA ANTROPOSCENE – pelos momentos de estudo e reflexão em conjunto e, principalmente, por terem cedido as valiosas traduções utilizadas nesse trabalho de pesquisa; Aos professores do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPA, pelas aulas, pelos textos e pelas contribuições que me ajudaram a pensar e a repensar o meu objeto de pesquisa. À banca de Qualificação desta tese, professor Juri Jacob e professora Maria de Fátima, que leu o trabalho com cuidado e indicou textos importantÃssimos para o andamento de minhas análises. Às grandes mulheres da minha vida: Deusa e Célia. Há muito das duas em cada pensamento meu e em cada linha que escrevi neste trabalho. Às minhas irmãs Fernanda, Vitória e à prima-irmã Lais, razões eternas de amor, companheirismo e riso Ao Bruno Roberto, meu irmão, e à grande amiga Natália Ribeiro pelo apoio e ajuda técnica. As condições de possibilidade do conhecimento. Kant RESUMO Trata-se de uma análise narratológica do primeiro romance publicado pelo escritor Milton Hatoum, Relato de um certo Oriente (1989). O segundo romance mais estudado do autor já conta com uma vasta recepção, mas a presença de certas lacunas e de leituras repetidas no discurso da crÃtica apontaram para a necessidade da realização de uma análise minuciosa de todo o texto literário. Paralelamente a essa observação, as atividades de tradução do Grupo de Pesquisa ANA - Amazônia Narratologia Antroposcene – do qual a autora deste estudo é membro, contribuÃram para a identificação da base teórica e metodológica que serviria ao presente estudo. Durante a tradução do livro Narratology: an introduction (2010) e Elemente der Narratologie (2014) (versão revisada e atualizada do alemão) de Wolf Schmid, os conceitos-chave da Narratologia foram estudados e acolhidos na análise do texto literário. A presente tese de doutorado procurou responder a questões que permaneciam em aberto sobre o romance do ponto de vista narratológico: partindo de uma análise do texto, como a narradora do romance organizou “os relatos†das personagens? Que tipo de narrador podemos identificar no romance? De que maneira os resultados de uma análise narratológica podem servir a uma interpretação da obra? A análise narratológica permitiu uma observação mais apurada dos fenômenos presentes no texto e mostrou, por meio de procedimentos analÃticos, o quão produtivo pode ser o estudo do texto quando lido a partir de uma teoria cujo objetivo é apresentar um modelo de análise. PALAVRAS-CHAVE: Milton Hatoum; Relato de um certo Oriente; CrÃtica literária; Narratologia; Wolf Schmid; Narradora; Perspectiva. ABSTRACT It is about a narratological analysis of the first novel published by Milton Hatoum, Tale of a certain Orient (1989). The second most studied novel by the author has a wide reception already, but the presence of certain gaps and repeated readings in the critic’s speech point to the need of a detailed analysis on the literary text as a whole. Furthermore, the translation activities of the Research Group ANA – Amazonia Antropocene Narratology – from which the author of this study is a member, contributed to the identification of theoretical and methodological bases which would be useful to this study. While translating the book Narratology: an introduction (2010) and Elemente der Narratologie (2014) (revised and updated German version) by Wolf Schmid, the key concepts of Narratology were studied and accepted in the analysis of the literary text. The present doctoral thesis sought to answer questions that remained unanswered about the novel from the narratological point of view: based on one analysis of the text, how did the narrator organize “the stories'' of the characters? What kind of narrator can we identify in the novel? How may the results of a narratological analysis be useful to an interpretation of the work? The narratological analysis provided a more refined observation on the phenomena present in the text and revealed, through analytical procedures, how productive the study of this text can be when its reading is based on one theory which its goal is to present a model of analysis. KEYWORDS: Milton Hatoum; Tale of a certain Orient; Literary criticism; Narratology; Wolf Schmid; Narrator; Perspective. RESUMEN Es un análisis narratológico de la primera novela publicada por el escritor Milton Hatoum, Relato de cierto Oriente (1989). La segunda novela más estudiada del autor ya tiene una amplia acogida, pero la presencia de ciertas lagunas y lecturas repetidas en el discurso de la crÃtica apuntaban a la necesidad de realizar un análisis exhaustivo de todo el texto literario. Paralelamente a esta observación, las actividades de traducción del Grupo de Investigación ANA - Amazonia Narratologia Antroposceno, del que es miembro el autor de este estudio, contribuyó a la identificación de las bases teóricas y metodológicas que servirÃan para el presente estudio. Durante traducción del libro Narratology: an introduction (2010) y Elemente der Narratologie (2014) (versión revisada y actualizada del alemán) por Wolf Schmid, los conceptos clave de La narratologÃa fue estudiada y aceptada en el análisis del texto literario. La presente tesis de programa de doctorado buscó responder preguntas que permanecÃan abiertas sobre la novela desde el punto de vista narratológico: partiendo de un análisis del texto, ¿cómo la narradora de la novela organizó “las historias" de los personajes? ¿Qué clase de narrador podemos identificar en la novela? Cómo los resultados de un análisis narratológica pueden servir a una interpretación de la obra? Análisis narratológico permitió una observación más precisa de los fenómenos presentes en el texto y mostró, a través de procedimientos analÃticos, qué tan productivo puede ser el estudio del texto cuando se lee de una teorÃa cuyo objetivo es presentar un modelo de análisis. PALABRAS-CLAVE: Milton Hatoum; Relato de cierto Oriente; CrÃtica literaria; NarratologÃa; Wolf Schmid; Narrador; Perspectiva. SUMÃRIO INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11 2. PRINCÃPIOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS .................................................. 17 2.1 O EXAME DOS TEXTOS DA CRÃTICA .............................................................................. 17 2.2 A NARRATOLOGIA COMO PROPOSTA TEÓRICA PARA ESTE ESTUDO .............................. 36 2.3 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES: NARRATIVIDADE, EVENTUALIDADE, FICCIONALIDADE . 45 3. AS INSTÂNCIAS DA OBRA NARRATIVA .............................................................. 52 3.1 OS NÃVEIS DE COMUNICAÇÃO NO ROMANCE ............................................................... 52 3.2 AUTOR E LEITOR ABSTRATOS ...................................................................................... 55 3.3 O NARRADOR FICTÃCIO............................................................................................61 3.4 LEITOR FICTÃCIO OU DESTINATÃRIO ............................................................................ 76 4.PERSPECTIVA DO NARRAR......................................................................................78 4.1 OS ACONTECIMENTOS COMO OBJETO DA PERSPECTIVA ............................................... 78 4.2 PERSPECTIVAS NARRATORIAL E FIGURAL NO ROMANCE .............................................. 83 4.3 OS DOIS COMPONENTES DO TEXTO NARRATIVO ........................................................... 95 5. NARRATOLOGIA E INTERPRETAÇÃO DA OBRA ............................................ 99 5.1 INTERFERÊNCIA TEXTUAL ........................................................................................... 99 5.2 A PRESENÇA DO AUTOR NO TEXTO ............................................................................ 106 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 111 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÃFICAS .......................................................................... 115 INTRODUÇÃO Da arte poética, dela mesma e de suas espécies, da função que cada espécie tem, do modo como se devem compor os enredos – se a composição poética se destina à excelência – e ainda de quantas e de quais são suas partes, assim como de todas as outras questões que resultam do mesmo método, eis sobre o que falaremos, começando, como é natural, pelos princÃpios básicos. Aristóteles Milton Hatoum representa um dos casos felizes de escritores que alcançaram sucesso e grande repercussão logo na publicação do primeiro livro. O escritor, nascido em Manaus, estreou no cenário da Literatura Brasileira com o romance Relato de um certo Oriente, em 1989, com trinta e sete anos de idade. Curiosamente, o escritor tem formação acadêmica em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Saiu de Manaus aos quinze anos de idade e mudou-se para BrasÃlia, onde concluiu os estudos no Colégio de Aplicação da UNB. Já na década de setenta, passou a viver em São Paulo, onde se graduou e teve suas primeiras experiências profissionais: chegou a dar aula na faculdade de Arquitetura em Taubaté logo que se formou. Em 1979, graças a uma bolsa concedida por uma instituição ibero-americana, Milton Hatoum vai para Madri, Barcelona, leciona português e até traduz Jorge Amado para o espanhol. Na década de oitenta, conseguiu uma bolsa para estudar Literatura Comparada na Sorbonne em Paris. Em 1984, retorna a Manaus, como professor de LÃngua e Literatura Francesa na Universidade Federal do Amazonas e, na década de noventa, vive a experiência de professor visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e de escritor residente na Universidade Yale, Stanford e Berkeley. Em 1999, ele retorna ao Brasil e se estabelece em São Paulo, onde vive até os dias de hoje, trabalhando em seus projetos literários e como colunista do jornal O Estado de S.Paulo. Onze anos depois de publicar Relato de um certo Oriente, Milton Hatoum publicou os romances Dois irmãos (2000) e Cinzas do Norte (2005). Três anos mais tarde, o escritor lança a sua primeira novela Órfãos do Eldorado (2008) e, em seguida, a coletânea de contos A Cidade Ilhada (2009). Diversificando ainda mais a produção dos gêneros em prosa, lança o livro de crônicas Um Solitário à Espreita (2013), e retorna ao gênero romance com A Noite da Espera (2017) e Pontos de Fuga (2019) – tÃtulos que integram o mais novo projeto de Milton Hatoum: a trilogia O Lugar mais Sombrio. O terceiro volume ainda não tem data para lançamento. Todo o conjunto da obra foi publicado pela Companhia das Letras, considerada uma das maiores editoras brasileiras. A produção literária do escritor não passou despercebida aos olhos da crÃtica, o que garantiu a Milton Hatoum o prêmio Jabuti de melhor romance, já com a publicação de Relato de um certo Oriente. O romance Dois irmãos foi traduzido para doze idiomas e adaptado para a televisão (minissérie), teatro e quadrinhos. Por Cinzas do Norte, Milton Hatoum recebe outra vez o prêmio Jabuti e mais ainda os prêmios, o de Livro do Ano, Bravo!, APCA e Portugal Telecom. A novela Órfãos do Eldorado também saiu das páginas do livro e virou adaptação de cinema. Ao todo, é sabido que sua obra foi traduzida para doze idiomas e publicada em catorze paÃses. Como escritor em atividade e com um romance ainda por lançar, a fortuna crÃtica da obra de Milton Hatoum se encontra em construção. As primeiras teses de doutorado e dissertações de mestrado começaram a ser produzidas nos anos 2000, após o lançamento do segundo romance do autor. Mas antes dessas produções de maior consistência acadêmica, o nome do escritor já aparecia em artigos de crÃtica em jornais e em eventos de literatura, o que confirma um fato: o autor, desde a primeira publicação, encontrou leitores entusiasmados pelo seu texto. A presente tese de doutorado é também resultado de um interesse despertado não só pela leitura do romance, mas pelo que é dito sobre o romance em eventos literários e, sobretudo, em trabalhos acadêmicos. Participativo, solÃcito e engajado, Milton Hatoum é sempre convidado para os eventos que tratam de sua obra e, de certa forma, a palavra do autor ali presente contribui bastante para que a crÃtica especule sobre uma série de dados para a interpretação dos textos. Evidentemente que essas especulações se justificam pela grande semelhança que há entre a vida e a obra do autor. Há muitas referências no texto que apontam para aspectos biográficos de Milton Hatoum. Sobre isso não há o que questionar, mas até que ponto a fala do autor em eventos que tratam de sua própria obra não podem direcionar a crÃtica para um certo viés?1 1 Enquanto escrevemos isso, pensamos em articulações como as de Stefania Chiarelli (2017), que é uma das referências mais citadas em trabalhos sobre a obra de Milton Hatoum. No artigo Sherazade no Amazonas – a pulsão de narrar em Relato de um certo Oriente, a autora cita um trecho de uma entrevista em que Milton Hatoum fala de sua descendência árabe e do hibridismo cultural no qual cresceu e ela relaciona esse aspecto biográfico “ao modo oriental de narrar†presente em Relato de um certo Oriente. Leituras como essa se propagam artigos após artigo, tornando-se verdades estabelecidas. Em certo ponto do texto ela afirma que o próprio autor, Milton Hatoum, declarou que “Relato de um certo Oriente é história ‘narrada por uma Sherazade do Amazonas’â€. (CHIARELLI, 2017, p. 39) Não pensamos no que o autor diz, mas em como suas falas são utilizadas para fazer certas afirmações com finalidade de interpretar a obra. A leitura, que é também um ato subjetivo, em alguns casos, afetivo, pode simplesmente confirmar aquilo que é obvio no texto ou propor leituras pautadas na análise do que está escrito, levando-se em consideração o mundo representado. Pensamos que essa é uma decisão que deve estar presente na leitura de cada crÃtico. Em outras palavras, pode-se apresentar uma leitura baseada em um tema presente na obra do escritor e justificar a presença desse tema com aspectos biográficos ou se pode apresentar uma análise do texto, a fim de apontar quais dados do texto revelam a um caminho mais próximo da objetividade, da cientificidade que deve haver no tratamento do texto literário. Sem isso, correremos sempre o risco de repetir sucessivas vezes frases prontas e rotularemos os textos que lemos, sem ao menos saber por qual razão dizemos isso ou aquilo. Acreditamos na necessidade de uma metodologia, de um processo para se alcançar um resultado e isso só pode acontecer a partir de uma teoria. A teoria dá suporte ao pesquisador, ao crÃtico, para tratar o texto. Nesse trabalho, nossa teoria de apoio é a Narratologia, campo de estudo que surge, na década de sessenta, no contexto do Estruturalismo francês. A Narratologia é a base teórica das atividades desenvolvidas pelo grupo de pesquisa ANA2 – Amazonia Narratologia Anthropocene – que atualmente se ocupa da tradução do livro Narratology: an introduction, tÃtulo em inglês, e Elemente der Narratologie, tÃtulo em alemão de Wolf Schmid. O trabalho de Schmid apresenta os mais de cinquenta anos de debate em torno da teoria, tendo como grandes interlocutores os textos de Gérard Genette e Tzvetan Todorov, além de outros estudiosos eslavos que não se tornaram populares entre os brasileiros, em função da falta de tradução e de diálogo com esses trabalhos. Não se trata apenas de uma revisão de tudo o que já foi produzido, o que já seria um grande feito, mas de um trabalho de problematização de conceitos, seguidos de propostas mais bem ajustáveis a exemplos reais extraÃdos de textos literários. Tais atividades de tradução e de estudo do texto de Schmid subsidiaram toda essa tese sobre o romance de Milton Hatoum. Todas as citações do texto de Schmid são tomadas desse trabalho3 de tradução feito em grupo, ao qual reiteramos nossa gratidão. Sobre essas citações, precisamos esclarecer: o trabalho de tradução para o português se realiza tanto pela edição em inglês, de 2010, quanto pela edição em alemão, de 2014, uma vez que a segunda é a mais atualizada. Nesta tese, as referências feitas ao texto de Schmid tomarão como base principal o texto em inglês de 2010, só recorrendo ao texto em alemão quando os trechos não existirem na edição em inglês. 2 O grupo, que é coordenado por Gunter Karl Pressler, foi criado e registrado no CNPq em outubro de 2016 e é formado pela autora desta tese, por Natália Ribeiro, LucÃlia Pinheiro, PatrÃcia da Cruz, José Francisco Queiroz, Rosanne de Castelo Branco, Aline da Silva, ThaÃs Amorim e conta com a colaboração estrangeira de Christiane Hauschild. 3 Infelizmente, a publicação da tradução não saiu antes do fim dessa tese e, por essa razão, as citações em português farão referência aos anos e páginas das edições em inglês e em alemão. Feito esse esclarecimento, introduziremos essa tese confirmando nosso objetivo de apresentar uma análise narratológica do romance de Milton Hatoum. Em vÃdeo conferência com o professor Wolf Schmid, realizada na ocasião do Seminário do grupo de pesquisa, em dezembro de 2020, indagamos sobre a inexistência de um estudo que tenha se utilizado unicamente da narratologia para o estudo de uma obra especÃfica. Os estudiosos que se preocuparam em desenvolver essa teoria, utilizam-se de várias obras, vários trechos e, quando se pensa na exequibilidade dessa abordagem teórica, com objetivo de interpretar o texto, imediatamente vem uma questão: aonde chegaremos com o apoio da narratologia em relação à interpretação da obra? O próprio trabalho de Schmid é construÃdo em cima de uma série de exemplos de contos e romances russos, dentre eles, trechos de textos de Pushkin, Dostoievsky, Chekhov, Tolstói, Andrej Bitov, Tomachevski, e não se dedica ao estudo de uma obra especÃfica. O estudioso respondeu que ele era um narratólogo e que estava interessado na análise, nos resultados da análise. Entendemos, então, que esse método de estudo do texto, de fato, tenha se identificado mesmo com a sua qualidade teórica e conceitual. O próprio Tzvetan Todorov, no tão conhecido texto Análise estrutural da narrativa, deixa muito claro que o objetivo de sua proposta de análise não visa ao conhecimento de uma obra especÃfica, em função do caráter do estudo não ser descritivo, mas teórico. Ele explica que “A obra será sempre considerada como a manifestação de uma estrutura abstrata, da qual ela é apenas uma das realizações possÃveis; o conhecimento dessa estrutura será o verdadeiro objetivo da análise estrutural†(TODOROV, 2006, p. 79). O objetivo de alcançar a literatura virtual por meio da análise estrutural difere do desejo de entender a literatura real, muito embora Todorov frise que para se chegar ao conhecimento dessa literatura virtual seja necessário o conhecimento empÃrico preciso, isto é, o conhecimento da obra concreta. Lembrando as duas possibilidades de abordagem, interna e externa da literatura, inscritas na Teoria da Literatura de Warren e Wellek, Todorov afirma que a análise estrutural seria considerada uma abordagem interna, mas adverte que, em função do seu caráter essencialmente teórico e não descritivo, ela se encaixaria entre as abordagens externas. Ele coloca: Por exemplo, quando os marxistas e os psicanalistas tratam de uma obra literária, não estão interessados no conhecimento dessa obra ela mesma, mas no conhecimento de uma estrutura abstrata, social ou psÃquica, que se manifesta através dessa obra. Essa atitude é pois, ao mesmo tempo, teórica e externa. Por outro lado, um New Critic (imaginário), cuja abordagem é visivelmente interna, não terá outro objetivo senão o conhecimento da obra ela mesma; o resultado de seu trabalho será uma paráfrase da obra, que pretende revelar seu sentido melhor do que a obra ela mesma. (TODOROV, 2006, p. 79) Todorov conclui que a análise estrutural não cabe nem nos exemplos de abordagem externa, nem nos exemplos de abordagem interna: A análise estrutural é diferente de cada uma dessas duas atitudes. Não se satisfaz com uma pura descrição da obra, nem com sua interpretação em termos psicológicos ou sociológicos, ou mesmo filosóficos. Em outros termos, a análise estrutural da literatura coincide (em grandes linhas) com a teoria da literatura, com a poética. Seu objeto é o discurso literário mais do que as obras literárias (TODOROV, 2006, p. 79) Citamos essa passagem do texto de Todorov, porque, no inÃcio desta tese escolhemos adotar uma dessas posições sugeridas por Warren e Wellek com o objetivo de especificar a diferença entre a nossa proposta de estudo do romance de Milton Hatoum e as outras já existentes. A identificação de uma lacuna na fortuna crÃtica da obra movimentou nosso interesse por um estudo do texto, da estrutura narrativa. Sabemos, entretanto, que, ao fazermos uso da Narratologia para compreender certos aspectos da obra, não estamos realizando uma análise estrutural no sentido proposto por Todorov, uma vez que não é nosso objetivo extrair do romance um modelo ou um conjunto de propriedades, a fim de identificar esse modelo ou conjunto de propriedades em outras obras. Em um ponto, o objetivo de nossos estudos está de acordo com os objetivos da análise estrutural de Todorov, pois também consideramos que “a literatura deve ser compreendida na sua especificidade, enquanto literatura, antes de se procurar estabelecer sua relação com algo diferente dela mesma†(TODOROV, 2006, p. 80). Nesse sentido, organizamos esta tese da seguinte maneira: na primeira seção, intitulada PrincÃpios teórico e metodológico, apontamos os textos de crÃtica e trabalhos acadêmicos com que dialogamos ao longo da tese, evidenciando as lacunas e questões levantadas por esses textos e que justificam a nossa entrada no debate crÃtico em torno do romance Relato de um certo Oriente. Nessa seção também apresentamos a teoria que ampara nossa leitura do romance e introduzimos os conceitos que fundamentam o tratamento do texto narrativo por Wolf Schmid, expondo com brevidade o histórico do desenvolvimento da Narratologia e sua atual situação no contexto acadêmico brasileiro. Na segunda seção, intitulada Instâncias da obra narrativa, trabalhando com a linguagem e com os conceitos de Wolf Schmid, apresentamos as instâncias abstratas, fictÃcias e concretas presentes na obra, como parte de um modelo de comunicação entre elas. Dentre tais instâncias, destacamos o narrador fictÃcio, que foi lido a partir de todo trajeto feito pela narradora do romance, do seu planejamento de viajar a Manaus até a viagem em si, momento em que ocorrem os “eventos†que, por assim dizer, justificam todo o trabalho de narração da narradora. Nesse ponto do estudo, apresentamos o discurso da narradora nos capÃtulos 1, 6 e 8 e identificamos por meio de ocorrências verbais a posição da narração em relação aos acontecimentos narrados. A presença do diálogo, da interação com outros personagens e de suas falas em capÃtulos inteiros do romance, encaminhou nossa análise para o conceito de perspectiva. Na terceira seção dessa tese, apresentamos as questões contempladas pelo conceito de perspectiva de acordo com Schmid. Apresentamos, a partir da análise do capÃtulo referente à fala de Hakim, a presença da perspectiva figural, seguindo os parâmetros de identificação do estudioso teórico. Do mesmo modo, indicamos a presença da perspectiva figural na fala de outras personagens como Dorner, pai de Hakim e Hindié Conceição, o que nos levou a discutir os dois componentes do texto narrativo: a presença do “texto da narradora†e do “texto da personagemâ€. Na quarta seção dessa tese, ainda dentro da questão do “texto da narradora†e “do texto da personagemâ€, mostramos como ocorrem as “interferências textuais†no romance de maneira que o discurso dessa narradora se assemelhe em alguma medida à fala das personagens. Schmid destaca a “contaminação dos textos†como um fenômeno corrente quando justamente se identifica a presença das marcas do discurso do narrador nas falas das personagens e vice versa. Tais descrições visam descrever melhor o que ocorre nos capÃtulos 2, 3, 4, 5 e 7 do romance, em que a narradora parece “sair de cenaâ€. Ainda nessa seção, concluÃmos essa tese, para fins pragmáticos apenas, discutindo a sombra do autor sobre a narradora do romance e em que medida determinados aspectos do texto, como a divisão dos capÃtulos e a presença das aspas nesse romance são indÃcios da presença do autor ou da narradora fictÃcia. 2. PRINCÃPIOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS “Metáfora†é a designação de uma coisa mediante um nome que designa outra coisa, que se dá ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie para a espécie, ou segundo uma relação de analogia. Aristóteles 2.1 O exame dos textos da crÃtica A conhecida discussão que envolve a divisão das correntes de investigação literária entre estudos extrÃnsecos e intrÃnsecos é lembrada nesse primeiro momento de nosso estudo. Os estudos que buscam compreender, pelo texto literário, a biografia de seu autor, o perfil psicológico do escritor ou do seu processo de criação, a sociedade, e até mesmo ideias filosóficas compõem o conjunto de estudos extrÃnsecos da Literatura. Esses estudos entendem a obra como causa de fatores externos a ela, entendem que a obra literária é produto de fenômenos que ocorrem fora dela. Nesse sentido, a obra é importante à medida que se oferece como possibilidade de estudo desses fenômenos. Enquanto que os estudos do estilo, ritmo e metro, das formas de ficção narrativa, dos gêneros literários e história literária compõem o conjunto de estudos intrÃnsecos da Literatura. É dentro dessa divisão que René Wellek e Austin Warren constroem a sua Teoria da Literatura e se posicionam: “O ponto de partida natural e sensato do trabalho de investigação literária é a interpretação e análise das obras literárias em si próprias†(WELLEK, WARREN, 1949, p. 169). A retomada a essa publicação clássica dentro dos Estudos Literários serve aqui para basicamente duas razões: primeiro, compreender melhor os interesses dos trabalhos já escritos sobre Relato de um certo Oriente e, segundo, posicionar a nossa pesquisa, a linha teórica e metodológica a ser seguida em nosso trabalho. Sabe-se que o primeiro romance de Milton Hatoum é, depois de Dois irmãos, o que mais recebeu atenção em trabalhos acadêmicos4. Nosso recorte incidirá sobre os trabalhos que tratam exclusivamente ou não do primeiro. Antes de mais nada, faremos nota à primeira crÃtica recebida pelo romance, publicada na seção G6 – Letras da Folha de S. Paulo em 29 de abril de 1989, escrita por 4 A professora Juciane Cavalheiro, docente da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), desenvolve atualmente a pesquisa de pós-doutorado, Memória, Alteridade e Recepção crÃtica da obra de Milton Hatoum, A pesquisa, ainda não publicada, visa montar um banco de dissertações e teses produzidas até o ano de 2019 sobre as quatro primeiras obras do escritor e construir um quadro sÃntese das temáticas abordadas nesses estudos. Nossos agradecimentos a ela, que nos prestou informações precisas sobre a quantidade de trabalhos já produzidos sobre Relato de um certo Oriente, na ocasião do XVII Seminário de Pesquisa em Andamento da UFPA. Flora Süssekind. Como dito, trata-se de uma crÃtica de jornal. Süssekind nunca escreveu um trabalho “de fôlego†sobre qualquer romance de Milton Hatoum, mas vale a pena ler o que ela disse na sua crÃtica Livro de Milton Hatoum lembra jogo de paciência: Uma narradora que procura desdobrar o próprio monólogo em vários, numa espécie de jogo de memórias-que-puxam-memórias propositadamente à maneira das histórias que se sucedem e imbricam nas ‘Mil e uma noites’. Desdobramentos que chamam a atenção para o esforço técnico a que Milton Hatoum se submete logo no primeiro livro. O que, se por um lado é magnÃfico – isso de deixar de lado velhos “tópoi†(homem versus natureza, seringueiros e descritivismos) da literatura regionalista amazônica, de Inglês de Sousa, José VerÃssimo e Rodolfo Teófilo5 a DalcÃdio Jurandir, e se jogar de cara numa estruturação romanesca próxima à de ‘As ondas’, de VirgÃnia Woolf, ou ‘O Som e a Fúria’ de Faulkner - por outro lado, parece deixar meio sem solo umas tantas vezes a narrativa de Hatoum. (SÜSSEKIND, 1989) 5 Vale chamar a atenção para o fato de que Süssekind coloca DalcÃdio Jurandir na mesma linha de um desconhecido, Rodolfo Teófilo. Flora Süssekind, embora surpresa com o esforço técnico empreendido logo no primeiro romance e satisfeita por ler um autor do norte que não aborde temas considerados regionalistas, não deixa de identificar as dificuldades do autor em figurar mais de um narrador dentro da obra: “Entra a fala de Hakim, entra o Pai, o fotógrafo. Mas não são significativas as alterações na dicção narrativa†(SÜSSEKIND, 1989). A crÃtica breve e pontual de Süssekind coloca ainda que essa “falta†na técnica, obrigou o romance a se autoexplicar no final e dizer que só havia uma voz o tempo todo: “O que não é mal, mas converte a multiplicação de monólogos numa espécie de jogo de paciência que não deu muito certo e o jogador se viu obrigado a interromper, não sem uma explicação envergonhada já que havia gente olhando†(SÜSSEKIND, 1989). Trata-se de um texto breve, mas que capta os pontos fortes e fracos do romance de Milton Hatoum, levando em conta a técnica do escritor, os seus artifÃcios para a construção da narrativa do romance. Esse olhar sobre o romance, cujo espaço ficcional é a Amazônia, também chama a atenção da crÃtica para a conhecida discussão e leitura em torno do regionalismo ao qual os romancistas do Norte sempre se viram presos, por razões evidenciadas por ela. Milton Hatoum, aos olhos da crÃtica, distancia-se dessa tradição em função de uma técnica narrativa que o aproxima de grandes autores. Süssekind lê o romance numa perspectiva que nos interessa dentro dessa pesquisa, porque esbarra em questões puramente narratológicas e que são julgadas por ela como limitações na construção da narrativa. Nesse sentido, Flora Süssekind não tem intenção de exaltar o autor do livro, os créditos lhes são conferidos com justiça, sem deixar de apontar com clareza os pontos fracos do romance. Nosso trabalho faz diálogo com essa crÃtica porque nos interessa compreender o tipo de narrador e a perspectiva adotada ao longo da narrativa, assim como nos interessa analisar toda a sequência dos acontecimentos dispostos da maneira em que estão no romance, a fim de preencher uma lacuna na fortuna crÃtica. Há trabalhos acadêmicos, entre dissertações e teses, que se propuseram a estudar o nosso objeto, porém seus interesses divergem do nosso. São escassos os trabalhos que apresentam uma análise do desenvolvimento da narrativa. Alguns conseguem reunir um determinado conjunto de observações sobre o texto, mas perdem a força ao partirem para interpretações prematuras sem se demorarem na análise. Há sempre uma pressa por afirmar algo; raramente se observa a extração de fragmentos do romance para uma leitura minuciosa nesses trabalhos. A preocupação parece girar em torno de uma necessidade de afirmar o autor no cânone também. O interesse em estudar Literatura pode atender a um desejo de promover seu autor, mas não se pode deixar de lado a preocupação com o processo de desenvolvimento do texto em si, afinal é a existência desse material que justifica todo o discurso feito sobre ele. Ao reconhecermos essas diferenças entre a nossa proposta e a proposta dos trabalhos já realizados sobre o romance, questionamos tanto as teorias escolhidas para a leitura do objeto que não dão conta da estrutura6 do romance, como a metodologia, que não se pauta na análise dos trechos, não se compromete totalmente com o texto, para que conteúdo – “os sucessos narrados num romance, tal como as ideias e emoções†(WELLEK, WARREN, 1949, p. 171) - e forma – “o modo como os sucessos são dispostos em um enredo†(WELLEK, WARREN, 1949, p. 171) - sejam enxergados e compreendidos dentro de um trabalho crÃtico. 6 Empregamos aqui a palavra estrutura nesse sentido: “A estrutura é um conceito que inclui tanto o conteúdo como a forma, na medida em que se encontrem organizados para fins estéticos. A obra de arte é, pois, considerada como um sistema global de signos, ou uma estrutura de signos, que servem um objeto estético especÃfico†(WELLEK, WARREN, 1949, p. 172). Nesse sentido, ao fazermos o levantamento da fortuna crÃtica de Relato de um certo Oriente, encontramos dois textos publicados em periódicos que falam sobre a recepção do romance: o primeiro intitula-se Panorama da produção literária de Milton Hatoum e de sua recepção, em homenagem aos vinte anos de Relato de um certo Oriente escrito por Joanna da Silva em 2010 e A ficção de Milton Hatoum: recepção crÃtica, escrito por Sylvia Maria Trusen e Francisca Andréa da Silva em 2018. O primeiro artigo é interessante porque situa bem o novo pesquisador do romance, que passa a contar com a classificação da fortuna crÃtica: os trabalhos de enfoque comparatista, dentre os quais destacam-se os trabalhos de Sarah Wells (2007), Marli Fantini (2007) e Stefania Chiarelli (2007); de enfoque memorialista, dentre os quais estão os trabalhos de Bridget Christine Arce (2007), Maria Zilda Cury (2003), Maria da Luz Pinheiro de Cristo (2007), Francisco Foot Hardman (2000); de enfoque na imigração, dentre os quais a autora cita os trabalhos de Maria A. Ribeiro (2007) e Jerusa P. Ferreira (2007); de enfoque sobre o regionalismo e exotismo, cujos destaques são os trabalhos de Tânia Pellegrini (2004) e Estela J. Vieira (2007); os trabalhos de Wander Melo Miranda (2007), Beth Braith (2008) e Sabrina Sedlmayer (2005) e Marleide F. de Toledo (2007) abordam o exotismo mais focado na escrita, na linguagem de Milton Hatoum, aponta a autora. Essa classificação apresentada no artigo de Joanna da Silva não se alterou muito nos anos seguintes e a ela somente incluiremos mais alguns trabalhos. O segundo artigo, de Sylvia Trusen e Francisca Silva, fala da recepção da crÃtica jornalÃstica e literária e não se detém em trabalhos acadêmicos, como fez a autora do primeiro. O objetivo das duas autoras é levantar as crÃticas sobre a obra de Milton Hatoum, dado o sucesso e a atenção recebida do público leitor. Nesse sentido, Trusen e Silva mostram7 o quanto a crÃtica jornalÃstica e literária enxergam com entusiasmo e positividade a obra de Milton Hatoum. 7 Mas uma questão chama a nossa atenção: As duas autoras citam uma reportagem publicada na Revista Visão, no ano de 1989, mas não fazem referência ao texto de Flora Süssekind, publicado na Folha de S. Paulo, no mesmo ano. 8 O tÃtulo lembra um dos clássicos trabalhos de Dostoiévski. Na reportagem da Revista Visão, intitulada Recordação da casa dos mortos8, publicada no ano de 1989, ano de estreia do romance, as autoras destacam “um Hatoum recém-lançado que impressionou o editor da Companhia das Letras, LuÃs Schwartz, por sua força e originalidade†(TRUSEN, SILVA, 2018) e as palavras de Davi Arrigucci Júnior sobre o romance. O trecho citado e escrito pelo professor de Literatura da Universidade de São Paulo é o mesmo que está presente na orelha do romance, inclusive. Davi Arrigucci nunca fez um estudo sobre o romance de Milton Hatoum, mas o seu texto é sempre citado como referência em trabalhos acadêmicos e pode ser lido também na coletânea de ensaios sobre a obra de Milton Hatoum, Arquitetura da Memória: ensaios sobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum, organizada por Maria da Luz Pinheiro de Cristo, publicada em 2007. O artigo de Trusen e Silva abordam o tema do regionalismo, passando pelas leituras de crÃticos como Alfredo Bosi, Benedito Nunes e Erick Schøllhammer. Isso porque as primeiras crÃticas sobre a obra de Milton Hatoum sempre esbarraram nesse tema, dado o fato de que os escritores da região Norte sempre ficaram presos a essa categoria. As autoras concluem o que a seleção de textos crÃticos, feita por elas já evidencia, o grande sucesso e acolhimento do escritor pelas crÃticas jornalÃsticas e literárias. Elas também se posicionam contra a ideia de que ele é regionalista. A defesa contra o regionalismo é sempre um esforço para afastá-lo de qualquer possibilidade de colocá-lo em um lugar de menor prestÃgio. Tania Pellegrini, em Milton Hatoum e o regionalismo revisitado, abordou a questão evidenciando o inÃcio de uma nova linhagem de ficção da região, a partir da década de 1970, com Márcio Sousa e seu romance Galvez, o imperador do Acre. Para ela: Esse regionalismo revisitado de Hatoum consiste, portanto, numa mescla de elementos que brotam de todos os matizes de uma matéria dada por uma região especÃfica, com outros advindos de matizes narrativas de inspiração europeia e urbana, formadoras de nossa literatura, tudo filtrado por um olhar que contém horizontes perdidos num certo oriente e num outro tempo. Com isso, o autor revitaliza o gênero, num momento da história da ficção brasileira em que ele parecia aos poucos estar se esgotando (PELEGRINI, 2004, p. 129) O que Pellegrini faz, nesse sentido, é defender a presença de um regionalismo, cujo papel é acentuar as particularidades internas da ficção, como forma de definir sua outridade dentro da estrutura geral da sociedade brasileira, sem deixar de revelar uma filiação à s fontes inspiradoras da literatura brasileira. Na leitura de Pellegrini fica evidenciada a valorização da narradora que conta uma história puxando pela memória acontecimentos passados, marcados pelo esquecimento, pelo esforço de lembrar e que, definitivamente, deram à ficção de Milton Hatoum um lugar especial na tradição dos escritores não só da região como do paÃs, uma vez que essa proposta requer uma forma narrativa capaz de atender à s nuances das personagens e seus conflitos internos. Nosso intento não é discutir o tema do regionalismo, já saturado dentre os estudos sobre a ficção de Milton Hatoum, mas não se pode deixar de notar o quanto a análise do romance poderia iluminar a discussão sobre o tema. No próprio excerto citado de Pellegrini, ao falar de “um olhar que contém horizontes perdidos num certo oriente e num outro tempo†e afirmar que esse é um traço que contribui para a revitalização do gênero, o quanto não se ganharia, em termos de esclarecimento, formular, por meio de uma análise, o que seria esse olhar. É o olhar do autor concreto, o homem real Milton Hatoum, o olhar da instância fictÃcia, a narradora? Ou o olhar das personagens? O que Milton Hatoum, de fato, conseguiu realizar de diferente ou de parecido com os demais autores de uma tradição à qual ele se filia, segundo a autora? A análise narratológica do romance poderia evidenciar melhor uma série de observações feitas pela crÃtica da obra do escritor? Tomando por princÃpio os textos sobre a recepção do autor, abordaremos os trabalhos acadêmicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado, que elegeram Relato de um certo Oriente como objeto de análise, numa perspectiva mais aproximada da nossa, ou seja, que se utilizaram da leitura dos aspectos narratológicos do romance como fundamento para as suas interpretações e resultados de pesquisa. Destacamos quatros dissertações de mestrado que pretenderam fazer uma análise da narrativa: ExÃlio e memória na narrativa de Milton Hatoum, defendida por Noemi Campos Freitas Vieira, em 2007; Milton Hatoum e o exÃlio como metáfora para a condição do intelectual, defendida por Maria Luiza Almada Moreira, em 2007; Viagens, identidade e travessias: uma leitura comparada das obras Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum e O outro pé da sereia, de Mia Couto, defendida por Aparecida Cristina da Silva Ribeiro, em 2013; As cinzas da cidade: cenas e vivências da vida manauara na ficção de Milton Hatoum , defendida por Wilton Mota de Miranda Júnior, em 2013. As duas primeiras dissertações se inserem no conjunto de estudos sobre o exÃlio e um dos objetivos das duas autoras é analisar a figura do narrador dentro do romance. No trabalho de Noemi Vieira, o narrador é tratado como sujeito que desempenha tal papel na narrativa em busca de uma identidade que não é determinada. No trabalho de Maria Luiza Moreia, o “narrador-personagem†é uma metáfora para a condição do intelectual no exÃlio. Ambas mobilizam categorias da teoria da narrativa, mas o tratamento dado a elas é filosófico e, por isso, utilizam as formulações de Walter Benjamin para tratar do assunto9. O interesse pela construção da narrativa é grande e visÃvel nos trabalhos, mas a discussão toma outros caminhos, partem de uma estrutura concreta (que são os elementos narrativos propriamente ditos), para formulações abstratas, que não dão conta de explicar a forma do texto. 9 Sobre o tratamento dado ao ensaio O Narrador, de W. Benjamin, pela recepção crÃtica, citamos Gunter Karl Pressler: “Importante ressaltar para toda a discussão narratológica que Benjamin não trata no ensaio “O Narrador†a questão do narrador fictÃcio no contexto da estrutura narrativa. O ensaio não é uma contribuição narratológica stricto sensu. Benjamin trata o narrador e autor real-empÃrico. O ensaio é uma reflexão filosófica sobre a arte de narrar histórias nos séculos passados e, particularmente, sobre o declÃnio da arte de narrar na transição do século XIX para o século XX. Benjamin analisa e caracteriza este narrador; o contador de histórias em comparação com o romancista modernoâ€. (PRESSLER, 2006, p. 321) As narrativas auxiliares vêm à tona para os narradores dos romances como materiais em suspensão, que pedem um registro, uma forma de edificação que sirva como espécie de memorial, na tentativa de escapar ao inexorável esquecimento. No entanto, as lembranças constitutivas dessas narrativas são também interpretações, pois esses pseudonarradores estão também submetidos à ação do tempo e dos escapes providenciais fornecidos pelos mecanismos do esquecimento. (VIEIRA, 2007, p. 56) Noemi Vieira lê a presença de vários narradores, ou “pseudonarradoresâ€, no romance e entende que cada um produz uma “narrativa auxiliarâ€. As apreciações da autora do estudo giram em torno do conteúdo dessas narrativas, ou ainda, de suas possÃveis representações, já que a tônica do trabalho também são a memória, o esquecimento. Ao optar pelo termo “pseudonarradorâ€, ela nos deixa saber que percebe uma diferença entre o status da narradora inominada do romance e os demais personagens que contribuem com o fornecimento dessas “narrativas auxiliaresâ€, para usar o termo de Vieira, mas isso não é objeto de seu estudo. Outro ponto a ser destacado no estudo que a autora realiza é a comparação com a estrutura do clássico árabe, As mil e uma Noites: As reflexões em que mergulham os vários narradores destacados em Relato de um certo Oriente dão à estrutura da narrativa uma configuração de história-puxahistória, à maneira de Sherazade, que luta pela manutenção da vida, contando as mil e uma histórias nas noites que a aproximavam da morte. Esse procedimento sustenta-se com maior vigor nessa obra, dando-lhe o toque peculiar de colagem das várias narrativas recolhidas pela narradora sem nome. (VIEIRA, 2007, p. 68) A comparação entre o arranjo dos relatos no romance e a configuração das narrativas em As mil e uma Noites também não é objetivo da autora, tanto que a discussão sobre o assunto tem uma forma de comentário e acaba se tornando uma espécie de saÃda para a descrição do que ocorre no romance, sem se deter em pormenores. Já o trabalho de Maria Luiza Moreira não consegue se desprender das metáforas do próprio romance estudado e as repete, assinalando a “voz da narradora†como “um pássaro gigantesco, mas frágil. Ela não pretende subjugar as outras vozes a uma voz totalitária, capaz de preencher as lacunas, as reticências da memória†(MOREIRA, 2007, p. 35). O espaço habitado pela narradora é, por excelência o da incerteza. Da mesma forma como se dá com o intelectual que tem o exÃlio como metáfora para sua condição, ela sente-se em constante movimento. Ela abdica de estabelecer uma ordem ao seu relato para compor uma narrativa à deriva. Seu processo de escrita se assemelha, portanto, com o movimento de um viajante, um remador a navegar pelas águas incertas de um rio (MOREIRA, 2007, p. 37) Nesse caso, o uso da metáfora como recurso descritivo do texto literário parece mais um sintoma da falta de teoria especÃfica que contribuiria para uma leitura mais produtiva do texto. Afinal, o que a afirmação de que a narradora “sente-se em constante movimento†revela sobre como essa narradora, enquanto uma instância fictÃcia dentro da obra, opera, ora optando por fazer valer seu discurso, ora o discurso das personagens? Dizer ainda que a narradora abdica de estabelecer uma ordem ao seu relato, com a finalidade de compor uma narrativa à deriva é, ainda, estar preso ao texto literário, pois esses dados são encontrados no plano da história narrada. A imagem criada por Moreira lembra ainda o comentário de Flora Süssekind que compara a narradora à imagem de Klee. Cabe ao crÃtico encarar essas formulações presentes no texto literário e destrinchá-las, distanciar-se delas, a fim de compreender a organização do texto e não se deixar envolver pela sedução da metáfora. Outra autora de um estudo sobre a obra definiu a sua forma de lidar com presença de “vários narradores†no romance. Aparecida Ribeiro estabeleceu o que ela chamaria de narradora da narrativa e narradores na narrativa: Sobre os demais narradores na narrativa, os que contribuem na edificação da obra literária do escritor manauara, verificamos que são personagens/narradores não do romance, mas sim, na narrativa. Assim, quando analisamos a narradora oficial do Relato, referimo-nos à designação narradora da narrativa. E quando se trata dos demais narradores, referimos aos narradores na narrativa. (RIBEIRO, 2013, p. 68) O interesse de Ribeiro é mapear os vários narradores do romance, pois, segundo ela, assim é possÃvel “compreender melhor o emaranhado de vozes que se entrecruzam na narrativa†(RIBEIRO, 2013, p. 71). A autora extrai fragmentos de cada capÃtulo do romance para identificar o narrador correspondente e faz uma observação: Nos capÃtulos narrados pelos narradores/personagens no romance, há um recurso de diferenciação em relação aos relatos da narradora do romance. A diferença entre os relatos dos narradores na narrativa e da narrativa nota-se pela utilização de aspas ao iniciar e finalizar cada capÃtulo da obra. Os relatos dos narradores no romance iniciam com a abertura de aspas e terminam com o fechamento. Ou seja, são relatados/transcritos para o Relato entre aspas. E nos relatos da narradora do romance não há aspas. Diante deste recurso literário observado, a utilização de aspas, que diferencia os relatos dos narradores no e do romance, pode-se caracterizar uma marca da identificação do relato do outro narrador. Assim, a apropriação dos relatos pela narradora oficial, caracteriza o seu devido reconhecimento ao transpor a voz do outro narrador para o Relato. Por isso, ela transcreve-os entre aspas. (RIBEIRO, 2013, p.72) A existência desse recurso utilizado no romance de fato foi bem apontada por Ribeiro, porém, não é possÃvel colocar que a presença das aspas identifica o que será um relato de um “narrador na narrativa†em contraposição ao relato da “narradora da narrativaâ€, simplesmente porque o sexto e o oitavo capÃtulo, quebram essa tese. No sexto e oitavo capÃtulo a narradora inominada reassume a condução do discurso da narrativa e, mesmo assim, eles encontram-se entre aspas. Qual seria, afinal, o papel dessas aspas? Como compreendê-las no plano da construção da obra pelo autor e no plano do discurso da narradora, a responsável por organizar todo o discurso narrativo, o qual nos dá acesso ao mundo ficcional representado? Ribeiro atentou para a questão, mas certamente precisaremos encará-la novamente mais adiante em nossa análise. Wilton Miranda Júnior, em sua abordagem, observou a forma epistolar do romance e que não pode ser colocada em segundo plano no estudo dessa narrativa, uma vez que toda obra literária envolve instâncias que se comunicam. A narradora do Relato tem um leitor fictÃcio muito bem marcado e definido, evocado muitas vezes por ela, na obra. A forma de epÃstola, que insere diversas histórias dentro de outras diversas histórias, faz com que o Relato de um certo Oriente tenha uma estrutura especial, experimentando o navegar da memória por entre o tempo e o espaço, e ao final consegue englobar as memórias de todos os narradores. As relações conflituosas da famÃlia são atreladas à história de uma cidade decadente, onde a memória, por meio de suas incertezas e dúvidas, instaura o papel salvador da imaginação e invenção, dos narradores e dos próprios leitores. (MIRANDA JÚNIOR, 2013, p. 46) Por outro lado, esse traço caracterÃstico apontado por ele não é também devidamente analisado ao longo do trabalho, pois a teoria utilizada por ele para dar conta dessa moldura epistolar do romance não alcança essa estrutura. Miranda Júnior compreende a narradora do romance como “organizadora†(MIRANDA JÚNIOR, 2013, p. 49) do conjunto de relatos e se apoia na teoria de Benjamin sobre o narrador para discutir a condição dela no romance. Dentre as teses de doutorado que também abordam questões narratológicas do romance, destacamos a de Vera Lúcia da Rocha Maquêa, intitulada Memórias inventadas: um estudo comparado entre Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum e Um rio chamado Tempo, uma casa chamada Terra, de Mia Couto, de 2007. Trata-se de um estudo comparativo, como se vê pelo tÃtulo, que busca verificar as estratégias de construção da memória e, para isso, ela acompanha o percurso dos narradores das duas obras e as técnicas narrativas e temáticas presentes nos romances. Uma das razões que tornam relevante a tese de Maquêa para nós é ela apontar e discutir a não mudança no estilo da narrativa, mesmo quando “passa de um narrador para outroâ€, traço apontado por Flora Süssekind, como já dissemos, mas que não parece ter se transformado em inquietação para os estudiosos que se dedicaram ao romance. No entanto, apresenta-se o estilo invariável da narrativa como um todo, não sendo possÃvel precisar a fronteira entre os discursos especÃficos dos narradores. Mas isto é apenas mais uma das estratégias narrativas de MH neste romance, pois que os pontos de vista individuais dos narradores mantêm fragmentos complementares, e por vezes, dissonantes, entre si, pela perspectiva do olhar de cada um. Com isto, podemos redimensionar a forma do relato como qualquer outra forma de representação no campo da linguagem, cuja transparência é uma ilusão, uma perversa maneira de conceber a possibilidade de dizer alguma coisa objetivamente. (MAQUÊA, 2007, p. 127-128) A autora da tese não encarou a questão como um aspecto negativo; ao contrário, Maquêa identificou aà uma estratégia utilizada por Milton Hatoum para ressaltar “os pontos de vista individuais dos narradoresâ€, pois, como pensa ela, esses narradores dão informações “complementares e à s vezes dissonantesâ€. A diferenciação entre eles estaria, portanto, nesses fragmentos de linguagem, não do estilo, que acusam uma perspectiva especÃfica. Nesse sentido, a falta de variação no estilo ilustraria que a transparência na linguagem é ilusória. Maquêa “resolve†a questão, respondendo a uma caracterÃstica da construção narrativa com uma leitura interpretativa. Não existe uma análise tampouco uma teoria que apoie a leitura do texto feita por ela. Ainda assim, a autora observa o fenômeno presente no texto e, mesmo não aplicando o termo “ponto de vista†de forma conceitual, nota que existem perspectivas diferentes quando se trata dessa variedade de narradores observada. Mais adiante, Maquêa também fala sobre a presença de aspas na maioria dos capÃtulos do romance: O único capÃtulo narrado pela relatora é o primeiro, com duas sessões, sem aspas. A partir daÃ, os capÃtulos seguintes aparecem narrados por outros narradores, todos entre aspas. Mesmo o sexto e o último, o oitavo; que são narrados por ela, vêm entre aspas. As aspas podem significar duas coisas: a primeira, que ao relatar, a narradora preserva o depoimento conforme foi narrado, não alterando sua forma; a segunda coisa, que ao relatar, a narradora preserva o conteúdo, mas o ‘traduz’ para que o irmão possa compreender. (MAQUÊA, 2007, p. 128-129). Esse foi um dos trabalhos que observou adequadamente como ocorrem essas aspas no romance e que passou despercebido aos olhos de Aparecida Ribeiro, anos depois. Em 2007, a autora do estudo já notou que havia aspas mesmo nos capÃtulos em que o próprio discurso da narradora conduzia a história. Ela não deixou de comentar o que, a princÃpio, parece uma incoerência do texto, tampouco simplificou a questão como fez Aparecida Ribeiro. Maquêa tenta solucionar o enigma: A segunda hipótese é a mais possÃvel já que no final do romance, ela mesma diz que foi preciso traduzir a lÃngua estrangeira daquelas vozes para que ele pudesse compreender. Essa hipótese é ainda a mais aceita tendo em conta que o registro estilÃstico é uniforme do inÃcio ao final do romance, para todos os narradores. Todos narram e descrevem. Mas só ela relata. (MAQUÊA, 2007, p. 128-129) Maquêa levanta duas hipóteses, que logo em seguida se transformam em uma tese. Esse é um dos exemplos de colocações prematuras sobre questões que só poderiam ser definidas caso fosse realizada uma análise completa do texto. O estudo do texto não aparece como princÃpio básico para tal abordagem e autora opta por uma saÃda com base na interpretação do texto. Nesse sentido, Maquêa utiliza o termo “traduzirâ€, que não está presente no romance, no discurso da narradora, para fazer referência ao trecho “restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes (HATOUM, 2017, p. 189). Entendendo essa fala da narradora como confissão de uma tradução, a saÃda para o enigma das aspas foi caminhar diretamente para uma leitura interpretativa. Ainda que se tratasse de uma tradução, tal resposta não dá conta de por que até mesmo nos capÃtulos narrados pela narradora encontramos aspas. A narradora precisou “traduzir†a fala dos estrangeiros e a sua também? Entendendo a narradora como uma “racionalidade organizadora†(MAQUÊA, 2007, p.129), a autora admite então a existência de vários narradores no romance, tal como a maioria dos pesquisadores: “O Relato então tem vários narradores, mas podemos dizer que tem uma relatora. No sentido que o relator é um compilador, um sujeito que organiza o texto†(MAQUÊA, 2007, p.130) e encaminha finalmente a sua interpretação sobre o romance: Mas ao final, as aspas denunciam que a narradora se deslocou na relatoria e se colocou à figura do autor. O autor entendido no sentido que Foucault concebe o autor, como uma figura do discurso, uma voz que coordena a narrativa e que aqui no caso pode ser vista como alter-ego do autor (MAQUÊA, 2007, p. 135) Maquêa defende a ideia de que a narradora é um alter ego do autor do romance. Ao compreender a existência de vários narradores e a posição da narradora como relatora, uma compiladora dos relatos, a autora entende que a presença das aspas nos capÃtulos conduzidos por ela denuncia a presença do autor no discurso. Essa declaração implica dizer que Maquêa reconhece que existe alguma diferença hierárquica entre a narradora e os demais narradores e que narrador e autor são instâncias que se mostram de forma conflitantes dentro do texto. A interpretação de que o autor está escondido por trás da narradora já fora apresentada por Marleine Paula Marcondes e Ferreira de Toledo em um estudo publicado em 2006, intitulado Milton Hatoum: Itinerário para um certo Relato10. Trata-se de um estudo dividido em oito partes, em que autora vai dos aspectos concretos (autor e obra propriamente dita) aos aspectos fictÃcios que compõem a obra (narrador, história, personagens). Ela começa, portanto, apresentando quem escreveu a história: fala sobre Milton Hatoum, o homem real, nascido em Manaus, descendente da mistura de brasileiros e imigrantes árabes, apresenta 10 Esse trabalho é a segunda parte do projeto Cultura Brasileira, dedicado à literatura brasileira, em que a autora se dedicou a escrever sobre o prosador Milton Hatoum e Olga Savary, poeta. Não se trata, portanto, de nenhum estudo com intenção de obtenção de tÃtulo. Esse mesmo estudo sobre Milton Hatoum foi publicado em 2017, na coletânea Arquitetura da Memória: ensaios sobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte, organizado por Maria da Luz de Cristo, com o tÃtulo “Milton Hatoumâ€. brevemente a obra a ser estudada, depois realiza seu itinerário pelo desenvolvimento da narrativa. Compartilhando e citando a leitura de Maria Zilda Cury (2000) sobre a existência de “narradores com vozes próprias†no romance, Toledo define o romance de Hatoum da seguinte forma: O Relato é um romance de memórias, polifônico, com cinco narradores. O primeiro narrador relembra alguns fatos, pessoas, situações, depois passa a palavra para um segundo, este para um terceiro e assim sucessivamente. Um parece completar o anterior, em pé de igualdade, sempre em busca do que aconteceu no passado (TOLEDO, 2006, p. 35) Entendendo que o romance é polifônico com seus cinco narradores em mesmo pé de igualdade, ela faz observações que tocam na questão estrutural da narrativa, isto é, a autora percebe o que está presente na maneira como os acontecimentos aparecem dispostos. Por exemplo, Toledo verifica que, a cada novo capÃtulo do romance, nem todos os personagens vão estar presentes na história, pois as personagens passam a ser vistas umas por meios das outras, “o que leva o leitor a conhecê-las é aquilo que pensam umas das outras, e não apenas as palavras que elas pronunciam quando se encontram juntas em cena†(TOLEDO, 2006, p. 38). Essa observação recai sobre o aspecto da perspectiva da narrativa que se altera a cada capÃtulo no romance, mas o trabalho de Toledo não apresenta nenhum diálogo com a teoria da narrativa. Outro ponto observado por ela e que merece destaque é o que ela mesma chama de uma questão fundamental dentro da obra: “Havendo vários narradores, além de várias facetas da verdade, devem haver também vários estilos, vários manejos da linguagem†(TOLEDO, 2006, p. 39). Trata-se mais uma vez da mesma observação feita por Süssekind, reiterada por Maquêa, mas que, definitivamente, até o momento, nunca virou alvo de uma análise crÃtica do romance. Toledo incrementa a questão, estabelecendo uma comparação com o fenômeno da heteronÃmia em Fernando Pessoa que, a cada heterônimo, cria uma nova poesia totalmente diferente, principalmente no estilo e na linguagem: a cada heterônimo, quer seja por questão de verossimilhança, quer por razões transcendentes, corresponde um estilo peculiar – de forma que é perfeitamente possÃvel reconhecer, inclusive linguisticamente, quando se trata de Fernando Pessoa - ele mesmo (TOLEDO, 2006, p. 39-40) Toledo também se utiliza do exemplo da “visão multiperspectivada de Ronaldes de Melo e Souza da obra euclidianaâ€11 (TOLEDO, 2006, p. 40): 11 Toledo coloca uma nota de roda-pé, informando a sua referência: conferência de abertura da Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo, em 9 de agosto de 2003, proferida por Ronaldes de Melo e Souza, “A Geopoética de Euclides da Cunhaâ€. DisponÃvel em: www.casaeuclidiana.org.br/texto/ler.asp?ld=711secao=111. Para tanto propõe ‘a mascarada do narrador multiperspectivado’, enxergando em Euclides o ‘observador itinerante, pintor da natureza, encenador teatral, investigador dialético, refletor dramático e historiador irônico’. A cada uma dessas máscaras correspondem peculiares estilÃsticas que contribuem para a respectiva identificação. (TOLEDO, 2006, p. 41) A autora destaca dois exemplos, portanto, de escritores que se valeram da mudança de estilo para afirmar as diferentes personalidades a que esses estilos estão diretamente atrelados. Ela inclusive lembra o aforismo de Buffon, usado por comentaristas do estilo euclidiano: “O estilo é o homemâ€. Mas ao retornar a questão para Milton Hatoum, Toledo constata: Há cinco narradores: a narradora propriamente dita, não nomeada, que vai cedendo a palavra, respectivamente, a Hakim, a Gustav Dorner, ao “avô†e, finalmente, a Hindié Conceição. O estilo, contudo, é sempre o mesmo; nem o estilo é homem, nem o homem é os estilos, porque linguisticamente é impossÃvel identificar (TOLEDO, 2006, p. 42). Pegando um trecho de cada capÃtulo do romance de Milton Hatoum, Toledo acaba por finalmente confirmar que não existe qualquer mudança na linguagem ou no estilo do romance. O movimento da autora em busca de um modelo ao qual possa comparar o romance de Hatoum a leva em direção aos clássicos árabes: Mil Histórias sem Fim de Malba Tahan e as Mil e uma Noites. Esses dois modelos seriam as inspirações para esse tipo especial de polifonia que ela identifica em Hatoum. O Relato mescla essas duas espécies de narrativas plurais, porque, se há passagem de um narrador para outro, não há, porém, diferença de estilos. Na realidade, a narradora é uma só e reconta as narrativas ou depoimentos das demais personagens, nivelando-os por não conseguir organizá-los nem reproduzi-los com total fidelidade (TOLEDO, 2006, p. 43) Ao refletir sobre a relação entre As mil e uma Noites e Relato, Toledo afirma que a narradora é uma só, reformulando a ideia dos cinco narradores defendida em páginas anteriores. Como não fazia parte da sua proposta de análise um estudo narratológico, questões como essa não ganham precisão no trabalho: afinal quantos narradores existem no romance? A maioria dos trabalhos, como se pôde verificar, aponta a existência de vários, ainda que, em dados momentos da discussão, deixem transparecer o reconhecimento de uma diferença hierárquica entre a narradora e os outros, daà ela aparecer nesses trabalhos como “compiladoraâ€, “relatoraâ€, pois, já que se deu a todos o status de narrador, ela precisaria de um termo a mais para aumentar o seu nÃvel de importância dentro do texto. Para Toledo, “essa narradora ‘arquivista’ é, até certo ponto, um recurso retórico de Hatoum. Examinando do alto e de longe, ‘planando como um pássaro’†(TOLEDO, 2006, p. 44). Toledo, depois de selecionar trechos de cada capÃtulo para apontar o mesmo estilo presente em cada um, e não enxergar nisso uma falha, como Süssekind, entendeu nisso uma “sutil e matreira intenção†(TOLEDO, 2006, p. 45) do próprio autor em se esconder por trás da narradora do romance: “Assim, a narradora, em sua linguagem culta, econômica, misteriosa, impressionista e plástica, é a voz do próprio Hatoum, resgatando, recriando e transfigurando seu passado†(TOLEDO, 2006, p. 45). A estudiosa recorre a entrevistas feitas com o autor que, por vezes, afirmou a relação entre o romance e a suas experiências pessoais, porém, trata-se de uma saÃda interpretativa para uma questão puramente textual e que permanece sem resposta, ou tentativa de resposta. Dizer que o estilo permanece o mesmo, porque Hatoum está escondido por trás da narradora, é uma leitura interpretativa do fenômeno, realizada com base no conhecido verso de Fernando Pessoa “O poeta é um fingidor†citado por ela. Tanto que depois ela problematiza a escolha de uma narradora feminina: “Por que teria o autor escolhido uma máscara feminina para esconder-se e revelarse ao mesmo tempo? Pode-se logicamente pensar em Sherazade†(TOLEDO, 2006, p. 47). A tese de doutorado Entre-narrar: Relatos da fronteira em Milton Hatoum, defendida em 2007, por Daniela Birman, toca nos pontos que ressaltamos nas abordagens supracitas: a crÃtica de Flora Süssekind, a relação entre a narradora do romance e a figura de Sherazade e a presença das aspas no inÃcio dos capÃtulos do romance. Essa tese é interessante para a nossa pesquisa, uma vez que a autora, mesmo amparada na filosofia e na psicanálise, dedicou-se a tratar sobre os narradores de Milton Hatoum e fez muitas apreciações sobre a narradora de Relato de um certo Oriente. Seguindo um estilo mais ensaÃstico, o trabalho aborda os três primeiros romances do escritor, mas é sobre o primeiro que Birman se debruça com mais atenção, já que ela defende a ideia de que os narradores de Hatoum são escritores de livros que estão dentro de outro livro, ou, como ela mesma coloca na introdução da sua tese, o trabalho se ocupa dos “tralhotos-narradores dos três romances de Milton Hatoum†(BIRMAN, 2007, p. 12), em referência ao peixe mencionado no conto A casa ilhada de A cidade ilhada e cujo olho fica metade fora, metade dentro da água. A autora discute caracterÃsticas que ela identifica nesses narradores e aborda a “falta de origemâ€, “solo fundadorâ€, “camada do originárioâ€, mobilizando autores como Michel Foucault e Maurice Blanchot. Do mesmo modo, recorre à s ideias presentes no texto de Benjamin sobre o narrador, a impossibilidade de narrar, a atrofia da memória e da experiência coletiva na modernidade. Ela apresenta também dados biográficos do autor, Milton Hatoum, comentários e entrevistas, que, segundo ela expõe, não são usados como resposta a uma interpretação do texto literário, mas que atendem a um diálogo necessário, visto que não se pode separar um texto de outro. Diferentemente de Maquêa e Toledo, Birman não defende a ideia de um Milton Hatoum escondido por trás da narradora, isto é, a categoria do autor não é mobilizada como um componente da estrutura narrativa, mas ela não deixa de identificar coincidências entre a biografia do autor, homem descendente de imigrantes, e o posicionamento da narradora “numa zona fronteiriça: nem dentro nem fora de Manaus†(BIRMAN, 2007, p. 65). Nesse sentido, é possÃvel dizer que o autor é sempre “convidado†a aparecer diante de sua obra e, no caso do romance em questão, a crÃtica sempre se mostra bastante interessada nas relações que se podem realizar entre autor e obra. Vejamos como isso aparece na leitura de Birman: A primeira dessas informações biográficas consiste na ascendência árabe de Hatoum. O escritor é filho de mãe amazonense de origem libanesa, cristã, e de pai libanês, muçulmano. Durante 50 anos, seu pai levou sua mãe à igreja aos domingos. Isso não o afastou, contudo, do hábito de rezar o Alcorão. ImpossÃvel esquecer, nesse contexto, a caracterização dos casais das famÃlias nucleares dos dois primeiros romances do autor. Ao relatar essas lembranças, Hatoum critica o estereótipo preconceituoso que reduz diferentes sociedades a uma imagem de intolerância e radicalidade (BIRMAN, 2007, p. 36) Enfatizando como Birman trata a narradora, vale a pena destacar que ela identifica “um movimento duplo†desta, mas sem ir em direção a uma análise narratológica, até porque seu aporte teórico não lhe serve para estes fins. A narradora do romance torna a si mesma personagem da história que narra: Nossa narradora é marcada, desse modo, por um duplo movimento, que, por um lado, torna-a personagem da trama e, por outro, esconde-nos seu nome, dados fundamentais sobre sua história (de “onde veioâ€, aonde mora, o que faz) e outros atributos das figuras romanescas clássicas, como sua descrição fÃsica e seu perfil “moral†(BIRMAN, 2007, p. 72) O interesse de Birman recai sobre os mistérios que a narrativa do romance carrega e sobre os quais só se pode especular, lançar hipóteses, pois não se pode preencher certas lacunas da história devido à ausência de informações concretas que o próprio texto não oferece: interessa-nos indagar o que a ocultação do nome indica no interior da trama em questão. Esse anonimato, que dá ares enigmáticos a nossa personagem e faz com que sua presença torne-se evanescente e por vezes mesmo espectral, parece a princÃpio apontar para a ausência de origem sobre a qual falamos mais acima, relacionada à idéia de verdade e de essência. Desse modo, ao entrar em cena sem rosto, a narradora nos aponta e enfatiza a inexistência desta identidade primeira e verdadeira, inexistência com a qual ela se defrontará em sua viagem de retorno a Manaus e em sua exploração identitária. A opção pelo anonimato, neste caso, constitui um modo de destacar a ausência de origem, em vez de optar pelo uso de uma máscara, assumindo-a como tal ou fazendo-a passar por uma imutável essência. (BIRMAN, 2007, p. 73) Para tratar dessas lacunas, a autora recorre à noção de Unheimlich descrita por Freud, que guia toda a sua leitura sobre o anonimato da narradora, o impacto da morte de Soraya Ângela e da morte de Emilie para a narradora. Trata-se de uma leitura psicanalÃtica, que parte do texto literário para uma interpretação: a busca por uma imagem recalcada, a insinuação de um afeto Unheimlich. Em seguida, Birman vai falar da impossibilidade de a narradora “dar conta de sua tarefaâ€, nos termos de “um tÃpico contador de históriaâ€, deixando “lacunas em seu relato – permitindo que o leitor interprete ou complemente a história -, dividindo seu espaço com outros narradores e tratando a si mesma como uma personagem†(BIRMAN, 2007, p. 119). A autora cita Genette ao caracterizar a maneira como a narradora escolhe reproduzir esse outro discurso do qual ela abre mão: Os discursos dessas outras fontes são relatados, portanto, da forma mais mimética possÃvel, de acordo com a classificação e qualificação de Gérard Genette: em discurso direto, reproduzido pela narradora. E por meio da reprodução dos relatos de outrem nossa personagem os transforma em narradores, abrindo mão, aparentemente, de mediar a transmissão da história. (BIRMAN, 2007, p. 120) Apesar da referência em Genette, do ponto de vista narratológico, torna-se inviável descrever o fenômeno ocorrido na narrativa de Hatoum da maneira como a autora descreve: o narrador é a instância responsável pelo discurso da narrativa e pertence a ele a função de reproduzir o discurso das personagens, seja em discurso direto ou não. Mas, se a narradora é vista na condição de personagem, ela não pode conferir aos outros personagens o status de narrador. Mais uma vez, em um texto crÃtico, podemos observar a atenção sobre um fenômeno que pode ser melhor analisado com o aparato teórico metodológico da narratologia. Birman ainda coloca que a personagem aparentemente abre mão da mediação da história. A mediação dos discursos não seria uma tarefa do narrador? E quais implicações a análise por esse viés traria para a leitura e compreensão do texto narrativo? Quanto à questão das aspas que marcam o inÃcio e o fim de cada capÃtulo do romance e a aparente incoerência das aspas nos sexto e oitavo capÃtulos, a autora coloca o seguinte sobre a narradora: Com efeito, no sexto e oitavo capÃtulos do romance, ela isola a própria voz entre aspas, expondo a necessidade de criar um outro para falar, pois seu eu não coincide suficientemente com ele mesmo para que ela referencie o mundo com segurança e, desse modo, conte sua história com a certeza, ou a despreocupação, de que esta não constitui uma versão dos acontecimentos, repleta de interpretações, mal entendidos ou visões distorcidas da realidade. Ao vestir a máscara de um personagem, nossa narradora revela, simultaneamente, sua dificuldade de narrar a história de modo isento e uma preocupação em não enganar o leitor, em revelar o caráter ilusório, de construção, do relato que lemos. (BIRMAN, 2007, p. 128) Birman entende que a narradora reproduz a fala das personagens, mas expressa a “apropriação do discurso do outro por meio das aspas†(BIRMAN, 2007, p. 123). Tal explicação é possÃvel apenas por meio da interpretação. É preciso então sair do texto e lançar hipóteses para que se obtenha alguma resposta sobre o que ocorreu no texto. Haveria outra forma de compreender tal acontecimento, tomando por base uma análise do texto narrativo? Sobre a transposição das diferentes dicções das personagens que assumem a narrativa, Birman entra em discordância com Süssekind, não enxergando nesse aspecto um demérito no texto: “Diferentemente da crÃtica, não consideramos a enunciação da existência de uma única voz norteadora do Relato uma explicação de caráter quase didático, ou atravessada pela vergonha, proveniente da dificuldade detectada por ela em Hatoumâ€. (BIRMAN, 2007, p. 189). Birman lê o romance como “um jogo de encenação†e afirma que a dificuldade de narrar é da personagem, dificuldade essa vinculada a todas as questões filosóficas e psicanalÃticas apontadas pela autora ao longo da tese. Ela tira das mãos do autor a responsabilidade pela questão: Nossa interpretação, esclareçamos, independe do projeto original do autor, pois refere-se especificamente à obra final do romance, na qual identificamos tal jogo de encenação, e não à intenção de Hatoum. Desse modo, não nos interessa se ele falhou na execução de seu plano (e a encenação de nossa narradora diz respeito à s suas próprias dúvidas e soluções encontradas para reparar o estrago) ou se teve êxito na realização deste, sendo fiel a supostas intenções iniciais. (BIRMAN, 2007, p. 189-190) A importância que cada crÃtico dá para a ausência de mudança de estilo entre os capÃtulos varia de acordo com a abordagem teórica adotada. Birman não vê razão para se aprofundar no assunto, uma vez que as conclusões a que ela chegou não sofrem modificação caso esse aspecto do texto seja estudado. Ao afirmar que a narradora “não consegue dar conta da tarefaâ€, tomando, inclusive, por base o próprio discurso dela ao final do romance, toda e qualquer observação que se passa fazer sobre o texto é inútil. Confiar no discurso da narradora, acreditar que ela realmente gravou aquelas falas, a fim de usá-las na composição do relato pode se revelar uma grande ingenuidade se partirmos para uma análise do texto. A comparação entre o romance e As mil e uma Noites também está presente na tese de Birman. A referência é utilizada como uma relação certeira, como se fosse de fato explÃcita no romance: Outro modelo com o qual poderÃamos comparar esta reunião de vozes, o qual sem dúvida nenhuma o romance de Hatoum cita e se utiliza, consiste naquele das Mil e Uma Noites. Como se sabe, os relatos das Noites se desdobram em outras histórias que, por sua vez, introduzem novos personagens, com mais narrativas e personagens, e assim por diante. De acordo com o que exporemos logo adiante, nossa narradora se deixará perturbar pela potência reflexiva contida na estrutura em abismo das Noites, capaz de abalar a separação entre realidade e ficção. Chamamos a atenção, contudo, para uma distinção fundamental entre os dois modelos. Pois, nossa narradora não tece, como Sherazade, diferentes histórias, mas várias versões, rememorações e relatos a respeito da mesma história (BIRMAN, 2007, p. 123) A relação entre Relato de um certo Oriente e o clássico As Mil e uma Noites acabou se tornando um consenso entre os crÃticos do romance, de tão frequente e repetida que é a referência. Em todos os trabalhos, pelo menos em algum momento, a obra árabe é mencionada, ainda que nunca se tenham realizado antes um estudo comparativo entre os textos12. A relação se construiu por essas vias: Milton Hatoum é descendente de árabes, o romance fala de uma famÃlia de origem árabe; a história é construÃda graças aos relatos dos personagens que aparecem reunidos pela narradora que tenta formar um único relato. A obra As Mil e uma Noites, como chegou até nós aqui no Ocidente, é um texto escrito, em que a tradição das narrativas orais aparece representada na figura da Sherazade, que passa a narrar histórias com a finalidade de entreter a irmã e o marido, evitando a própria morte. Mesmo não sendo o objetivo desse trabalho comparar metodologicamente os dois textos, não se pode deixar de apontar pelo menos três pontos que impediriam uma relação tão apressada entre eles, como tem feito crer a crÃtica. 12 Marcos Frederico Krüger Aleixo foi quem mais se aproximou de um estudo assim. Escreveu o texto O mito de origem em Dois irmãos na já mencionada coletânea Arquitetura da Memória, de Maria da Luz Cristo, porém, o estudioso não fez um trabalho comparativo de fato, não trabalhou com a leitura dos dois textos, ficando no nÃvel das relações superficiais que existem entre eles. Em primeiro lugar, a narradora do Relato de um certo Oriente recolhe os relatos para mandar informações para o irmão sobre um espaço e pessoas que fizeram parte da infância compartilhada por eles, e os reúne todos para dar sentido à história de vida dela mesma, uma vez que se encontrava doente em uma clÃnica psiquiátrica. Apesar dos problemas, a narradora não sofre nenhum tipo de subjugação pela sua condição de mulher. Ela não lutava literalmente para sobreviver, ganhar mais um dia de vida, ao juntar esses relatos, como fazia Sherazade, que dependia da sua posição de narradora para garantir um dia seguinte, como se pode ler: Foi até a irmã mais nova, DÄ«nÄrzÄd, e lhe disse: Minha irmãzinha, preste bem atenção no que vou lhe recomendar: assim que eu subir até o rei, vou mandar chamá-la. Você subirá e, quando vir que o rei já se satisfez em mim, diga-me: ‘Ó irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma historinha’. Então eu contarei a vocês histórias que serão o motivo da minha salvação e da liberdade de toda esta nação, pois farão o rei abandonar o costume de matar suas mulheresâ€. A irmã respondeu: “Simâ€. (As mil e uma Noites, 2005, p. 56) Sabe-se também que a obra As mil e uma Noites, como a conhecemos, é uma espécie de invenção ocidental, pois esta não é uma obra oriental pronta e acabada que simplesmente foi descoberta e traduzida para os paÃses ocidentais. O pesquisador francês Antoine Galland (1646-1704), interessado nas narrativas orais que conheceu ao longo de sua estadia pelo Oriente, acrescentou, inclusive, histórias que nem constavam no “original†e trouxe a novidade em 1704 para a França, onde a obra foi muito bem recebida e prestigiada. Tendo se tornado um imenso sucesso, As mil e uma Noites ganhou uma infinidade de traduções para outros idiomas, tornando-se uma obra reconhecida por todos como um clássico do mundo oriental13. Sabendo disto, de que maneira melhor poderia se pensar uma relação entre tal obra e o romance de Hatoum, sem cair no lugar comum de um parentesco árabe entre os dois textos? 13 Isso para resumir a história extremamente complexa que é a de As Mil e uma Noites. Paulo Horta, professor assistente de Literatura, de NYU-Abu Dhabi, em uma interessante entrevista para Harvard X, conta detalhes sobre o seu trabalho com a obra, que foi recebendo textos e mais textos ao longo de sua existência. Agradecemos ao colega José Francisco da Silva Queiroz pela referência. Se não se critica por essas vias, pode-se falar, também, da nada aparente, semelhança entre as formas como os relatos organizados pela narradora do romance de Hatoum e as histórias narradas por Sherazade estão dispostas cada uma em suas respectivas obras: DÄ«nÄrzÄd pigarreou e disse: “Minha irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma de suas belas historinhas com as quais costumávamos atravessar nossos serões, para que eu possa despedir-me de você antes do amanhecer, pois não sei o que vai lhe acontecer amanhãâ€. Å ahrÄzÄd disse ao rei Å ÄhriyÄr: “Com a sua permissão eu contareiâ€. Ele respondeu: “Permissão concedidaâ€. Å ahrÄzÄd ficou contente e disse: “Ouçaâ€. O narrador de As mil e uma Noites não participa da história que conta. Quando as personagens Dinazard, Sherazade e Shariar falam em discurso direto, essas falas são introduzidas entre aspas. Nesse sentido, a distinção entre o discurso do narrador e das personagens é muito bem marcada no texto. Do momento em que Sherazade diz “ouçaâ€, em diante, ocorre uma divisão no texto: muda-se o parágrafo e aparece uma indicação do primeiro conto a ser narrado pela personagem, assim: Iª O mercador e o gênio Disse Å ahrÄzÄd: conta-se, ó rei venturoso, de parecer bem orientado, que certo mercador vivia em próspera condição, com abundantes cabedais, dadivoso, proprietário de escravos e servos, de muitas mulheres e filhos; em muitas terras ele investira, fazendo empréstimos ou contrariando dÃvidas... (As mil e uma Noites, 2005, p. 56) Sherazade sai da condição de personagem e se torna narradora, porque ela introduz uma outra narrativa e conta uma nova história, a do mercador e o gênio. Em relação à essa história do mercador e do gênio, ela assume a posição de narradora, mas em relação Às Mil e uma Noites, Sherazade não deixa de ser personagem, tanto que, no inÃcio do conto do mercador, o narrador avisa que dará a palavra à personagem Sherazade: “Disse Å ahrÄzÄdâ€. Para compreender, narratologicamente, a questão vale a pena ver como Gérard Genette categorizou a situação de Sherazade em seu trabalho, O discurso da narrativa. Genette expõe um quadro, a fim de sistematizar o estatuto do narrador, levando em conta o nÃvel narrativo em que ele se encontra e a presença ou ausência dele em relação à história que conta. Nesse sentido, Sherazade, dentro da terminologia de Genette, é narradora “intradiegéticaâ€, pois encontra-se no interior da diegese de As mil e uma noites, e é “heterodiegéticaâ€, por não estar presente nas histórias que narra. (GENETTE, 1995, p. 247) Situação completamente diferente acontece em Relato de um certo Oriente, em que todos os capÃtulos são apresentados por um “eu†que participa da história que conta. No romance de Milton Hatoum, o discurso da narradora e as falas das personagens são expressos a partir de seus “próprios pontos de vistaâ€. Inicialmente, a narradora, apesar de inominada, tem seu papel bem marcado, porém, depois, ela dá a palavra aos demais personagens e cada um deles, ao falar, imediatamente se coloca dentro do discurso e da história. Não se pode falar e repetir, portanto, que a narrativa do romance de Hatoum e a d’As mil e uma Noites se assemelham. No mÃnimo, é necessário reconhecer os diferentes estatutos assumidos tanto pela narradora do romance quanto por Sherazade. 2.2 A Narratologia como proposta teórica para este estudo O levantamento da crÃtica contribui para a identificação do que ainda é necessário fazer para o melhor conhecimento do texto literário. As inúmeras possibilidades de associálo a outros textos literários e de estudá-lo segundo variados referencias teóricos não diz nada além do que todo estudioso de literatura já sabe: a Literatura guarda, em si, enorme potencial de desdobramentos sobre as questões humanas e de diálogo com outras áreas do conhecimento. Porém, sendo ela constituÃda de texto, é fundamental que a crÃtica também examine com atenção essa construção, isto é, a própria narrativa do romance. Ainda que muitos trabalhos apontem como intenção o estudo da estrutura narrativa, é possÃvel notar nessas abordagens um distanciamento da ideia de um estudo do texto, principalmente, porque as teorias escolhidas não acolhem o problema de forma devida, levando a discussão a se desprender do texto. Nesse sentido, a Narratologia aparece aqui como teoria e apoio ao estudo do texto, preenchendo as lacunas deixadas pelos trabalhos já produzidos sobre a obra. Essa teoria será nossa guia para a leitura do romance e nos fornecerá os conceitos que fundamentarão toda a análise. Bem sabemos que, antes de iniciar essa análise, cabe apresentar brevemente um panorama da situação do debate em torno dessa teoria. Afinal, além de ter contribuÃdo com terminologias e conceitos, tais como as tipologias de narrador e conceitos de espaço, tempo, personagem, enredo, como essa teoria desenvolveu seus métodos ao longo do tempo? Em artigo recente, publicado em 2017, Da Análise Estrutural da Narrativa (1966) à Narratologia, de Wolf Schmid (2014). Um breve histórico (também da Terra brasilis), Gunter Pressler relembra a mobilização de estudiosos em torno dessa teoria: a publicação da Revista Communications nº 8, em 196614, trazendo artigos de autores que compartilhavam das ideias fundamentadas pelo Estruturalismo francês, interessados no estudo da narrativa. A inquietação de Roland Barthes em torno de algo tão numeroso e presente na vida do homem, a narrativa, abre caminhos para os outros textos em sequência, particularmente, o de Tzvetan Todorov, que é quem emprega o termo Narratologia15pela primeira vez. A reflexão de Barthes presente no texto Introdução à análise estrutural da narrativa chama a atenção para a necessidade de se teorizar o estudo da narrativa. 14 No Brasil, a primeira tradução desse conjunto de textos ocorre em1976. 15 “O livro observa uma ciência que ainda não existe, vamos chamá-lo narratologia, a ciência da narrativa†(TODOROV, T. A Gramática do Decameron, trad. bras. Leyla Perrone-Moisés, 1982, p. 10) 16 Vale lembrar o encontro entre o antropólogo Claude Lévi-Strauss e o linguista Roman Jacobson. Por causa da Segunda Guerra Mundial, Lévi-Strauss viveu entre 1941 e 1947 nos Estados Unidos. “Foi em Nova York que se deu o encontro de Lévi-Strauss com o linguista russo Roman Jakobson – criador do método de análise estrutural da linguagem -, que determinou a ‘cristalização’ do estruturalismo no pensamento do antropólogo, como afirma Emmanuelle. A historiadora reproduz a lembrança de Lévi-Strauss: ‘Na época eu era estruturalista ingênuo. Eu praticava o estruturalismo sem saber. Jakobson me revelou a existência de um corpo de doutrina já constituÃdo numa disciplina que eu jamais praticara: a linguÃstica. Para mim, foi uma iluminação†(Roberto S.G.Castro sobre a biografia do antropólogo da autoria de Emmanuelle Loyer (https://jornal.usp.br/cultura/livro-mostra-em-detalhes-a-trajetoria-de-claude-levi-strauss/acesso 31/10/2020). Para descrever e classificar a infinidade das narrativas, é necessário pois uma teoria (no sentido pragmático do qual se acabou de falar), e é para pesquisá-la e esboçá-la que é preciso inicialmente trabalhar. A elaboração desta teoria pode ser grandemente facilitada se, desde o inÃcio, ela for submetida a um modelo que lhe forneça seus primeiros termos e seus primeiros princÃpios. No estado atual da pesquisa, parece razoável dar como modelo fundador à análise estrutural da narrativa a própria linguÃstica. (BARTHES, 2008, p. 22) Assim, em princÃpio, o estudo da narrativa, pensado no momento em que o Estruturalismo se fazia presente no debate acadêmico de Letras16, parte da ideia da existência de uma estrutura narrativa e de um procedimento dedutivo para o seu estudo, já que são incontáveis as narrativas no mundo. Assim como a linguÃstica é uma ciência dedutiva, os estudos narrativos seguiriam, portanto, a mesma linha, reflete Barthes. Nesse sentido, partindo de um modelo hipotético de descrição, seriam identificadas, pouco a pouco, espécies variadas de narrativas que ou se encaixariam ou se afastariam do modelo paradigmático. Esse procedimento que funcionaria como um instrumento único de descrição levaria o cientista ao encontro da pluralidade de narrativas com sua diversidade história, geográfica, cultural. A ambição teórica de Barthes em torno dos estudos da narrativa o leva a esboçar nesse texto um caminho para uma teoria, dentro do que a linguÃstica oferecia como ferramenta. Na primeira das cinco partes em que ele divide o seu texto, Barthes parte da ideia de que a narrativa é uma grande frase, dado que a frase é o limite até onde a linguÃstica alcança e toma de empréstimo a contribuição dessa ciência para o princÃpio de uma análise estrutural da narrativa: o conceito de nÃvel de descrição. Ele explica, adotando uma perspectiva integrativa, que assim como a frase pode ser descrita linguisticamente em nÃveis fonético, fonológico, gramatical, contextual, totalmente hierárquicos, uma vez que suas unidades não tomam significação sozinhas, a narrativa também pode ser descrita segundo nÃveis que ele mesmo estabelece provisoriamente. Qualquer que seja o número dos nÃveis propostos e qualquer definição que se dê, não se pode duvidar de que a narrativa seja uma hierarquia de instâncias. Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da história, é também reconhecer nela ‘estágios’, projetar os encadeamentos, horizontais do ‘fio’ narrativo sobre um eixo implicitamente vertical; ler (escutar) uma narrativa não é somente passar de uma palavra a outra, é também passar de um nÃvel a outro (BARTHES, 2008, p. 26-7) Nesse ponto do texto, Barthes lança as bases do que seria uma análise estrutural da narrativa: saber que o trabalho em torno dela não se esgota através da compreensão da história, mas captar as unidades, isto é, “todo segmento da história que se apresenta como o termo de uma correlação†(BARTHES, 2008, p. 28). Nesse sentido, toda narrativa seria constituÃda de unidades narrativas mÃnimas e o princÃpio de cada unidade é a sua significação, o seu caráter funcional dentro dos segmentos da história. Nesse sentido, Barthes afirma que a narrativa só se compõe de funções, isto é, de unidades de conteúdo, que se encontram estabelecidas em diferentes graus, determinados por seus significados dentro da história: Isto não é uma questão de arte (da parte do narrador), é uma questão de estrutura: na ordem do discurso, o que se nota é, por definição, notável: mesmo quando um detalhe parece irredutivelmente insignificante, rebelde a qualquer função, ele tem pelo menos a significação do absurdo ou de inútil: ou tudo significa ou nada. Poder-se-ia dizer de uma outra maneira que a arte não conhece o ruÃdo (no sentido informacional da palavra) é um sistema puro, não há, não há jamais unidade perdida, por mais descuidado, por mais tênue que seja o fio que a liga a um dos nÃveis da história. (BARTHES, 2008, p. 29) Defendendo a ideia de que todo e qualquer detalhe, a presença de um simples objeto ou um acontecimento sem grande importância, em uma narrativa tem uma função e ainda uma significação, Barthes propõe uma forma de determinar as primeiras unidades narrativas e estabelece duas grandes classes para elas: Funções e Ãndices. Dentro da classe das funções, ele define mais outras duas, as cardinais e as catálises. Sobre a primeira, ele explica: “Para que uma função seja cardinal, é suficiente que a ação à qual se refere abra (ou mantenha, ou feche) uma alternativa consequente para o seguimento da história, enfim que ela inaugure ou conclua uma incerteza†(BARTHES, 2008, p. 33), daà se pode tirar alguns exemplos para ilustrar: a chegada de alguém, o toque de um telefone, um som do toque na porta. Já as catálises seriam as unidades responsáveis pela consequência que aparece consecutivamente em relação à s unidades narrativas de função cardinal. Estas funções podem ser à primeira vista muito insignificantes; o que as constitui não é o espetáculo (a importância, o volume, a raridade ou a força da ação enunciada), é, se pode ser dito, o risco: as funções cardinais são os momentos de risco da narrativa; entre estes pontos da alternativa, entre estes dispatchers, as catálises dispõem de zonas de segurança, de repousos (BARTHES, 2008, p. 34) A segunda grande classe de unidades narrativas, os Ãndices, diferentemente das funções, são constituÃdos por unidades que não podem ser complementadas, como ocorrem nas relações de consecução e consequência. Os Ãndices têm significados implÃcitos, implicam uma atividade de deciframento, revelam uma atmosfera, um sentimento, um caráter de uma personagem. Barthes, nesse sentido, ao procurar estabelecer essas classes de unidades, chega a uma sintaxe funcional da narrativa, ponto em que ele se questiona como se encadeiam essas unidades narrativas e quais seriam as suas regras da combinatória funcional. Desse momento em diante, abre-se o diálogo com os outros estudiosos que, paralelamente a Barthes, também se ocupavam do estudo estrutural da narrativa. Barthes apresenta as pesquisas e visões adotadas por A. J. Greimas, C. Bremond e T. Todorov e reconhece a necessidade de muitos desdobramentos em torno dos problemas que envolvem o desenvolvimento de uma análise estrutural, tomando a LinguÃstica uma ciência parâmetro. Entre essas necessidades, Barthes fala em alcançar uma descrição estrutural da ilusão cronológica da narrativa, uma vez que a análise estrutural empreendida por Lévi-Strauss, Greimas, Bremond e Todorov parte do princÃpio do estudo da lógica narrativa, que não obedece à ideia de tempo do mundo real, isto é, a narrativa não segue uma ordem cronológica ideal. Outra questão não alcançada por essa proposta de análise, apontada por Barthes, é a classificação das personagens da narrativa, a não compreensão do lugar do sujeito da matriz actancial, uma vez que o valor, a importância da personagem está no seu papel de actante, de desenvolvedor das ações e, numa mesma história, na maioria das vezes, há mais de um actante. A leitura dos textos que compuseram a nº 8 da Revista Communications hoje dispostos no livro Análise Estrutural da Narrativa (2008 [1976]) favorece a compreensão do impacto desses estudos e das diferentes linhas de interesse surgidos dentro da proposta de uma análise estrutural da narrativa. Dos autores que discutem a questão, os nomes que mais se projetaram e deram continuidade a essa pesquisa que muito impulsionou os Estudos Literários foram o de Todorov e o de Gérard Genette que, tomando por base as proposições de Todorov, desenvolveu a sua proposta de análise da narrativa17 segundo as categorias verbais: tempo, modo, pessoa, voz. São os resultados das reflexões teóricas desses dois que alimentaram o arcabouço dos estudos da narrativa. Essa retomada ao “ano-luzâ€, momento em que desponta a Narratologia, feita por Gunter Pressler em seu artigo, chama a atenção para os grandes centros de estudo que se desenvolveram depois daquele impulso. 17 O estudo foi publicado no livro Figuras III de Genette, em 1972, que trazia um conjunto de textos sobre crÃtica, poética, retórica, um trabalho sobre Marcel Proust, mais o “Discurso da Narrativaâ€, que nada mais é do que a aplicação do método de análise de Genette ao romance No caminho de Swann, de Proust. Posteriormente, o mesmo estudo ganha uma edição fora do Figuras III com o tÃtulo O Discurso da Narrativa, traduzido em Portugal, 1978, 3ª ed. 1995. O que era um ensaio de 41 páginas, o de Barthes, em 1966, perspectivou juntamente com outros estudos da revista, o de Todorov (“As Categorias da Narrativa Literáriaâ€) e o de Genette (“Fronteiras da Narrativaâ€) uma nova vertente teórica, a Narratologia, que incentivou dezenas de pesquisas e projetos, por exemplo, o Interdisciplinary Centre for Narratology (Centro Interdisciplinar para Narratologia), na Universidade de Hamburgo. Os resultados de quatro décadas estão no livro de Wolf Schmid (2014; edições anteriores em russo, alemão e inglês), possibilitando diferenciações e caminhos verticais de pesquisa e mais de 70 livros publicados pelo grupo até hoje (meados do ano de 2017) (PRESSLER, 2017, p. 104) Refazer o percurso da linha de pensamento que construiu as bases da Narratologia ajuda a entender como esse campo do conhecimento se estabeleceu e ganhou espaço dentro das ciências humanas, já que a criação de centros interdisciplinares aponta o diálogo e as mais variadas relações entre Narratologia e outros áreas de conhecimento e estudo (filosofia, cinema, teatro, fotografia, jogos eletrônicos, direito, jornalismo etc.). A Narratologia não ficou presa à ciência que lhe deu o primeiro impulso, ou sopro de vida. As preocupações de uma análise narratológica já não são as mesmas postuladas por Barthes, uma vez que a concepção de texto, sobretudo narrativo, ganhou novas leituras e o olhar sobre as instâncias participantes da construção de uma obra literária também, como por exemplo, as reflexões em torno do autor e de seu lugar no estudo de uma determinada obra; a figura do narrador, e suas mais variadas formas de leitura, principalmente filosóficas; a condição das personagens as quais ganharam importância e tiveram sua leitura amplificada, assumindo a condição de ser ontológico. A abertura dada à linha de alcance da Narratologia foi tão grande com o avançar dos anos que ela de fato hoje não se restringe aos textos narrativos literários, muito embora nesse estudo deixemos claro a linha de pensamento e de estudo que iremos seguir. No Brasil, o debate em torno das contribuições da Narratologia encontrou no trabalho do professor de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, Massaud Moisés, um ponto de interlocução, uma vez que, partindo da classificação por gêneros (conto, novela, romance), o autor discute justamente os elementos básicos da narrativa: estrutura, ação, tempo, espaço, personagens, usando como exemplos textos narrativos da nossa literatura. A seguir, Pressler: Massaud Moisés publica, em 1967, seu caderno de ensino da história e teoria literária, elaborado desde março de 1952, quando iniciou sua atividade de docência (“Prefácio da 1ª ed.â€, escrito em 26 de agosto de 1965), da Criação Literária, que está hoje na 20ª ed., com pequenas modificações, mas é o mesmo “manual da sua atividade de docente†desde a primeira publicação, em 1958, como “balão de ensaioâ€. (PRESSLER, 2017, p. 105) Ao lembrar o contexto de publicação de A criação Literária de Massaud Moisés, Pressler chama a atenção para o fato de que a discussão não se atualizou desde a década de 1960 e que, ao que parece, a Narratologia não encontrou um terreno fecundo para grandes diálogos no Brasil. Sendo um “livro didático, foi muito esclarecedor [...] as reedições devem chegar, finalmente, ao limite, seu limite epistemológico, pois usar a literatura crÃtica ultrapassada, que tem um valor bastante informativo e descritivo, não é mais considerável†(PRESSLER, 2017, p. 106). A falta de diálogo não diz respeito ao desconhecimento do que se estava discutindo nos centros de Narratologia, mas à falta de discussão crÃtica que pudesse partir das referências, Tzvetan Todorov e Gérard Genette... Nesse sentido, Pressler menciona o trabalho de Flávio Kothe, A Narrativa Trivial (1994), que trata a respeito da “literatura de massaâ€, mas que “se preocupa com o discurso ideológico e não ‘narratológico’†(PRESSLER, 2017, p. 106); e o trabalho de Luiz Gonzaga Motta, Análise crÃtica da narrativa (2013), a quem são dirigidas crÃticas contundentes: “Em vez de estudar a literatura crÃtica, publicada desde o ‘ano-luz’ de 1966, depois com Todorov, Motta se volta para aquele tempo que inventou ainda a roda da teoria literária (Aristóteles e companhia)†(PRESSLER, 2017, p. 106). Ainda em sua leitura do trabalho de Motta, continua: No capÃtulo 3, intitulado “A teoria da narrativa – Narratologiaâ€, Motta inicia com a seguinte frase: “O que é narrar? Narrar é relatar eventos de interesse humano enunciados em um suceder temporal encaminhado a um desfechoâ€. Eu digo: “narrar†não é “relatarâ€! Sabe-se desde a graduação que se classifica vários gêneros ou tipos textuais, mas três modos de “enunciaçãoâ€: narrar, descrever e dissertar. O dicionário diz (o dicionário se ocupa com as palavras e não com as teorias): “v.t. Narrar, expor: relatar o ocorrido. Apresentar relatórioâ€. Para um cientista, o Dicionário é uma fonte de informação, não a autoridade em definir o assunto em questão e nem uma referência para analisar textos. (PRESSLER, 2017, p. 106) A crÃtica recai sobre a falta de rigor cientÃfico no emprego de conceitos que já se encontram estabelecidos dentro de uma discussão crÃtica pré-existente, o que requereria no mÃnimo a retomada das principais referências em torno do assunto. Outro aspecto importante para o aquecimento de um debate cientÃfico é a tradução dessas importantes referências e consequentemente diálogo com elas: Os trabalhos fundamentais de Genette, “Discours du Récitâ€, no livro Figuras III (1972), traduzido em Portugal (1978), e Nouveau Discourse du Récit (1983), não foram traduzidos no Brasil. A única fonte destes termos do pensamento de Genette, em português, é o livro traduzido sob orientação de Maria Alzira Seixo, em 1978, e o Dicionário de Teoria da Narrativa (1988, na editora Ãtica; saiu em Portugal, em 1987), de Carlos Reis e Ana Cristina M.Lopes. (PRESSLER, 2017, p. 108) A carência de traduções no Brasil só não causou maiores danos ao debate em lÃngua portuguesa, porque em Portugal trabalhos significativos foram feitos. O professor Carlos Reis18, que inclusive trabalha e direciona boa parte de sua pesquisa dentro da perspectiva de Gérard Genette, é referência no paÃs. Sua famosa publicação de 1988, Dicionário de Teoria da Narrativa19, em parceria com Ana Cristina M. Lopes, foi quem popularizou, podemos dizer, a terminologia de Genette entre nós, brasileiros. Ainda assim, as observações de 18 O projeto Figuras da Ficção, do Centro de Literatura Portuguesa, coordenado por Carlos Reis, na Universidade de Coimbra, teve inÃcio em 2012 e promove a cada dois anos colóquios internacionais. O projeto também conta com pesquisadores portugueses e brasileiros e elegeu a personagem, especialmente a romanesca, como categoria central de suas pesquisas em Literatura Portuguesa. O material produzido pelo projeto encontra-se disponÃvel no blog https://figurasdaficcao.wordpress.com/, tal como o Dicionário de Personagens de Ficção Portuguesa em construção. 19 Sob o tÃtulo Dicionário de Estudos Narrativos, Carlos Reis, agora sem a parceria com Ana Cristina M. Lopes, publicou uma nova edição do trabalho em 2018, pela editora Almedina. Os verbetes de autoria de A. C. M. Lopes foram mantidos e identificados. Pressler pesam muito sobre a falta de diálogo com outros textos de autores/autoras no Brasil, o que faz o autor do artigo destacar a: grande lacuna de estudos narratológicos stricto sensu, no Brasil, diante da velocidade e produtividade dos estudos no exterior desde a década de 1970 (Genette, 1972, 1983, 1991; Schmid, 1973, 2003 (russo), 2005, 2008, 2014 (alemão, edições sempre atualizadas e ampliadas), 2010 (inglês); S.Rimmon- Kenan, 1976; M.Bal, 1977, 1985; S.Chatman, 1978; D.Cohn, 1978, 1995; G.Prince, 1982, 1987; S.Lanser, 1986, 1987). A produção se triplicou na década de 1990. (PRESSLER, 2017, p. 108) E quando houve menção em fazer esse diálogo, a discussão não correu em linguagem objetiva, lógica, sem a devida profundidade exigida pelo pensamento cientÃfico. Pressler exemplifica a questão, citando trechos desses trabalhos utilizados como referência para os estudos da narrativa e mostra como eles discutem conceitos-chaves para a narratologia: narratividade e eventos. Ao final, constata há “abordagens sem conhecimento da literatura crÃtica. Não se trata de uma definição ou de um discurso cientÃfico, ao contrário, trata-se daquilo que se chama ‘falácia’ no modo narrativo†(PRESSLER, 2017, p. 108). O autor ainda fala da necessidade de se “provar eficazmente o que se alega, argumentar, e não só convencer de modo implÃcito†(PRESSLER, 2017, p. 108), pois isso é o que caracteriza o discurso cientÃfico. Presley conclui e justifica o emprego da palavra “falácia†ao lembrar da crÃtica feita por Wolfgang Ser à forma tradicional do ato da interpretação literária e crÃtica. Ser “parte da observação de W.K.Wimsatt e M.C.Beardsley sobre o que eles chamam a ‘affective fallacy’, termo que indica o desaparecimento da obra diante da ‘confusão entre a obra (the poem) e seus resultados (what is and what it does – the poem)’ (PRESSLER, 2017, p. 109). O estudioso resgata o esclarecimento de Iser sobre os atos de leitura de textos literários, sobretudo esses, e sobre o fato de crÃticos executarem ou criarem atos de determinação. O problema ocorre quando o intérprete ou mesmo os crÃticos não leem os textos fora de seus atos de determinação. O resultado é uma confusão entre as qualidades das determinações executadas pelo próprio texto e o texto em sua natureza, isto é, leituras tendenciosas, a “affective falacyâ€. Se esse fenômeno acontece inevitavelmente, uma vez que os textos forçosamente levam seu intérprete a encaixá-los em certas determinações, é de extrema importância que o crÃtico esteja consciente disso, a fim de alcançar resultados satisfatórios. Pressler sintetiza: O que vale para as leituras de textos literários vale para a dos textos teóricos. Eles são lidos de forma afetiva, i.e., já se compreende o que o texto quer dizer sem um desdobramento crÃtico sobre o debate em que o texto surgiu. Neste caso, a Narratologia não se compreende sem o histórico do seu aparecimento e desenvolvimento. (PRESSLER, 2017, p. 109) As articulações de Pressler estão de acordo com a proposta desse trabalho, uma vez que o levantamento do material crÃtico sobre o romance de Milton Hatoum apontou, em muitos casos, leituras tendenciosas e, por que não dizer afetivas? Contribuiu ainda para justificar por que não existe uma leitura mais aprofundada do texto, pautada em análises mais ajustadas à s condições e caracterÃsticas da própria narrativa. Mas, ao fazer crÃticas ao atraso brasileiro em relação ao debate em torno dos estudos da narrativa, o autor também aponta uma referência que, apesar de pouco conhecida em função da carência de traduções, prestou grande serviço ao novo pesquisador que deseja entrar em contato com décadas de discussão teórica: Wolf Schmid, o fundador do Interdisciplinary Centre for Narratology (Centro Interdisciplinar para Narratologia), na Universidade de Hamburgo e cofundador do European Narratology Network (ENN). Wolf Schmid nasceu na Alemanha, é professor emérito de Literatura Eslava na Universidade de Hamburgo. Autor de trabalhos sobre a prosa de ficção de autores russos, como Pushkin, Dostoevsky, Chekhov, Tolstói, Andrej Bitov e da prosa russa da década de 1970, Schmid é um teórico bastante reconhecido na Rússia e principal referência em Narratologia. Seu primeiro livro sobre a teoria foi publicado primeiramente na Rússia, em 2003, e somente em 2005 saiu na Alemanha. O trabalho, tanto em russo quanto em alemão ganhou uma segunda edição em 2008, revista e ampliada. Em 2014, saiu a terceira edição somente em alemão. A edição em inglês foi publicada em 2010 nos Estados Unidos e traduzida a partir da segunda edição do alemão. Diante da necessidade de contribuir para a discussão no Brasil, o Grupo de Pesquisa ANA (Amazonia – Narratologia – Anthropocene), formado pelo coordenador professor Dr. Gunter Karl Pressler e por um grupo de professores e estudantes de pós-graduação, trabalha na tradução da terceira edição do livro em alemão (2014) para o português. O livro em questão está organizado em cinco capÃtulos: CaracterÃsticas do narrar na obra ficcional; As instâncias da obra narrativa; A perspectiva do narrar; O texto do narrador e o texto das personagens; A constituição narrativa: acontecimentos – história – narrativa – apresentação da narrativa. Nosso estudo analÃtico segue a proposta de Schmid, partindo das lacunas ainda existentes nos estudos do romance de Milton Hatoum. Nesse sentido, ao mesmo tempo em que desejamos apresentar e inaugurar uma discussão em torno dessa abordagem teórica, precisamos partir das questões suscitadas pela leitura do romance e dos textos da crÃtica. Daremos ênfase, portanto, nas instâncias da obra narrativa, na perspectiva, no texto do narrador e no texto da personagem, porque encontramos nesses capÃtulos toda a fundamentação que sustenta a análise narratológica de Relato de um certo Oriente. 2.3 Primeiras considerações: Narratividade, Eventualidade, Ficcionalidade Tomaremos essas primeiras categorias apresentadas por Wolf Schmid em seu livro Elementos da Narratologia, para nos ajudar a pensar sobre os acontecimentos narrados no romance em estudo. Narratividade e Ficcionalidade não são apresentadas aqui com o intuito de defender o status do nosso objeto de estudo: a condição fundamental de um romance é a narratividade e que o mundo representado nela é fictÃcio. Quanto a isso não há o que questionar. Mas apresentar esses termos contribuem para o encaminhamento de uma coerência terminológica e metodológica sobre as quais esse trabalho se fundamenta. Daà a necessidade de começar do princÃpio. A categoria Evento é apresentada também com o mesmo intuito, porém será lembrada ao longo de nossa análise, que se seguirá nas próximas seções desse trabalho. As questões que envolvem a compreensão do evento irão ajudar nossa leitura sobre os acontecimentos presentes na narrativa do romance. Uma das primeiras definições feitas por Schmid é a de narratividade, conceito basilar para o desenvolvimento de uma teoria da narrativa. Partindo dessa primeira definição, ele estabelece o que será considerado texto narrativo, ou seja, o que constituirá a narratividade do texto. Lembrando o conceito clássico dado pelos crÃticos alemães, concedendo a devida notoriedade a Käte Friedemann (1874 – 1949), Schmid recorda que o que definia a narratividade do texto era a presença de um mediador entre o autor e o mundo narrado, isto é, a presença de um narrador como instância mediadora. Nesse sentido, tal concepção incluÃa relatórios de viagem, textos puramente descritivos e excluÃa textos lÃricos, dramáticos e cinematográficos, por exemplo. Já na narratologia estruturalista, com Tzvetan Todorov, a narratividade não estava na forma como o texto era comunicado, nem em qualquer aspecto do discurso, mas naquilo que era narrado. Era necessário, portanto, identificar a representação de mudanças de estado e uma estrutura temporal, para que se identificasse a narratividade de um texto, e se pudesse com isso também distinguir um texto narrativo de um descritivo. A concepção estruturalista inclui representações em qualquer meio, na medida em que elas mostram mudanças de estado, mas excluem representações cujas referências não possuem uma estrutura temporal e, consequentemente, não contém quaisquer mudanças de estado. Portanto, o drama e a poesia lÃrica são também considerados narrativos, na medida em que as mudanças de estado estejam neles retratados. (SCHMID, 2010, p. 2) Tratava-se, como se pode ver, de uma concepção pouco discriminatória, uma vez que até mesmo a poesia lÃrica cabia dentro desse critério. Ao contrário da concepção clássica, na narratologia estruturalista, não se fazia distinção entre as narrações com ou sem instância mediadora: havia somente uma separação entre os textos narrativos mediados e os textos narrativos miméticos. Sem excluir a contribuição dada pelas duas concepções anteriores, Schmid propõe uma definição de Narratividade. A condição mÃnima da narratividade é que, pelo menos, uma mudança de estado deve ser representada em um determinado tempo. O exemplo famoso de Edward Morgan Forster de uma história mÃnima é ainda extenso demais. Forster (1927) cunhou o exemplo: “O rei morreu e então a rainha morreu.†Gérard Genette (1983, 15) apontou que, para uma história mÃnima, é o suficiente possuir o simples “O rei morreuâ€. (SCHMID, 2010, p. 2-3) “O rei morreu†pode ser um exemplo de uma história mÃnima, porque para a narratividade é suficiente que a mudança seja implÃcita: se o rei morreu, passou do estado de vivo para morto. Então, Schmid postula três condições para que a mudança de estado constitua a narratividade: (1) Uma estrutura temporal com pelo menos dois estados, a situação inicial e a situação final (o rei vivo e o rei morto). (2) A equivalência das situações iniciais e finais e a presença de uma similaridade e um contraste entre os estados, ou mais precisamente, a identidade e a diferença das propriedades desses estados (estar vivo e estar morto formam uma equivalência clássica). (3) Em ambos estados, a mudança que ocorre entre os dois deve se relacionar ao mesmo sujeito que age e que sofre e ao mesmo elemento do setting (em nosso caso, é o pobre rei). (SCHMID, 2010, p. 3) Então para haver narratividade é necessário uma estrutura temporal que apresente uma situação inicial e final, e que ambas contenham uma equivalência, e que possam estar relacionadas ao mesmo sujeito. Mas a mudaça de estado é apenas uma condição da narratividade: quantas mudanças seriam necessárias para se ter uma história? Como bem lembrou o que dissera Genette, Schmid explica que para se ter uma história basta uma mudança de estado e que a diferença entre as duas seja a extensão. As mudanças de estado formam um subgrupo da história. Assim como representam as mudanças de estado, que são elementos dinâmicos, uma história inclui elementos estáticos, que são os estados ou as situações em si, os contextos temporais e espaciais (settings). Portanto, por necessidade, a representação de uma história reúne os componentes dinâmicos e estáticos que abrangem os modos textuais narrativos e descritivos. (SCHMID, 2010, p. 5 ) A mudança de estado é condição para se ter uma história, mas considerando as mudanças de estado, formada por elementos dinâmicos, um subgrupo da história, entendemos que uma história não é constituÃda apenas por mudanças de estado. Daà Schmid explicitar que, por necessidade, a representação de uma história também envolve elementos estáticos, que caracterizarão a presença do modo descritivo. Como representam situações estáticas, os textos descritivos são opostos aos textos narrativos, entretanto, os limites entre eles é fluido. Schmid coloca, então, que a decisão sobre a categorização de um determinado texto é questão de interpretação, sendo, em muitos casos, o critério da predominância um modo de se chegar a uma conclusão. Em relação aos textos miméticos e mediados, a proposta de Schmid considera essa subdivisão, porém deixa claro que a sua teoria diz respeito apenas aos textos narrativos mediados, ou seja, à queles que apresentam uma história e a instância mediadora de um narrador. Uma análise literária não se realiza somente registrando as mudanças de estado, pois uma narrativa, por menor que seja, apresenta inúmeras mudanças de estado: Não é suficiente distinguir vários tipos de mudanças de estado, como naturais, acionais, interacionais e mentais (como propõe Lubomir Dolezel, 1978). Precisase de categorias, com a ajuda das quais podem ser diferenciadas as inúmeras mudanças naturais, acionais e mentais no mundo narrado (da mudança repentina do tempo, da vitória de uma batalha até a reflexão interna do herói). (SCHMID, 2010, p. 8) Schmid propõe o temo evento20 para categorizar uma mudança de estado, que representaria uma ocorrência particular na história, algo que está fora dos acontecimentos previstos no cotidiano. Para que o evento se configure enquanto tal, não é necessário que ele represente a violação de uma norma, ou um desvio da ordem dada no mundo narrado, mas algo deve ficar claro: “todo evento implica uma mudança de estado, mas nem toda mudança de estado constitui um evento. O evento, portanto, deve ser definido como uma mudança que preenche certas condições†(SCHMID, 2010, p. 9). As exigências ou condições são: a facticidade e a resultabilidade. A facticidade deve ser considerada uma realidade na moldura do mundo ficional, ou seja, a mudança de estado, para ser evento, deve ser real, nunca 20 O evento como categoria foi desenvolvido na literatura a partir da Renascença, quando foi dado valor positivo ao inesperado, à novidade de uma mudança de estado que não havia na literatura da Idade Média. A novela foi o principal gênero, no qual a novidade foi apresentada, e teve como modelo Giovanni Boccaccio com o seu Decameron no século XIV. (SCHMID, 2014, p. 12) O evento está relacionado a uma ideia de “desvioâ€, por isso, Schmid discute também a presença da ritualidade como ideia antagônica: “A estética do desvio, na qual há um elevado grau de eventualidade se sobressai, transmite um prazer ao novo, à complexidade, uma superação de esquemas e de estereótipos. A estética da repetição, que produz uma recepção ritual, implica sentimento de segurança, direção e entendimento, e convida à identificação†(SCHMID, 2014, p. 30) desejada, imaginada ou sonhada. A resultabilidade diz respeito à necessidade de que a mudança de estado produza um resultado. Uma ocorrência que não venha seguida de uma finalidade não pode se constituir enquanto evento. As duas condições descritas são consideradas necessárias, básicas, mas não são suficientes para caracterizar um evento, já que determinadas mudanças de estado, ainda que cumpram essas exigências, não são notadas como evento. Schmid propõe cinco caracterÃsticas, em ordem hierárquica, que contribuem para a identificação de um evento. Essa ordem guarda a ideia de uma diferença de importância entre cada caracterÃstica e de gradação entre elas, a fim de se alcançar “o quanto de eventualidade uma mudança de estado precisa para se tornar um evento†(SCHMID, 2010, p. 9). São estas as caracterÃsticas: relevância; impredicabilidade; consecutividade; irreversibilidade; não-interatividade. A relevância21 deve ser considerada, já que o evento precisa ser relevante, embora não exista nenhum critério absoluto para decidir a relevância ou irrelevância do evento. Schmid exemplifica que nas epopeias heroicas da Idade Média a morte pode ter pouca relevância, em razão do contexto. Já em uma narrativa de Tchekhov, de tÃtulo “Um eventoâ€, Schmid mostra como o autor exemplificou que a relevância depende do sujeito: duas crianças assistem ao nascimento de gatinhos. Para elas tratava-se de um acontecimento bastante significativo, enquanto que para os adultos, não. A impredicabilidade aponta para uma mudança na expectativa, uma alteração daquilo que era esperado no mundo narrado. Essa quebra de expectativa se refere aos protagonistas do mundo narrado e não aos leitores. “Uma mudança previsÃvel dentro das normas do mundo narrado tem baixa eventualidade, mesmo se essa mudança for essencial para um ou outro protagonista envolvido†(SCHMID, 2010, p. 10). A consecutividade é um aspecto que torna maior a eventualidade de uma mudança de estado. Tal mudança precisa gerar consequências para o pensamento e para a ação do sujeito envolvido. A irreversibilidade é a caracterÃstica de uma nova condição após a mudança de estado, indicando a improbabilidade de se retornar ao estado anterior. A nãointeratividade diz respeito a repetidas mudanças de um mesmo tipo, o que confere à mudança um baixo nÃvel de eventualidade. 21 Relevância e Impredicabilidade são, de acordo com Schmid, os dois indicadores que praticamente decidem o grau de eventualidade não são dados objetivamente no texto. Requerem, portanto, interpretação e leitura do contexto. Para um conhecimento mais ampliado, ler o subcapÃtulo “Eventualidade, interpretação e contexto†e “A análise de eventos†(SCHMID, 2014, p. 23) Ainda se referindo à eventualidade, Schmid destaca outra categoria, atual no debate narratológico, a narratibilidade. Tal categoria pode fazer referência à diegesis ou à exegesis. Quando relacionada à primeira, a narratibilidade diz respeito à razão de ser de uma história, ou ainda, procura responder por que vale a pena contar a história. Quando relacionada à segunda, diz respeito ao “modo particular como o narrador apresenta a sua história†(SCHMID, 2010, p. 13). A relação entre eventualidade e narratibilidade é expressa da seguinte forma: “Em narrativas com alto grau de eventualidade se junta, em geral, a narratibilidade†(SCHMID, 2010, p. 13), elas acabam coincidindo: a narratibilidade é encontrada na eventualidade; já em narrativas de baixa eventualidade, a narratibilidade pode resultar da ausência de um evento esperado pelo leitor: a razão de ser da história está na não realização de um determinado acontecimento. A fim de contornar melhor os textos aos quais a sua teoria será aplicada, Schmid aborda o tema da ficcionalidade: “De que maneira a narração em uma obra de arte se difere da narração cotidiana, por exemplo, anedotas; notÃcias de jornal, rádio e televisão; reportagem policial ou o resumo dos acontecimentos contados por um repórter esportivo? †(SCHMID, 2010, p. 21). Ele continua: Uma das caracterÃsticas básicas de um texto narrativo artÃstico é sua ficcionalidade, isto é, a condição em que o mundo representado nela é fictÃcio. Para explicar o uso desses conceitos: o conceito ficcional caracteriza o texto; o conceito do fictÃcio denota, por outro lado, o status do representado no texto ficcional. Um romance é ficcional, o mundo nele representado é fictÃcio. Textos ficcionais são, via de regra, não fictÃcios, mas reais (a não ser que eles figurem no mundo fictÃcio de outro texto ficcional). Enquanto o fictÃcio é o contrário do real, o conceito oposto de ficcional é o factual (ver Genette 1991; Schaeffer 2009). (SCHMID, 2010, p. 21-2). Schmid expõe, então, o sentido que o termo fictÃcio deve assumir em seu trabalho. FictÃcio, derivado do latim fingere, designa aquilo que é imaginado, mas apresentado como real. Nesse sentido, a ficção literária é uma simulação, um fingimento sem a conotação negativa que termos como mentira, enganação podem trazer. Por isso, o fictÃcio não deve estar tão diretamente relacionado a uma ideia de aparência: “Ficção deveria ser preferivelmente entendida como a representação de uma distinta, autônoma e interna realidade literária†(SCHMID, 2010, p. 22), concepção mais aproximada da teoria da mimesis em Aristóteles. Aristóteles que supera o ensinamento platônico que considera a representação artÃstica em terceiro grau como a imitação de uma imitação, reconhece a mimesis – que ele entende como “fazer†(πόιησις) (ver Hamburger 1975, 4 [1968; 1ª ed. 1957]) ou como “construção†(Zuckerkandl 1958, 233) – não só como primazia (ver Else 1957, 322), mas também estabelece sua função cognitiva (ver Boyd 1968, 24) e, então, seu valor. Ao contrário do historiador, que narra o que aconteceu, aquilo, por exemplo, que AlcebÃades teria dito e feito, será a tarefa do poeta reportar “o que poderia ter acontecido e o que poderia ser possÃvel de acordo com a necessidade ou possibilidade†(1451a, 36–38). Objeto ou assunto do poeta é então não “o que realmente aconteceu†(τὰ γενόμενα), mas o “possÃvel†(τὰ δυνατά). Por isso que a poesia ficcional é “mais filosófica e mais significativa do que a historiografia†(1451b, 5–6). (SCHMID, 2010, p. 23) Ao citar Aristóteles, Schmid aproxima a sua compreensão de ficção da concepção aristotélica de mimesis: trata-se da construção artÃstica da realidade possÃvel; não representa ações, agentes e mundos existentes ou passados, mas possÃveis. Sendo assim, evidenciando a linha de construção do conceito de ficcionalidade, Schmid fala a respeito do trabalho de Käte Hamburger, na década de 1950, que procurou distinguir o primeiro tipo básico de literatura, “gênero ficcional ou miméticoâ€, do segundo, “gênero poético ou existencialâ€. Hamburger defendia a tese de que a ficcionalidade do texto estava no próprio texto e não nas intenções de seu autor. Nesse sentido, ela determinou alguns “sintomas†que evidenciariam os gêneros ficcionais: a perda da função gramatical do pretérito épico de indicar o que é passado; o que é narrado não se refere a um eu real, mas a um eu fictÃcio; “o uso de verbos de ação interna com referência à terceira-pessoa (do tipo Napoleão pensou...) sem motivação de uma fonte informacional†(SCHMID, 2010, p. 25). Embora a estudiosa não tenha se livrado das crÃticas, que apontaram que tais caracterÃsticas poderiam também ser identificadas em textos factuais, Schmid defende que esses sintomas são muitos mais caracterÃsticos de textos ficcionais. Outra questão importante posta em destaque por Hamburger é a de que “a ficção se distingue de todos os outros tipos de textos por nos permitir direto acesso ao mundo interno do outro†(SCHMID, 2010, p. 27). Sobre isso, Schmid diz: Na ficção, nós podemos conhecer outras pessoas na vida interior delas, e formar uma imagem confiável de seus sentimentos mais segredos, algo que, na vida interior delas, em que mesmo entre amigos e cônjuges, estamos assentados em marcos e na interpretação incerta delas, o que em último caso nos impossibilitaria esse total conhecimento. (SCHMID, 2010, p. 28) Mesmo que ainda não se tenha chegado a uma teoria da ficção amplamente aceita, existe um consenso prático em torno das caracterÃsticas da ficcionalidade. A seguir, algumas considerações relevantes: O que é fictÃcio na obra ficcional? A resposta é: o mundo inteiro representado e todas as suas partes: situações, personagens, ações. Objetos fictÃcios não se diferenciam dos reais sob nenhumas caracterÃsticas temática ou formal, mas simplesmente por não poderem ser observados em sua materialidade: eles não existem no mundo real. A não-existência no mundo real não é colocado em dúvida enquanto se tratar de personagens inventadas como Natasha Rostova e Pierre Bezukhov de Guerra e Paz. Mas e quanto a figuras históricas que aparecem nesse romance como Napoleão ou Kutuzov? Estes são apenas personagens quase históricas. O Napoleão de Tolstói não é uma reprodução da figura histórica, mas uma mimesis de Napoleão; a construção de um Napoleão possÃvel. (SCHMID, 2010, p. 31) O esclarecimento dado por Schmid sobre a leitura que se deve fazer das personagens, do espaço e do tempo na ficção contribuem para que se possa encarar esse mundo fictÃcio segundo sua própria lógica. Ainda que sejam feitas referências a figuras históricas, espaços reais, perÃodos históricos especÃficos, o mundo fictÃcio é apenas um mundo possÃvel, nunca real. Inclusive Schmid recusa a ideia de que objetos fictÃcios podem aparecer ao lado de objetos reais na ficção. Para ele “o mundo fictÃcio da narrativa tem sua ontologia homogênea, em que todos os objetos representados, não importando quão próximos eles possam estar dos objetos reais†(SCHMID, 2010, p. 32) são fictÃcios. Compreendida a existência do mundo fictÃcio dentro da obra, Schmid fala sobre a comunicação do autor e a comunicação do narrar: O mundo narrado é o mundo criado pelo narrador. O mundo representado criado pelo autor não é limitado ao mundo narrado. O mundo representado inclui o narrador, seu destinatário e a própria narração. Para o autor o narrador, o ouvinte e o leitor são entidades fictÃcias representadas pelo ato da narração dentro da obra ficcional. Então, a obra narrativa não apenas narra, mas representa um ato de narração. A arte da narrativa é estruturalmente caracterizada pela duplicação de um sistema de comunicação: a comunicação do narrar, na qual o mundo narrado é criado, é parte do mundo fictÃcio representado, o qual é o objeto da comunicação real do autor. (SCHMID, 2010, p. 32-3) Desse ponto em diante, Schmid orientará o caminho para uma análise narratológica, separando a esfera de atuação do autor e do narrador na obra, o que muito contribui para ampliar nossa leitura sobre as identificações feitas pela crÃtica de Milton Hatoum em torno do romance Relato de um certo Oriente. 3. AS INSTÂNCIAS DA OBRA NARRATIVA “Todo†é o que possui começo, meio e fim. “Começo†é o que em si não é, por necessidade, antecedido de outro, mas após o qual algo de diferente naturalmente existe ou se manifesta; ao contrário, “fim†é o que naturalmente é antecedido, por necessidade ou na maior parte dos casos, de outro, mas após o qual nada advém; “meio†é o que em si vem após o outro e após o qual algo de diferente advém. Aristóteles 3.1 Os NÃveis de Comunicação no romance W. Schmid entende a obra narrativa como um sistema de comunicação, em que se tem de um lado um emissor e, de outro, um receptor. O estudo analÃtico parte, então, da determinação das instâncias que compõem a obra. Antes de chegar aos fenômenos observados na narrativa, devem-se considerar as instâncias que participam dos planos de comunicação constitutivos da obra: a comunicação do autor e a comunicação do narrar. Há ainda um terceiro plano, facultativo, o da comunicação das personagens. Tal plano se evidencia na obra quando um dos personagens se torna uma instância que fala e se comunica. Em cada um desses três nÃveis, nós diferenciamos um lado emissor e um lado receptor. No conceito de receptor nota-se uma ambivalência essencial, que frequentemente é deixada de lado nos modelos de comunicação correspondentes. O receptor dissocia-se em duas instâncias, separadas em funcional ou intencional, ainda que coincidam material ou extensionalmente: destinatários ou receptores. O destinatário é aquele pretendido ou presumido pelo emissor, é aquele para quem o emissor envia a sua mensagem, aquele que ele, na composição, tem em mente como instância suposta ou desejada. O receptor é o destinatário factual, do qual o emissor possivelmente tem uma imaginação geral, e no caso da literatura é a regra. A necessidade de tal distinção é óbvia: quando uma carta não é lida pela pessoa, que era pretendida como destinatário, mas por uma pessoa, que em cujas mãos ocasionalmente a carta é decifrada, podem surgir inconveniências. (SCHMID, 2010, p. 34) Os dois primeiros planos de comunicação, o do autor e o do narrar, existem naturalmente em Relato de um certo Oriente, assim como o plano facultativo, uma vez que os personagens falam e participam da construção da narrativa. Nos capÃtulos 2, 3, 4, 5, 7 são justamente os personagens do mundo narrado: Hakim, Dorner, o pai de Hakim e Hindié Conceição que têm suas falas representadas ao longo de todas as páginas. A ideia de um sistema de comunicação pode perfeitamente ser vista e aplicada na obra, uma vez que, para além da ideia de uma comunicação entre autor e leitor concretos, autor e leitor abstratos, de narrador fictÃcio e leitor/ouvinte fictÃcio, temos, sobretudo, a comunicação entre personagens ao longo de toda narrativa. A própria narradora que, inevitavelmente, ocupa a posição de emissora nesse sistema de comunicação, em dados momentos, ocupa a função de “destinatáriaâ€. Vejamos como isso ocorre: Logo no primeiro capÃtulo, em que a instância do narrar é a narradora, notamos marcas de interlocução no discurso: “imaginei como estarias em Barcelona, entre a Sagrada FamÃlia e o Mediterrâneo, talvez sentado em algum banco da praça do Diamante, quem sabe se também pensando em mim, na minha passagem pelo espaço da nossa infância†(HATOUM, 2017, p. 11 grifo nosso). O verbo fazendo referência à existência de um “tu†é a marca mais significativa de uma comunicação entre narradora fictÃcia e leitor fictÃcio. Sabe-se também desde o princÃpio que esse leitor fictÃcio, apesar de não ter o nome revelado, é irmão da narradora e que os dois costumavam se corresponder via cartas: “Já eram quase sete horas quando resolvi sair de casa. Retirei do alforje o caderno, o gravador e as cartas que me enviaste da Espanha†(HATOUM, 2017, p. 10 grifo nosso). Nesse sentido, o irmão da narradora é seu destinatário de natureza intencional e eles estão em um mesmo nÃvel de comunicação. Quando ela está em outro nÃvel de comunicação, em que ela é narradora diegética e, portanto, participa da história no mesmo nÃvel das personagens, ela “recebe†a mensagem de Hakim: Na manhã da segunda-feira tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala para rever os animais e dar uma volta no pátio da fonte, onde molhava o rosto e os cabelos; depois retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da memória. (HATOUM, 2017, p. 34) A fala de Hakim entra em um diálogo já existente, porque a narradora também comentava sobre o relógio de Emilie, antes de ocorrer a mudança de capÃtulo: “Tive a mesma curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias vezes à minha mãe por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia.†(HATOUM, 2017, p. 35). No trecho a seguir, as marcas de interlocução no discurso de Hakim evidenciam o diálogo: “Tu e teu irmão conheceram Dorner. Não sei se naquele tempo foste aluna dele, mas sabes o quanto era distraÃdo. †(HATOUM, 2017, p. 66, grifo nosso). Mais adiante, o sistema de comunicação dos personagens fica mais evidente ainda no romance, em que a narradora, aparentemente apenas, sai de cena, e os personagens interagem entre si. No final do capÃtulo 2, Hakim fala: “Num dos últimos encontros, Dorner relembrou aquela manhã, e me mostrou alguns cadernos com anotações que transcreviam conversas com meu pai†(HATOUM, 2017, p 67) e, no capÃtulo 3, em que a instância do narrar passa a ser Dorner, ele se dirige a Hakim, evidenciando, nesse momento, a posição de cada um no sistema de comunicação, emissor e receptor: “Um desses cadernos encerra, com poucas distorções, o que foi dito por teu pai no entardecer de um dia de 1929†(HATOUM, 2017, p. 79 grifo nosso). Todos esses três sistemas de comunicação podem ser identificados no esquema de Schmid, em que se lê a presença das instâncias participantes, sejam as concretas ou abstratas, e seus nÃveis: o nÃvel da obra, do mundo representado, do mundo narrado e do mundo citado. Fonte: SCHMID, 2010, p. 35. Para fazer a leitura dessa proposta de modelo de comunicação, mobilizaremos as instâncias presentes no romance de Milton Hatoum. Nas duas extremidades do esquema, identificamos o autor concreto e o leitor concreto. Essas são instâncias constitutivas, não exclusivas, da obra narrativa e que se apresentam também no modo abstrato. Schmid esclarece que o autor concreto é a figura histórica, o criador da obra. No caso desse estudo, o autor concreto é Milton Hatoum, escritor brasileiro de descendência libanesa, nascido em Manaus, homem cuja existência independe da sua obra. Assim também é a figura do leitor concreto: existe independente da obra e seu papel pode ser ocupado por uma vasta quantidade de pessoas reais que poderão assumir a posição de receptor da obra. Autor e leitor concretos estão fora do primeiro quadro que, no esquema, representa a obra literária propriamente dita. Dentro da obra, encontram-se projetadas as figuras do autor abstrato e do leitor abstrato, juntamente com destinatário presumido e receptor ideal. Ainda dentro da obra literária, que para nós é o romance, conforme o esquema, observamos o mundo representado. O mundo representado não deve ser confundido com o mundo narrado, pois é resultado da criação do autor e inclui o narrador fictÃcio, o leitor fictÃcio e a narração propriamente dita enquanto discurso. O terceiro quadro, por sua vez, é resultado da criação do narrador fictÃcio: é ele quem cria o mundo narrado, as personagens e seus discursos. Nesse sentido, podemos dizer que Milton Hatoum, o autor, quando criou a obra, criou uma narradora e a narração; criada a narradora, esta é quem se torna “responsável†por todos os elementos do mundo ficcional, por cada personagem que aparece na história e por seus respectivos discursos. O mundo citado, localizado no centro do esquema, que é produzido pela personagem, também é da responsabilidade do narrador fictÃcio. Esta relação entre narradora e personagens criadas, que não são “seres†independentes, é uma das grandes contribuições da teoria da narrativa de Schmid e que encontra no romance de Milton Hatoum um espaço oportuno para se mostrar. Apresentado o esquema, partiremos para a descrição das instâncias que compõem a obra em estudo. 3.2 Autor e leitor abstratos Ao contrário do autor concreto que independe da obra para existir, pois é a própria figura humana do escritor, o autor abstrato só existe em função da obra, como aponta o próprio esquema de Schmid, em que essa instância aparece no mesmo nÃvel da obra literária. O autor abstrato é na verdade uma projeção realizada pelos leitores concretos da obra, que levam em conta todas as marcas existentes no mundo representado, isto é, todas as marcas deixadas pelo autor concreto ao criar a sua obra literária. A construção do autor abstrato não é da responsabilidade do autor da obra, que não tem nenhuma intenção em criar essa instância. É, portanto, o leitor concreto e, por que não dizer, a crÃtica que vai, a partir da obra, com suas caracterÃsticas estéticas e traços ideológicos, construir um autor Milton Hatoum. Uma base para consenso deve ser fornecida pela definição do autor abstrato como o correlato de todos os signos indexicais em um texto que aponta para o autor. Esses sinais delineiam uma posição ideológica e uma concepção estética. “Abstrato†não significa “fictÃcioâ€. O autor abstrato não é uma instância representada, nem uma criação intencional do autor concreto, e é categoricamente distinta, desta forma, do narrador, que é sempre — seja explicitamente ou implicitamente - uma instância representada. (SCHMID, 2010, p. 48). Se a imagem do autor abstrato pode ser identificada a partir dos sinais deixados no texto, sinais que apontam posições ideológicas e concepções estéticas, podemos compreender que cada elemento presente na obra vai comunicar a figura abstrata desse autor: as marcas temporais de perÃodos históricos, as caracterÃsticas e pensamentos assumidos pelos personagens e o discurso do narrador. Nesse sentido, mesmo sendo o autor concreto a última instância responsável pela criação da obra (que veremos na interpretação final do romance), todos os vestÃgios que são resultado e produto do processo de criação já passam a configurar essa outra instância, que é o autor abstrato, a quem o leitor fará referência. Schmid explica que “o autor abstrato é apenas a hipóstase antropomórfica de todos os atos criativos, a intenção personificada da obra†(SCHMID, 2010, p. 48), isto é, configura-se pelas marcas textuais, mas assume a forma humana quando projetado pelo leitor. Nesse sentido, reforçamos a existência dupla dessa instância: “por um lado, ele é objetivamente dado no texto, como um esquema virtual dos sintomas; por outro, depende, para sua configuração e atualização, dos atos subjetivos de leitura, compreensão e interpretação†(SCHMID, 2010, p. 48). Essa instância se configura, portanto, através de atos subjetivos de leitura, isto é, com base na própria experiência de leitura da obra. Tal configuração pode sofrer diversas variações, uma vez que diferentes leitores podem concretizar o autor abstrato de formas variadas e, a cada nova leitura feita pelo mesmo leitor, outras configurações diferentes de autor abstrato podem surgir. Schmid coloca então duas formas para se determinar o autor abstrato: a partir da obra e do ponto de vista do autor concreto. “Da primeira, o autor abstrato é a hipóstase do princÃpio de construção que molda o trabalho. Da segunda, é o traço do autor concreto no trabalho, seu representante dentro dele†(SCHMID, 2010, p. 49). Ele destaca: É comum os autores experimentarem suas visões para testarem suas próprias convicções em suas obras. Muitos autores percebem possibilidades em seu trabalho que devem permanecer não realizadas na vida, e assumem posições que, por quaisquer razões, eles não gostariam ou não seriam capazes de propor na vida real. Em aspectos ideológicos, o autor abstrato pode ser mais radical ou menos comprometedor do que o autor concreto jamais foi na realidade, ou - formulando com mais cuidado - do que imaginamos que ele tenha sido, com base nas fontes históricas disponÃveis. (SCHMID, 2010, p. 49) A instância do autor abstrato em Relato de um certo Oriente será aqui identificada por alguns caminhos. Primeiramente, a leitura dos trabalhos crÃticos sobre a obra já nos coloca diante dessa instância concretizada pelo crÃtico que, antes de mais nada, é leitor concreto. Os textos de Toledo (2006), Vieira (2007), Moura (2007), Ribeiro (2013), Miranda Júnior (2013), Maquêa (2007) e de Birman (2007), selecionados por tratarem mais de perto a estrutura narrativa, configuram cada um a seu modo um “autor abstratoâ€, já que a leitura é um ato subjetivo e individual, mas é possÃvel estabelecer pelo menos um aspecto em comum nessas leituras, que é a identificação da concepção estética presente na obra. A história no romance poderia ser narrada de muitas maneiras: o tempo da narrativa poderia ser linear, a narradora poderia não ceder tanto à fala dos personagens, a estrutura dos capÃtulos poderia seguir outros critérios que não a alternância entre o discurso da narradora e a da fala das personagens. Todos esses aspectos apontam para um autor moderno, ousado, para lembrar o termo usado por Süssekind, que chegou a lembrar o nome de outros escritores de prestÃgio ao observar o texto de Hatoum. Essas escolhas feitas pelo autor no ato de criação da obra deixaram marcas que o colocaram em uma posição de muito valor no cenário literário brasileiro, principalmente quando posto em destaque entre os autores da Amazônia que não alcançaram o mesmo sucesso. A linguagem no romance obedece com regularidade, ao longo de toda a narrativa, um padrão culto da lÃngua. No primeiro capÃtulo, em que a narradora inicia: “Quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança†(HATOUM, 2017, p. 7), identificamos essa tendência ao uso do português culto; No segundo capÃtulo, em que observamos a representação da longa fala de Hakim: “Perguntei várias vezes à minha mãe por que o relógio e, depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia†(HATOUM, 2017, p. 35); No terceiro capÃtulo, cuja a fala passa a ser de Dorner: “ Naquela época eu ganhava a vida com uma Hasselblad e sabia manejar uma filmadora Pathè†(HATOUM, 2017, p. 68), não verificamos nenhuma outra variante do português, o que contribui para a formulação de mais ideias sobre o autor: sua formação literária, acadêmica e o leque cultural diversificado, uma vez que construiu universos culturais distintos dentro de sua obra, o dos persoangens de origem libanesa, o do alemão e o do nativo que sai da sua cidade de origem para uma cidade central do paÃs, ainda que isso não se registre por uma variação na linguagem empregada. Se essas e outras marcas que funcionam como Ãndices indexicais e que remontam ao autor abstrato indicam a sua configuração, questões de ordem ideológica também o fazem. Voltando o nosso olhar para os trabalhos crÃticos e para o breve quadro da recepção da obra apresentado, verificamos que as discussões sobre identidade, memória e migração só são possÃveis porque tais temáticas são explicitamente visÃveis no desenvolvimento da história no romance. Por que esse autor explorou tais temas em suas obras? Por que a história de uma famÃlia libanesa e não italiana, portuguesa? Por que os espaços Manaus, São Paulo e LÃbano dentro da obra? Por que um casamento entre um muçulmano e uma católica? Por que falar de deslocamentos e dos sentimentos gerados por essa experiência? Nesse caso a presença do autor aparece incutida em cada decisão, em cada escolha e, para isso, vamos observar algumas falas das personagens, a fim de identificarmos certos discursos que marcam opiniões, pensamentos e posições ideológicas mais evidentes na obra. No primeiro capÃtulo, enquanto a narradora conta sobre a relação de Emilie com o papagaio de estimação, Laure, observamos o modo como se estabelecia a relação patroa/empregada doméstica. No entanto, ela só começou a desencantar-se com a ave quando esta embirrou com uma das empregadas que serviu à famÃlia, antes da chegada definitiva de Anastácia Socorro. Era uma negra órfã que Emilie escolhera entre a enxurrada de meninas abandonadas nas salas da Legião Brasileira de Asssistência; estava faminta e triste que havia esquecido seu nome e sobrenome e só se comunicava através de gestos e suspiros. Laure, no primeiro contato com a novata, antipatizou com ela [...] Emilie tolerou essa birra por algum tempo, mas dispensou a empregada no dia em que Laure amanheceu com o bico coberto por uma pasta que era mistura de uma baba gosmenta com sal. (HATOUM, 2017, p. 28) No capÃtulo 5, trechos da fala de Emilie explicitam o que ela pensava sobre as caboclas que trabalhavam em sua casa e engravidavam dos “filhos inomináveis†da patroa: “- Deus? Contra-atacou Emilie. – Tu achas que as caboclas olham para o céu e pensam em Deus? São umas sirigaitas, umas espevitadas que se esfregam no mato com qualquer um e correm aqui para mendigar leite e uns torocadosâ€. (HATOUM, 2017, p. 98). Em seguida, a avaliação de Hakim sobre a conduta da mãe em relação ao tratamento dispensado aos serviçais: Essa conivência de Emilie com os filhos me revoltava, e fazia com que à s vezes me distanciasse dela, mesmo sabendo que eu também era idolatrado. Tornava-me um filho arredio, por não ser um estraga-albarda, por não ser vÃtima ou agressor, por rechaçar a estupidez, a brutalidade no trato com os outros. No meu Ãntimo, creio que deixei a famÃlia e a cidade também por não suportar a convivência estúpida com os serviçais. (HATOUM, 2017, p. 98-9) À fala de Hakim, juntamos essa outra fala em que ele menciona o comentário de Dorner sobre o mesmo assunto: Lembro Dorner dizer que o privilégio aqui no norte não decorre apenas da posse de riquezas. - Aqui reina uma forma estranha de escravidão – opinava Dorner. – A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à famÃlia do senhor são as correntes e golilhas. (HATOUM, 2017, p. 99) Os trechos apresentam uma forte crÃtica social. No primeiro, em que observamos a fala de Emilie, é importante registrar que o marido dela se mostra contrário em relação à esposa. Ele se indigna diante dos gestos dos filhos: “gritou entre pontapés e murros na porta, que um filho seu não pode escarrar como um animal dentro do corpo de uma mulher†(HATOUM, 2017, p. 98). A fala do marido funciona como um discurso ético sobre o problema familiar enfrentado naquele momento e se coloca em contraposição ao da esposa, que apresenta o discurso perverso e antiético. Depois, o discurso do pai é igualmente compartilhado por Hakim, que confessa ter deixado a convivência com a famÃlia por não aceitar o comportamento da mãe, ainda que esse comportamento fosse em benefÃcio dele também. Quando Hakim cita a fala de Dorner, o estrangeiro alemão, observamos o discurso daquele que, com o olhar de fora, é capaz de detectar não só as particularidades positivas do local, mas as suas misérias: ao apontar “a estranha escravidão†que ocorre ali, Dorner faz uma espécie de diagnóstico, que se relaciona perfeitamente com o que ocorre na casa de Emilie. As empregadas são meninas órfãs em situação de miséria, trazidas para a casa de seus patrões muito cedo e inseridas no seio da famÃlia, podendo desfrutar da comida e do teto; por outro lado, estavam sujeitas a todo tipo de humilhação dentro da casa, o que efetivamente identificava o verdadeiro lugar delas naquele espaço. A quem, em uma obra literária, atribuÃmos todo material de crÃtica social presente nos discursos das instâncias fictÃcias? Ao autor abstrato. Nesse sentido, é possÃvel dizer que, mesmo não apresentando falas no interior da obra, é possÃvel notar a sua presença, que não pode ser invalidada quando se almeja chegar à interpretação do texto, uma vez que tudo o que é dito e avaliado no texto literário é atribuÃdo ao autor abstrato, a última instância a quem a responsabilidade é dada. Nesse momento de nosso trabalho, tanto o autor quanto o leitor abstrato devem ser compreendidos como instâncias que favorecem a interpretação final do texto literário, pois elas não participam do mundo narrado, ou seja, não estão contidas na história narrada no romance. Se não ignoramos o princÃpio da comunicação em que se estabelecem emissor e receptor, logo entendemos, dentro da proposta de Schmid, a existência de um leitor abstrato, a instância que existirá lado a lado do autor abstrato. Ressaltando-se a condição abstrata dessas instâncias, é preciso dizer que não há contato entre as duas, uma vez que “não são instâncias pragmáticas, mas reconstruções semânticas†(SCHMID, 2010, p. 51). O leitor abstrato é atributo do autor concreto, é formado a partir da imagem do autor abstrato, isto é, só é possÃvel identificá-lo a partir dele. Trata-se de uma instância que nunca coincide com o leitor fictÃcio, o narrador, o destinatário do narrador†(SCHMID, 2010, p. 54). Nesse sentido Schmid estabelece dois papeis funcionais desse leitor abstrato: o de um “destinatário presumido e postuladoâ€, para quem a obra é direcionada e cujos códigos linguÃsticos, as normas ideológicas e as ideias estéticas são levadas em conta, tornando-a compreensÃvel. Nesta função, o leitor abstrato é portador dos códigos e normas que o público presume (SCHMID, 2010, p. 54-5) Ou de um “destinatário idealâ€, que entende a obra, toma a atitude de recepção e acolhe o sentido que a obra lhe sugere. O comportamento do leitor ideal, sua relação com as normas e valores das instâncias fictÃcias é, portanto, completamente predeterminado pela obra, não pelas intenções do autor concreto, mas pelos atos criativos objetivados que se realizam na obra (SCHMID, 2010, p. 55) Para tratarmos dessa instância no texto de Milton Hatoum, é necessário, primeiramente, prosseguir com a análise do texto, a fim de alcançarmos resultados que possibilitem uma interpretação. A instância do leitor abstrato vai depender da configuração que o autor abstrato vai assumir ao final deste trabalho, mas, mesmo sendo possÃvel com a leitura da crÃtica e os breves exemplos de discursos de crÃtica social, lançar alguma ideia sobre esse autor abstrato, podemos projetar uma configuração para a outra instância também. Nesse sentido, podemos lançar hipóteses de que o leitor abstrato do romance de Hatoum tem as caracterÃsticas de um destinatário presumido, uma vez que a mensagem do autor abstrato, que pressupõe o domÃnio do leitor acerca dos códigos e compreensão quanto à s suas posições ideológicas, chega sem o menor conflito de entendimento. Essa obra não é um dos casos que Schmid descreveu, em que o autor pode se enganar em relação ao próprio público: ele pode se enganar sobre a posição ideológica da maioria pela dos seus contemporâneos, pode superestimar a competência de seus leitores em decodificar um discurso impróprio, ou pressupor muita compreensão para a inovação estética. Não é incomum que um autor falhe na projeção do público que pretende alcançar, seja porque ele se engana com a linguagem, valores e normas de seu público ou porque seja incapaz de codificar sua mensagem. (SCHMID, 2020, p. 55) A narradora começa a sua narrativa reconstruindo trechos da sua infância, apelando para a questão da memória, logo a crÃtica chamou o romance de Hatoum de um romance de memórias. A narradora afirma que todos os relatos foram recolhidos e reunidos em um só, em função do caderno e do gravador que a auxiliavam nos registros. A crÃtica recebe isso e aceita. Mas será mesmo que “o resultado final†dessa narrativa realizada por ela, “o relato finalâ€, contou mesmo com o apoio de um gravador, de um caderno? O fato é que a crÃtica confiou nessa mensagem e se o autor abstrato realmente objetivou essa leitura idealizada para a obra, podemos dizer que ele obteve sucesso. Schmid coloca que “A diferença entre os dois papéis funcionais, o de destinatário presumido e o de destinatário ideal, será mais relevante quanto mais especÃfica for a ideologia da obra, tudo isso exige mais esforço do pensamento do que em relação à doxa†(SCHMID, 2010, p. 55). Nesse sentido, a avaliação acerca do leitor abstrato da obra vai depender da, por assim dizer, força ideológica da obra, e dos procedimentos e indÃcios que a obra traz que direcionam ou não a leitura para um determinado caminho, mas Schmid adverte que o destinatário ideal, não ignora a atividade co-criativa do leitor: A concepção do leitor abstrato como receptor ideal não postula, naturalmente, a natureza obrigatória de um sentido ideal dado na obra, que o leitor concreto só tem que compreender corretamente. Não há dúvida de que a atividade co-criativa do receptor pode levar a uma direção que não está prevista na obra, e que leituras que erram ou mesmo recusam deliberadamente uma recepção desenhada na obra certamente podem aumentar o significado dela. (SCHIMID, 2010, p. 57) Compreender a força dessa instância dentro do texto, sem dúvida, contribui para identificarmos, através dos indÃcios deixados na obra, qual leitura o autor pressupõe para a obra. Ajuda também a compreender “as decisões†tomadas pela crÃtica, a escolha por essa ou aquela leitura, por que Sherazade aparece, por exemplo, quase como palavra-chave ao se fazerem referências à estrutura narrativa. Partir da ideia de que a obra sugere esses caminhos, ou seja, pré-estabelece certas possibilidades de leitura, contribuirá para a interpretação dos resultados de nossa análise do texto, ainda que consideremos a liberdade do leitor. Sobre os indÃcios presentes no texto, que direcionam a uma leitura idealizada, Schmid diz: Deve-se notar que em cada obra há referências mais ou menos inequÃvocas à sua leitura ideal. Essa leitura ideal consiste apenas em casos raros de um sentido concreto em termos de conteúdo. Como regra geral, a recepção ideal cria um espectro menos amplo de configurações funcionais, concretizações individuais e de atribuições de sentido subjetivo. No caso extremo, a leitura ideal pode entrar em contradição com uma configuração apresentada e um sentido exposto, quando um autor exige do seu leitor a negação da posição de sentido que o narrador sugere. (SCHMID, 2020, p. 57) O papel do narrador, que está em um outro nÃvel dentro do esquema dos nÃveis de comunicação, deve ser considerado como parte fundamental no desdobramento dos discursos dentro da obra. Trata-se de uma instância fictÃcia que cria, como já dissemos, o mundo narrado e todos os elementos que o compõe. O narrador pode sugerir, em seu discurso, ou na maneira como escolhe apresentar a história, posições de sentido que poderão ou não ser compartilhadas pelo leitor. 3.3 O narrador fictÃcio Quando lemos o romance Relato de um certo Oriente e entramos no nÃvel do mundo narrado, que repete toda aquela configuração da comunicação vista no nÃvel do mundo representado entre autor e leitor, observamos as instâncias fictÃcias: narrador, mundo narrado e leitor fictÃcio. O narrador fictÃcio é o responsável pela transmissão da comunicação narrativa representada. Em outras palavras, a narradora do romance é responsável pela apresentação do espaço ficcional Manaus e, dentro de Manaus, a casa de sua mãe e a de Emilie. Do mesmo modo, é responsável pelo seu discurso, pelas personagens e pelo discurso das personagens. Sendo essa uma narradora explÃcita, já que a marcação dessa instância mediadora é bem forte e evidente na narrativa, seguiremos os parâmetros dados por Schmid, com a finalidade de descrever suas caracterÃsticas. Fixemos nossa atenção nos capÃtulos 1, 6 e 8 do romance, pois são esses os capÃtulos que contribuem para a noção de uma sequência temporal dos acontecimentos na narrativa, já que esses se encontram fora de ordem. No romance temos a narração do retorno da narradora à sua cidade de origem e à casa da infância vivida ao lado do irmão. A narração desse retorno, narrado nos capÃtulos mencionados, está fragmentada e, nesse sentido, propomos iniciar nosso caminho pelo último capÃtulo, ponto em que a narradora fala da sua condição de saúde, fala que é motivada pelos questionamentos do irmão em cartas: Lembro-me de que na penúltima carta quiseste saber quando eu ia deixar a clÃnica, e “sem querer ser indiscreto†me fizeste várias perguntas, e até brincaste: “Não se trata de uma inquisição epistolarâ€. Sei que não era uma carta inquisitória, mas a tua curiosidade exorbitante à s vezes me assusta, a ponto de me deixar perplexa e desarmada. O que aconteceu enquanto morei na clÃnica? As primeiras semanas vivi imersa na escuridão pacata de um sono contÃnuo e sem sonhos. Era como se eu tivesse os olhos vendados, ou como se uma cegueira precoce e súbita fosse uma defesa à vinda de nossa mãe, que chegou assim que foi informada do meu internamento. Creio que não cheguei a vê-la, nem sequer de longe. (HATOUM, 2017, p. 181) Que tipo de narradora podemos identificar nesse trecho considerado aqui como o ponto de partida da sequência temporal dos acontecimentos? Trata-se, sem dúvida nenhuma, de uma narradora dotada de personalidade, isto é, a narradora tem caracterÃsticas pessoais individuais, uma vez que ela revela seus laços familiares, seus sentimentos por seus entes, sua condição psicológica afetada que motivou a sua entrada em uma clÃnica de reabilitação. O fato de ser uma narradora do tipo pessoal faz com que o seu grau de marcação seja forte, pois há indÃcios de sua presença como instância mediadora em todo trecho em destaque, basta observar os verbos conjugados na primeira pessoa. As considerações feitas sobre a presença da mãe na clÃnica nos permitem concluir que a relação entre as duas era mÃnima; continuemos: “Talvez fosse ela, porque escutei a mesma voz que nos abandonou há tanto tempo: uma voz dirigida a Emilie, sondando de um lugar distante, notÃcias da nossa vida. †(HATOUM, 2017, p. 181). A narradora comunica a sua condição e estado psicológico e a todo instante deixa muito claro a quem se dirige, pois, a figura do irmão está presente em cada fala sua, principalmente quando ela representa a fala do outro entre aspas, conforme mostrado no penúltimo trecho. Mais adiante, sobre a sua internação, ela continua: Alguns dias passei ali pensando: como tinha ido parar naquele lugar, e esperando que minha amiga me revelasse o que mais temia, mas que para mim já era uma certeza, pois intimamente estava persuadida de que fora internada a mando da nossa mãe, depois do meu último acesso de fúria e descontrole, quando nada ficou de pé nem inteiro no lugar onde morava. Vim sem muita resistência, como um cego ou uma criança perdida que são conduzidos a algum lugar familiar. E ali, a alguns quilômetros do centro da cidade, a loucura e a solidão me eram familiares. (HATOUM, 2017, p. 182) Os dêiticos que funcionam como Ãndices de tempo e de espaço, como “passei†e “aliâ€, permitem saber que a estadia na clÃnica é passado em relação ao tempo da narração, portanto, ela não narra de dentro da clÃnica. Ela descreve o espaço que a abrigou e comenta a presença de uma amiga que lhe visitava enquanto esteve internada: Às vezes recebia a visita de minha amiga, para quem contava o meu dia-a-dia, a conversa com os médicos, e os relatórios que escreviam depois de observar meus gestos, meu olhar, as pessoas a quem me dirigia. O minucioso itinerário do meu cotidiano era rigorosamente inventariado. Para me divertir, para distorcer alguma verdade, para tornar a representação algo em suspense, contava sonhos que não tinha sonhado e passagens fictÃcias da minha vida. Só não inventei a respeito dos pais, mas falei muito pouco disso. (HATOUM, 2017, p. 183-4) Nada é dito em todo o romance sobre a identidade dos pais da narradora. O pouco que se sabe sobre a mãe é o conflito causado pelo sentimento de abandono gerado na filha, pois a mulher deu os dois filhos para que Emilie os criasse. Sobre o pai nada é dito, mas nesse trecho é possÃvel imaginar que a narradora tem ideia de quem seja o seu pai. No trecho seguinte, cheio de marcas de interlocução com o irmão, dá ainda para ter uma noção sobre a diferença da relação entre essa mãe e cada filho: o irmão desfrutou mais da presença da mãe que a narradora, que foi a primeira a deixar Manaus. Miriam me trazia livros, cartas, agulha, linha e notÃcias. Ela soube que minha mãe ia viajar pela Europa e passaria por Barcelona para te visitar. Minha história com ela é a história de um desencontro. Sei que este assunto melindroso não te atrai muito, “é uma conversa de cristalâ€, dizias, sempre que eu voltava a falar nisso. Assunto que arde, palavras de fogo, conversa do diabo, não? Sei também que conviveste um certo tempo com ela, mas eu, que saà mais cedo de Manaus, só a vi uma única vez durante a infância. Emilie nunca me escondeu nada, como se me dissesse: tua mãe é uma presença impossÃvel, é o desconhecido incrustado no outro lado do espalho. (HATOUM, 2017, p. 184) Até que chegamos ao ponto em que a ideia de uma viagem é cogitada: Miriam estranhava o fato de eu não sair dali o quanto antes; ela se incomodava quando lhe pedia para sentar no pátio, e estremecia ao ver as duas beatas que se acercavam com os olhos arregalados e se ajoelhavam à nossa frente, segurando nas mãos um terço de contas transparentes. “O que te atrai para continuares aqui?â€, me dizia. Quis responder perguntando o que me atraÃa lá fora, mas preferi dizer que estava pensando numa viagem. (HATOUM, 2017, p. 184) Entendemos que toda a informação dada a seu próprio respeito ajuda a caracterizar o grau de pessoalidade dessa narradora, o que nos permitirá comparar com as caracterÃsticas das narrações nos capÃtulos 2, 3, 4, 5 e 7. Nesse sentido, seguiremos explorando essas informações que constam no final do romance: Do tempo que permaneci na clÃnica, ora procurava o pátio para ficar com as outras, ora me confinava no quarto cuja janela se abria para dois mundos. Do mundo da desordem, ofuscado pela atmosfera suja do movimento vertiginoso da cidade que se expande a cada minuto, eu ainda guardava as cicatrizes do desespero e da impaciência de sobreviver, dilacerada pela árdua conquista de prazeres efêmeros. (HATOUM, 2017, p. 184-5) A narradora não é precisa em relação ao tempo que passou na clÃnica, mas diz que “ao fim de algumas semanas†podia reconhecer as vozes das pessoas de olhos fechados. Depois, ela fala das atividades manuais que desenvolveu na solidão do quarto da clÃnica, onde aprendeu a bordar: “Retalhei um lençol esfarrapado para fazer lenços, onde bordei as iniciais dos nomes e apelidos, teci formas abstratas nos pedaços de pano que desejava presentear à s que não tinham nome ou não eram conhecidas através dos nomes†(HATOUM, 2017, p. 185). Não dá para não pensar na relação entre os retalhos de panos e a narrativa, tal como a sua preferência por presentear justo aquelas que não tinham nome, como ela mesma. Entre as atividades manuais, ela também praticou a escrita: escrevi um relato: não saberia dizer se conto, novela, ou fábula, apenas palavras e frases que não buscavam um gênero ou uma forma literária. Eu mesma procurei um tema que norteasse a narrativa, mas cada frase evocava um assunto diferente uma imagem distinta da anterior, e numa única página tudo se mesclava: fragmentos das tuas cartas e do meu diário, a descrição da minha chegada a São Paulo, um sonho antigo resgatado pela memória (HATOUM, 2017, p. 186) Mas, ao invés de permitir que o relato escrito fosse lido, tomou uma decisão diferente: Pensei em te enviar uma cópia, mas sem saber por que rasguei o original, e fiz do papel picado uma colagem; entre a textura de letras e palavras colei os lenços com bordados abstratos: a mistura do papel com o tecido, das cores com o preto da tinta e com o branco do papel, não me desagradou. (HATOUM, 2017, p. 186) Ela cria uma forma a partir dos retalhos de tecido e do papel picado e se agrada do feito, como se estivesse produzindo arte. Isso faz lembrar a leitura feita por Daniela Birman (2007), que considerou o traço artÃstico da narradora, embora tenha tratado dela como “escritora modernaâ€, baseando-se na composição do relato enquanto romance. O fato é que o produto final dessa mistura do trabalho artesanal da narradora gera para ela uma imagem: O desenho acabado não representa nada, mas quem o observa com atenção pode associá-lo vagamente a um rosto informe. Sim, um rosto informe ou estilhaçado, talvez uma busca impossÃvel neste desejo súbito de viajar para Manaus depois de uma longa ausência. Não desejava desembarcar aqui à luz do dia, queria evitar as surpresas que a claridade impõe, e regressar à s cegas, como alguns pássaros que se refugiam na copa escura de uma árvore solitária, ou um corpo que foge de uma esfera de fogo, para ingressar no mar tempestuoso da memória. (HATOUM, 2017, p. 186 - grifo nosso) Mais uma vez é possÃvel pensar a relação entre o acabamento final da narrativa e o “rosto informe†que se poderia enxergar a partir do desenho criado por ela. Essa narradora demonstra traços de muita sensibilidade para questões estéticas, como veremos mais adiante também. O trecho acima também chama atenção porque traz a identificação do espaço onde a narradora se encontra enquanto narra: o dêitico aqui dá a informação de que ela se encontra em Manaus no tempo da enunciação do discurso narrativo. Nesse ponto, ela explica também que a viagem foi um desejo súbito e que o horário da chegada na cidade de sua infância foi muito bem pensado. Tudo isso é informado com uma linguagem carregada de comparações e metáforas, caracterÃstica presente em seu discurso em toda narrativa. Esse traço pôde ser observado nas descrições feitas sobre a clÃnica, quando ela compara o espaço a uma mariposa: Era uma construção cuja planta lembrava uma mariposa: o corpo era o volume que abrigava os quartos, a sua cabeça a administração, e nas duas asas simétricas situavam-se os pátios, os refeitórios e os jardins com seus caminhos de grama e pedra que circundavam as árvores e terminavam nos portões de ferro. (HATOUM, 2017, p. 183) A identificação do lugar de onde a narradora realiza a narração nos permite continuar a traçar uma ordem para os acontecimentos narrados. Em seguida, chegamos ao ponto que poderÃamos identificar como o inÃcio da história, o momento em que ela chega a Manaus, depois de ter calculado o perÃodo ideal para retornar à cidade da infância. Vejamos: Já passava das onze quando cheguei na casa que desconhecia. Ninguém foi avisado de que eu chegaria aquela noite, mas eu sabia que, na ausência da mãe, a empregada ficaria sozinha na casa construÃda próxima ao sobrado onde Emilie morava. Dirigi-me ao quintal, após ter atravessado uma espécie de caramanchão: passagem entre um vasto jardim e o fundo da casa. Ali, onde se encontravam as edÃculas, tudo estava escuro. Um único globo de luz aclarava o jardim. Preferi não acordar a empregada e passar a noite ao ar livre, deitada na grama ou sentada nas cadeiras espalhadas sob os jambeiros, ou entre palmeiras mais altas que a casa. (HATOUM, 2017, p 187) Seria possÃvel, inclusive, encaixar esse trecho antes das primeiras linhas do romance e terÃamos uma interessante conexão entre as partes: Quando abri os olhos, vi o vulto de uma mulher e o de uma criança. As duas figuras estavam inertes diante de mim, e a claridade indecisa da manhã nublada devolvia os dois corpos ao sono e o cansaço de uma noite mal dormida. Sem perceber, tinha me afastado do lugar escolhido para dormir e ingressado numa espécie de gruta vegetal, entre o globo de luz e o caramanchão que dá acesso aos fundos da casa. (HATOUM, 2017, p. 7) Contudo, voltemos à s páginas finais do romance, para tomar nota de mais detalhes. Um verbo confirma mais uma vez a localização da narradora no momento da narração: “Na última, ao saber que vinha a Manaus, pedias para que eu anotasse tudo que fosse possÃvel: ‘Se algo de inusitado acontecer por lá, disseque todos os dados, como faria um bom repórter, um estudante de anatomia...’†(HATOUM, 2017, p. 188 – grifo nosso). E, desse ponto em diante, a narradora declara três informações: a primeira é que toda a história que lemos, isto é, o relato, foi feito a pedido do irmão; a segunda é que ela se equipou de todas as maneiras possÃveis para colher os dados que iriam compor o relato: O teu presságio me deu trabalho. Gravei várias fitas, enchi de anotações uma dezena de cadernos, mas fui incapaz de ordenar coisa com coisa. Confesso que as tentativas foram inúmeras e todas exaustivas, mas ao final de cada passagem, de cada depoimento, tudo se embaralhava em desconexas constelações de episódios, rumores de todos os cantos, fatos medÃocres, datas e dados em abundância. Quando conseguia organizar os episódios em desordem ou encadear vozes, então surgia uma lacuna onde habitavam o esquecimento e a hesitação: um espaço morto que minava a sequência de ideias. E isso me alijava do ofÃcio necessário e talvez imperativo que é o de ordenar o relato, para não deixá-lo suspenso, à deriva, modulado pelo acaso. (HATOUM, 2017, p. 188). A terceira informação diz respeito à sua dificuldade de concatenar os dados, os episódios registrados. Podemos identificar isso em um dos trechos mais citados em textos crÃticos, momento em que a narradora confessa a sua incompetência para lidar com a diversidade da fala de cada um: Também me deparei com outro problema: como transcrever a fala engrolada de uns e o sotaque de outros? Tantas confidências de várias pessoas em tão poucos dias ressoavam como um coral de vozes dispersas. Restava então recorrer à minha própria voz, que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozes. Assim os depoimentos gravados, os incidentes, e tudo o que era audÃvel e visÃvel passou a ser norteado por uma única voz, que se debatia entre a hesitação e os murmúrios do passado. (HATOUM, 2017, p. 188-9) A justificativa para a uniformização da linguagem dada pela narradora, como vimos na seção anterior deste trabalho, foi lida de formas diversas pelos crÃticos: Flora Süssekind (1989) entendeu como uma desculpa para uma falta do autor. Toledo (2006), através dessa uniformização, concluiu que a narradora é, na verdade, o próprio autor, Milton Hatoum; e Daniela Birman (2007) leu o mesmo fenômeno como um “jogo de encenação†que nada tem a ver com o autor e sim com a narradora. Mas o que de fato pertence à s personagens no discurso da narradora? E o que pertence à narradora no discurso das personagens? Mesmo a narradora afirmando que recorreu à própria voz, tal informação não é capaz de calar as perguntas que surgem após a leitura dos capÃtulos anteriores, uma vez que, narrados com verbos em primeira pessoa, tentam fazer com que creiamos que os personagens são “narradoresâ€. Vale ainda atentar sempre para a presença das comparações, das metáforas constantes em seu discurso, como uma marca de identificação do estilo dessa narradora, “a voz que planaria como um pássaro gigantesco e frágil sobre as outras vozesâ€. Avançando mais na leitura do texto, a narradora diz aquilo que motivou o seu trabalho com as lembranças da infância na construção dessa carta, que é o próprio relato, para o irmão: Para te revelar (numa carta que seria a compilação abreviada de uma vida) que Emilie se foi para sempre, comecei a imaginar com os olhos da memória as passagens da infância, as cantigas, os convÃvios, a fala dos outros, a nossa gargalhada ao escutar o idioma hÃbrido que Emilie inventava todos os dias. (HATOUM, 2017, p. 189) Esse trecho chama a atenção para algo que, desde o inÃcio do romance, acompanhamos: a importância da personagem Emilie para a narradora e para todos os demais personagens. A história gira em torno dessa figura e sua morte parece cumprir o “evento†dessa narrativa. Para a narradora, a figura de Emilie está diretamente relacionada com a infância, que é o que ela busca recuperar ao escrever para o irmão, a fim de atenuar a gravidade da notÃcia. Essa morte gera nela uma atitude enquanto alguém que prepara e pensa uma forma de escrita: “comecei a imaginar com os olhos da memóriaâ€, pois ela precisava dar a notÃcia triste ao irmão. Nesse sentido, no plano diegético, a morte de Emilie, enquanto “eventoâ€, sinaliza, pelo menos, dois critérios pensados por Schmid: essa morte é uma mudança de estado relevante dentro da história; e tal mudança contraria as expectativas da narradora, que não viajou a Manaus prevendo esse acontecimento. Para confirmar e alcançarmos uma ideia mais concreta a respeito do papel dessa morte no plano diegético e, continuarmos a pensar as caracterÃsticas dessa narradora, precisaremos verificar o trajeto feito por ela ao chegar em Manaus. A reconstrução do tempo e da ordem dos acontecimentos nos permitem saber que ela chega à cidade da sua infância em uma noite de quinta-feira. A narradora adormece no jardim da casa da mãe, localizada ao lado do sobrado de Emilie e é acordada pela empregada da casa, que parecia já esperar pela chegada da visitante. Importante ressaltar que em todo momento a narradora tem o irmão como seu interlocutor: Quis saber quando nossa mãe tinha viajado, mas não toquei no assunto. Apenas disse que ia sair para visitar Emilie. Pela primeira vez a mulher me encarou com um olhar sereno e demorado; e enfim pronunciou as frases mais longas da breve temporada que passei na cidade. - Leva um pouco de mel do interior para ela, é o que mais gosta – disse enquanto dava corda no relógio de parede. - Emilie Já está acordada? – perguntei. - Dizem que tua avó há muito tempo não dorme; ela sonha dia e noite contigo, com teu irmão e com os peixes que vai comprar de manhãzinha no mercado; a essa hora já deve estar de volta para conversar com os animais. (HATOUM, 2017, p. 9-10 – grifo nosso) O trecho apresenta uma informação de tempo importante: no momento em que a narradora enuncia o discurso, ela se encontra fora da cidade; os acontecimentos narrados são anteriores ao tempo da enunciação. A temporada na cidade foi breve, ela diz. Nesse trecho também, é mencionado o carinho de Emilie pela narradora e pelo irmão, o laço afetivo de uma avó para com seus netos, mas não fica explÃcita nenhuma informação sobre doença, que pudesse gerar na narradora a expectativa da morte da avó. No trecho seguinte a apresentação de personagens relevantes, que compõem o núcleo dessa famÃlia adotiva: Sim, com certeza Emilie já lhe havia contado algo a nosso respeito. A mulher sabia que éramos irmãos e que Emilie nos havia adotado. Talvez já soubesse da existência dos quatro filhos de Emilie: Hakim e Samara Délia, que passaram a ser nossos tios, e os outros dois, inomináveis, filhos ferozes de Emilie, que tinham o demônio tatuado no corpo e uma lÃngua de fogo. (HATOUM, 2017, p. 10) A narradora deixa a casa da mãe, logo pela manhã, com a intenção de visitar Emilie: “Já eram quase sete horas quando resolvi sair de casa. Retirei do alforje o caderno, o gravador e as cartas que me enviaste da Espanha e coloquei tudo sobre uma mesinha de ônix†(HATOUM, 2017, p. 10). E, em seguida, temos um dado que aponta que a narradora enuncia o discurso narrativo, já ciente de tudo o que lhe aconteceria no futuro: “Por distração ou hábito, deixei no pulso o relógio. Nunca imaginei que naquele dia iria consultá-lo mil vezes, muitas inutilmente, outras para que o tempo voasse ou desse um salto inesperado†(HATOUM, 2017, p. 10 – grifo nosso). Então enquanto ela narra, todos os acontecimentos já são do conhecimento dela, porque estão no passado. Inclusive, quando ela narra a coincidência entre os sons da pancada do relógio e o trinado do telefone, tal acontecimento só fará sentido capÃtulos depois, quando ela dirá quem estava telefonando ou tentando fazer contato naquele instante: Foi nesse instante que a coisa aconteceu com uma precisão incrÃvel; mal posso afirmar se houve um intervalo de um átimo entre as pancadas do relógio da copa e o trinado do telefone. Os dois sons surgiram ao mesmo tempo, e pareciam pertencer à mesma fonte sonora. A coincidência de sons durou alguns segundos; no momento em que o telefone emudeceu, a criança arremessou a cabeça da boneca de encontro à s hastes do relógio, provocando uma sequência de acordes graves e desordenados, como os sons de um piano desafinado. As duas hastes ainda se chocavam quando ouvi a última pancada do sino da igreja. Só então corri para atender o telefone, mas nada escutei, senão ruÃdos e interferências. (HATOUM, 2017, p. 10-1) A narração da coincidência sonora, apesar de não fazer sentido no primeiro momento, é enfatizada pela narradora como uma “coisa de precisão incrÃvel†que foi interrompida pela ação da criança. Ela narra com certo grau de detalhamento o episódio, que fica em suspense, porque ela muda de assunto, voltando-se para o irmão, fazendo-o recordar de um tempo distante. Nesse momento, ocorre uma interrupção da narrativa, marcada pelo salto da página no romance e no tempo. Na outra página, ela faz referência ao ano de 1954, ano que marca o seu primeiro contato com a morte, a perda de Soraya Ângela e, muito provavelmente, o ano mais longÃnquo alcançado pela “memória†dela, uma vez que ela diz: “na minha passagem pela nossa infância: cidade imaginária, fundada numa manhã de 1954†(HATOUM, 2017, p. 11). O que ela narra desse ponto em diante? Episódios de sua vida, do tempo em que convivia com o irmão que ainda engatinhava. Daà podemos destacar algumas personagens importantes que são introduzidas: em primeiro lugar, a criança Soraya Ângela, que era filha de Samara Délia, única filha de Emilie; Hindié Conceição, grande amiga de Emilie; o marido de Emilie, que não tem o nome mencionado em toda narrativa; e a empregada Anastácia Socorro. A narrativa ganha um ritmo diferente, porque há uma série de episódios que a narradora resgata desse passado mais distante, bem antes de ela sair de Manaus: as artimanhas de Soraya Ângela, a sua triste morte por atropelamento, aos seis anos de idade e todo sofrimento vivenciado pela narradora que ainda era uma criança na época em que perdeu a prima. Mas, em um trecho, podemos ter a noção de que a narradora deixou Manaus já madura, pelo nÃvel da conversa que ela teve com a tia: Muitos anos depois da morte da filha, numa conversa que tivemos antes de eu deixar Manaus, tia Samara me disse que se arrependeu de ter sido feliz naquele instante. - Ainda era ingênua – desabafou ela. – Pensava que meus irmãos haviam me perdoado por ter tido uma filha, mas tudo não passou de uma encenação para conquistar a simpatia de minha mãe; Emilie pensou que eles tivessem quebrado o gelo comigo, mas só me cumprimentavam na frente dela; bajulavam a coitada e fingiam respeitar meu pai porque precisavam da chave da casa e de uns trocados para farrear; disse isso a minha mãe e sabes o que ela me respondeu? Tua filha nasceu surda e muda e tu estás ficando insensÃvel; teus irmãos te adoram, à s vezes são incompreensÃveis contigo porque ainda são meninos: a adolescência é a idade da rebeldia. (HATOUM, 2017, p. 13 – grifo nosso) Sobre o avô e a sua relação com ele, a narradora diz: Na verdade, ao elogiar a filha ele se mostrava mais lúcido que nunca. A sua fama de homem sisudo, austero e manÃaco se diluiu com o tempo, e dos comentários apressados sobre a sua personalidade, restou a verdade unânime de que ele era antes de mais nada uma pessoa generosa que cultuava a solidão. Foi ele que me ajudou a sair da cidade para ir estudar fora, e além disso nunca se contrariou com a nossa presença na casa, desde o dia em que Emilie nos aconchegou ao colo, até o momento da separação. (HATOUM, 2017, p. 20) Embora ela e o irmão soubessem de sua origem, em nenhum momento são ditas as condições que os levaram a ser adotados pela famÃlia, e, como se pode ver, o tratamento dispensado aos dois era o mesmo dispensado ao restante da famÃlia: Desfrutamos os mesmos prazeres e as mesmas regalias dos filhos, e com eles padecemos as tempestades de cólera e mau humor de um pai desesperado e de uma mãe aflita. Nada e ninguém nos excluÃam da famÃlia, mas no momento conveniente ele fez questão de esclarecer quem éramos e de onde vÃnhamos, contando tudo com poucas palavras que nada tinham de comiseração ou de drama. (HATOUM, 2017, p. 20) Logo se nota que essa narradora deixa algumas informações suspensas: nem nos momentos de representação da fala dos personagens em diálogo, ela revela seu nome, assim como não diz o nome do irmão. O nome do avô também não é dito. Também não é informado nada sobre a identidade dos pais biológicos, as razões que ocasionaram a adoção do casal de irmãos. Essas lacunas aumentam o mistério dessa narradora, que está inserida na história que narra. E podemos divisar claramente e basicamente três tempos em que ela se situa: o tempo da enunciação do discurso, pois as marcas presentes no texto já evidenciaram que a narração inteira não acontece no mesmo tempo: em um momento ela se encontra em Manaus e, em outro, ela está fora de Manaus. Quanto à sua posição dentro da história, ela narra os acontecimentos que ocorreram desde o perÃodo em que esteve internada em uma clÃnica em São Paulo até a sua viagem a Manaus, tempo mais próximo ao da enunciação do discurso. E, depois, ela narra os acontecimentos de um passado mais distante, vinculados à sua infância. A diferença dos tempos é que sinaliza e ajuda a diferenciar as sequências de acontecimentos. Nesse sentido, a narrativa “moldura†da história é a da viagem para Manaus, tanto que, em dado momento, a narradora retorna do passado mais longÃnquo, em que ela trata do relógio de Emilie, para o tempo da viagem, em que todos aguardavam pela chegada de Hakim: Eu também sempre fui ávida de desvendar o motivo do interesse de Emilie pelo relógio. Sabia que entre os tios, apenas Hakim era uma fonte de segredos. No momento em que ele desembarcou, Emilie já tinha expirado. Chegou no inÃcio da noite de sexta-feira, depois de mais de dez horas de um voo complicado e cheio de escalas. [...] Chegou também com um pouco de esperança, pois tio EmÃlio, discreto e comedido, evitou falar a verdade ao sobrinho. Avisou por telefone que Emilie estava mais triste e saudosa que idosa, e implorou a presença dele antes do pôr-do-sol daquela sexta-feira. (HATOUM, 2017, p. 30-1 – grifo nosso) A sexta-feira marca o dia seguinte à chegada da narradora a Manaus e o dia em que Emilie faleceu. O acontecimento da morte é o que motiva também a ida de Hakim à cidade. É nessa oportunidade que a narradora e Hakim combinam um encontro: O encontro aconteceu na noite do domingo, sob a parreira do pátio pequeno, bem debaixo das janelas dos quartos onde havÃamos morado. Na manhã da segundafeira tio Hakim continuava falando, e só interrompia a fala para rever os animais e dar uma volta no pátio da fonte, onde molhava o rosto e os cabelos; depois retornava com mais vigor, com a cabeça formigando de cenas e diálogos, como alguém que acaba de encontrar a chave da memória. (HATOUM, 2017, p. 34). Ao final desse trecho, ocorre uma mudança de capÃtulo, em que a narradora cede a palavra a Hakim, que irá falar também sobre a sua curiosidade em torno do relógio da mãe. Observamos que a narradora dá um salto no tempo, pula do dia do sepultamento para o domingo à noite. No capÃtulo 6, em que retorna como instância do narrar, a narradora conta aquilo que foi suprimido nesse capÃtulo 1: o que ela fez quando saiu da casa da mãe para ir ao encontro de Emilie? O que aconteceu? No capÃtulo 6, encontramos os acontecimentos da sexta-feira. Vejamos como inicia o capÃtulo: “Menos de quinhentos metros separavam a casa onde nossa mãe morava da de Emilie. Ao longo dessa breve caminhada, impressionou-me encontrar certos espaços ainda intactos petrificados no tempo†(HATOUM, 2017, p. 137). A narradora vai apreciando cada detalhe do caminho, a fim de se recordar do que existia no passado e que não conseguia mais enxergar ali: Quando cruzei o portão de ferro da casa de Emilie, também estranhei a ausência dos sons confusos e estridentes de sÃmios e pássaros, e o berreiro das ovelhas. A porta da entrada estava trancada e, através do muro vazado, vi o corredor deserto que terminava no patiozinho coberto pelas folhas ressecadas da parreira e uma parte do pátio dos fundos. A casa toda parecia dormir, e foi em vão que bati à porta e gritei várias vezes por Emilie. Lembrei-me então das palavras da empregada: Emilie devia estar voltando do mercado, carregando a cesta repleta de peixes e frutas e legumes que numa manhã distante se espalharam sobre as pedras cinzentas que já foram cobertas pelo asfalto, deixando incerto o lugar onde o corpo da menina tombara. (HATOUM, 2017, 138-9) Lembrando-se do local onde ocorrera o acidente que matou Soraya Ângela, a narradora espera por um sinal de Emilie em vão. Nesse momento, ela decide “perambular pela cidade, dialogar com a ausência de tanto tempo, e retornar ao sobrado à hora do almoço†(HATOUM, 2017, p. 139). Segue desse ponto em diante a narração do caminho feito por ela nos arredores do centro da cidade, onde ela enxerga uma porção de misérias. “Há quase vinte anos passados fora†(HATOUM, 2017, p. 141) da cidade, depois de andar pelo porto e pela praça, quando ela se depara com uma figura conhecida: Tu não imaginas o susto que eu levei ao sentir uma pessoa estranhÃssima se aproximar, alguém que visivelmente não era turista nem da terra, uma figura vestida de branco, altÃssima [...] Ao escutar minha voz engrolada, o rosto dele se iluminou, como se as palavras diluÃssem a amargura de uma fisionomia outrora serena. Ele abriu os braços e disse: “Du hier, Mädchen?!†(HATOUM, 2017, p. 146-7) Ela encontra Dorner, o amigo fotógrafo alemão, com quem conversa: A sua discrição ajudou-me a silenciar sobre a minha vida. Ao notar um quê de curiosidade nos seus olhos, apressava-me a perguntar alguma coisa, fingindo interesse, pinçando um detalhe que havia escapado. Mas ao tentar me esquivar de sua curiosidade, acabava enveredando por trilhas indesejáveis de sua vida. Conversar era roubar uma crença, violar um segredo do outro. Para quebrar o silêncio e evitar uma revelação, recorrÃamos ao destino dos amigos. [...] se exaltou ao lembrar de tio Hakim. Não desconfiávamos que naquele instante ele estaria a caminho de Manaus. (HATOUM, 2017, p. 149) Esse trecho é um dos que bem ressaltam essa caracterÃstica subjetiva e introspectiva da narradora. Enquanto ela deseja se distanciar daquilo que poderia vir a ser matéria de narrativa, isto é, episódios e acontecimentos de sua vida, ela prefere fugir. Essa conversa é apenas comentada por ela, não havendo nenhuma representação em forma de diálogo no texto. Nesse sentido, todas as impressões sobre esse encontro são extremamente subjetivas. Nessa ocasião, Dorner entrega a ela uma folha de papel com dois versos que evoca na narradora a imagem de um cometa. A presença de Dorner, que nem era alguém tão próximo a ela, como ela diz no texto, parece servir para ilustrar melhor a imagem de seu irmão. Dorner dava aulas de alemão para o garoto e era com ele que o fotógrafo tinha uma relação. Vejamos como, em alguns momentos, isso se expressa no texto: “Os versos, o seu olhar melancólico e, sobretudo, o silêncio não eram maneiras sutis de recorrer a uma presença impossÃvel? Porque parecia que tudo o que ele dizia, ou poderia ter dito, ou queria ter dito, era dirigido para ti; ou se precipitava rumo ao passado (HATOUM, 2017, p. 152) A aparição de Dorner não tem nenhuma função no desenvolvimento da história no sentido de não revelar nada e nem realizar qualquer ação que interfira nos acontecimentos seguintes. Após a despedida dos dois, quando ela decide retornar do passeio, começa a consultar o relógio sem saber exatamente por quê; faz um percurso maior do que o necessário para chegar à casa de Emilie: “Talvez quisesse adiar o encontro com Emilie, afastar-me do sobrado naquele instante ou suprimir da caminhada o espaço inconfundÃvel da nossa infância†(HATOUM, 2017, p. 154). A imprecisão dos seus sentimentos vai configurando essa narradora sempre muito subjetiva, sempre presa aos próprios sentidos e percepções de tudo ao seu redor. Até que a presença de uma personagem, dessa vez, modifica o curso dos acontecimentos: Abrindo um clarão entre as pessoas, eu a vi surgir e correr na minha direção, vestida de negro, os cachos de cabelo caindo até os ombros. Com os braços abertos gritava palavras incompreensÃveis, chorava, e do seu rosto molhado saltavam duas esferas em chamas. O seu gesto desesperado e decidido me fez entender que eu não devia entrar na casa, que me afastasse dali, pois tudo estava perdido. Hindié me enlaçou com os braços e despejou todo o corpo opulento sobre o meu; ficamos assim, de pé, abraçadas no outro lado da rua, e eu escutava entre soluços o disparo ardente do coração de uma mulher que acabara de perder uma amizade de meio século. (HATOUM, 2017, p. 155) A morte enquanto acontecimento é contada de forma bastante emocionada por Hindié, com gritos, choro, palavras incompreensÃveis, gestos desesperados que impedem a narradora de prosseguir com a ação programada, entrar na casa de Emilie. Então ela retornou à casa da mãe, onde encontrou a empregada chorando a morte da mulher. Já em casa, a narradora reflete: “Subi ao quarto e fiquei pensando no gesto de Hindié, que não me deixara entrar na casa enlutada. Para que atravessar a rua, se além do portão reinava o rumor de curiosidade e dor, tantos olhares turvos diante da morte? (HATOUM, 2017, p. 155). Então, diz sobre a dor de ter adiado tanto o encontro com Emilie: Foi doloroso não ter visto Emilie, aceitar com resignação a impossibilidade de um encontro, eu que adiei tantas vezes essa viagem, presa na armadilha do dia-a-dia, ao fim de cada ano pensando: já é tempo de ir vê-la, de saciar essa ânsia, de enfronhar-me com ela no fundo da rede. (HATOUM, 2017, p. 155) Embora a narradora seja introspectiva, subjetiva e fale, na maioria das vezes, a partir do seu próprio lugar no espaço e no tempo, depois que fala do baque sofrido pela morte da avó, adota uma postura diferente ao narrar acontecimentos que nada tem a ver com a própria vida nem com os próprios sentimentos. Ela se porta assim ao narrar como costumava ser o dia-a-dia de Emilie, que já morava sozinha em seu sobrado: Todos os dias, à s sete horas, Hindié ia encontrar-se com a amiga. Na manhã de sexta-feira ela estranhou, como eu, o silêncio da casa. Hindié sempre levava dentro do corpete o rosário de contas e as chaves do sobrado. Ela entrou pelo portão lateral e, antes de chegar no pátio dos fundos, teve um pressentimento funesto. “Os animais, filha, nem se mexeram quando entrei no pátioâ€, disse Hindié. Parecia que todos os olhos eram um só, unidos por uma melancolia atroz. (HATOUM, 2017, p. 157) Essa breve objetivação na forma como narra se deve à presença da personagem, Hindié Conceição, que informa os episódios sobre a amiga para a narradora, dando a ela conhecimento de acontecimentos que esta não presenciou. É Hindié quem diz à narradora como Emilie se encontrava quando foi achada pela amiga, por isso, a narradora, que tem conhecimento limitado, é capaz de falar que: “Emilie estava inerte, já quase sem vida, e o fio do telefone estava enroscado no pescoço e nos cabelos dela; o auricular sumia na sua mão direita, e a outra mão cobria os seus olhosâ€. (HATOUM, 2017, p. 157). Essa informação a faz lembrar daquela coincidência de sons entre o relógio e o trinado do telefone de manhã, enquanto se arrumava para ir ao encontro da avó: “Lembrei-me assustada de que, de manhãzinha, antes de sair de casa, havia escutado o telefone tocar duas ou três vezes. Talvez tenha sido o último apelo de Emilie, a sua maneira de me encontrar e dizer adeusâ€. (HATOUM, 2017, p. 157). Estando próxima a Hindié, o capÃtulo 6 é finalizado pela narradora, que conta os procedimentos feitos pela mulher ao descobrir a amiga naquele estado. Também é essa mulher que vai contar episódios da vida de Emilie, principalmente de sua relação com os filhos. Percebe-se um novo salto no tempo: numa manhã de domingo, a conversa com Hindié rende todo o capÃtulo 7 do romance. E eu, que me recusei a velar o corpo de Emilie, ouvi de Hindié a narração de cenas e diálogos; ela gesticulava muito, falava com uma voz meio travada, e quando nos olhos estriavam uns fios vermelhos ela saÃa da cadeira e vinha me abraçar e me beijar. Aqueles olhos graúdos ainda ardiam na manhã do domingo, e os cabelos amarelados e soltos pareciam imprimir no rosto dela uma aflição bem próxima do desespero†(HATOUM, 2017, p. 161) O capÃtulo 8, em que a narradora reassume a instância do narrar, inicia com o silêncio de Hindié Conceição, após a longa fala. No fim da manhã de domingo, nada mais acontece. Então, a narradora retoma os acontecimentos do inÃcio da tarde de sexta-feira, quando recebe uma ligação de Yasmine, amiga de Emilie, informando tudo sobre o sepultamento da avó e a chegada de Hakim. A narradora preferiu chegar ao fim de tudo: “Preferi não sair do carro, a fim de permanecer à margem da cerimônia fúnebre. Aquela tarde extenuante terminou na casa de Emilie, onde encontramos tio Hakim, sozinho†(HATOUM, 2017, p. 179). O relato dessa viagem termina na página 181, quando a narradora conta que só visitou o jazigo da avó no dia seguinte, sábado. Ela encontra Adamor Piedade, que trabalhava no cemitério há anos, e ele a reconhece como a prima de Soraya Ângela, “a criança que chorou a morte de outra criança†(HATOUM, 2017, p. 179). Adamor conta a ela algo curioso: Mas no fim da madrugada do sábado ele foi surpreendido por uma voz grave, nem alta nem baixa: uma alternância de melodia e lamento, à s vezes interrompida bruscamente, dando lugar a uma breve quietude, a um sopro de silêncio. “Estou habituado a ouvir todo tipo de ladainhaâ€, disse, “mas aquela era diferente de todas.†Ele foi de encontro à voz, até avistar um vulto ao lado do jazigo da famÃlia. Não foi apenas a estranheza do canto que lhe chamou a atenção, mas também a posição do corpo: nem de joelhos, nem deitado, meio agachado, com os dois braços estirados para as bandas do sol nascente. (HATOUM, 2017, p. 180) A representação da fala de Adamor Piedade, assim como a de Dorner, não tem tanto espaço na narrativa. Quando esteve com Hakim e com Hindié Conceição, todo o curso da narrativa foi entregue aos dois, para que a expressão deles pudesse ser representada, ganhando espaço na narrativa. Já a conversa com Dorner e Adamor Piedade foi brevemente narrada, com a representação de algumas falas entre aspas e algumas com travessão. A pontuação é decididamente um dos aspectos relevantes dessa narrativa, quando se trata das representações das falas das personagens pela narradora. Tanto que, a fala de Adamor, um trecho antes, representada entre aspas, em seguida, aparece após um travessão: - Fiquei na espreita – continuou Adamor - , esperando um fiozinho da manhã; aà enxerguei um rosto que logo perdi de vista, pois a cabeça embiocava querendo procurar a terra, mergulhar no finzinho da noite, sumir. Depois é que percebi: aquele vozeirão não vinha da boca do tio Hakim; quem rezava era um objeto escuro: uma caixa preta sobre o túmulo do teu avô. Fiz o sinal da cruz, como muitos que passam ao lado deste túmulo e ficam abismados porque ali não há uma cruz, nem coroa de flores, nem imagem de santo, nenhum sinal de morto cristão. E ainda mais vendo aquele corpo sem voz murmurar, de costas para os defuntos... (HATOUM, 2017, p. 180) Sem dúvida, ainda não é possÃvel dizer algo concreto sobre essas diferentes escolhas feitas pela narradora, mas é necessário tomar nota disso, para observamos como esse procedimento ocorre nos capÃtulos em que ela cede a palavra à s personagens. Ela “finaliza†o relato sobre a viagem, conforme já foi dito, fazendo uma reflexão sobre a fala de Adamor. E, nesse momento, ela faz uma reflexão que sai do seu mundo interno, da sua vida particular e se direciona para um tema mais amplo: Eu mesma relutei em acreditar que um corpo em Manaus estivesse voltado para Meca, como se o espaço da crença fosse tão vasto quanto o Universo: um corpo se inclina diante de um templo, de um oráculo, de uma estátua ou de uma figura, e então todas as geografias desaparecem ou confluem para a pedra negra que repousa no Ãntimo de cada um. (HATOUM, 2017, p. 181) Na mesma página onde termina o relato da viagem começa a narração dos dias em que ela esteve na clÃnica de reabilitação. Dessa forma, “esse corte†feito no tempo, na narrativa, torna o texto fragmentado. Notamos que as divisões dos capÃtulos, os saltos de página e até mesmo os espaçamentos de um parágrafo para outro, como esse da página 181, não obedecem a uma lógica da própria história, nem do tempo. A narrativa parece assumir a forma dos retalhos de tecido feitos por ela na clÃnica. Seguindo a proposta de uma tipologia do narrador de Wolf Schmid e, levando em conta todos os dados que observamos ao longo do texto, expressaremos no quadro a seguir as caracterÃsticas dessa narradora, a fim de pensarmos um tipo para ela. Ao traçarmos um tipo, verificaremos as narrações nos demais capÃtulos e compararemos os procedimentos nas falas de Hakim e de Hindié Conceição. Critérios Narradora Modo de representação ExplÃcita Status diegético Diegética Hierarquia Primária Grau de marcação Fortemente marcada Personalidade Pessoal Homogeneidade de sintomas Difusas Posição avaliativa Subjetiva Competência Conhecimento limitado Ligação espacial Fixa em lugar especÃfico Introspecção Com introspeção Confiabilidade Não confiável SCHMID, W. 2010, p. 69 3.4 Leitor FictÃcio ou destinatário Não fica muito difÃcil, seguindo esta análise, afirmar que o leitor fictÃcio no esquema dos nÃveis de comunicação é o irmão da narradora, uma vez que ela escreve todo o relato para ele e se remete a ele a todo momento. A obra que estudamos, nesse caso, tem dupla destinação: uma fictÃcia e uma real. A primeira destinação, podemos dizer, no plano da ficção, é o leitor fictÃcio, o irmão, que não aparece na história, não tem “presençaâ€, tampouco alguma autonomia enquanto personagem. Não existe diálogo entre a narradora e seu leitor fictÃcio, porque ele não responde. Não existe “um capÃtulo†para representar, pela fala, essa personagem tão lembrada por ela, por Emilie, por Dorner; não há trechos de cartas, exceto algumas frases e reflexões que ela atribui ao irmão. Não se pode nem falar da questão da ausência do nome, porque outros personagens também não recebem nome, tal como ela mesma não se nomeia. O que sabemos sobre o leitor fictÃcio o sabemos pelas projeções realizadas pela própria narradora. A segunda destinação é o leitor abstrato, esse que, no plano da obra, mesmo sendo uma projeção virtual, extrapola a fronteira da ficção, porque é materializado sempre na figura de um leitor real. Nesse sentido, leitor fictÃcio e leitor abstrato são instâncias diferentes que não devem ser confundidas. Schmid coloca que Em princÃpio, toda narrativa cria um leitor fictÃcio (assim como todo texto cria um leitor abstrato como destinatário presumido ou receptor ideal), uma vez que signos indiciais que apontam para sua existência, não importa quão fracos eles possam ser, nunca podem desaparecer completamente. (SCHMID, 2010, p. 82) Em Relato de um certo Oriente, o leitor fictÃcio é muito bem marcado, tanto quanto a própria narradora é. Schmid inclusive afirma que “quanto mais marcado for o narrador, mais evocará uma determinada imagem da contraparte à qual se dirige†(SCHMID, 2010, p. 82). Podemos identificar uma caracterÃstica importante da narradora no texto, quando avaliamos a sua relação com o seu destinatário: a narradora utiliza essa figura como uma “orientação†para como vai narrar os acontecimentos. A orientação é o “alinhamento do narrador com o destinatário, sem o qual não pode haver comunicação compreensÃvel. A orientação no destinatário só pode ser reconstruÃda naturalmente à medida que influencia o modo de representaçãoâ€. (SCHMID, 2010, p. 83). A orientação da narradora de Hatoum leva em consideração dois aspectos: “os códigos e normas que presumem as ações do destinatário†(SCHMID, 2010, p. 83) e, nesse sentido, estamos falando do conhecimento que ela tem do que pensa o próprio irmão dela, de como ele avalia a famÃlia adotiva, a cidade de Manaus, a própria mãe biológica e; segundo, já que ela conhece bem o seu destinatário, ela é capaz de antecipar certos comportamentos dele, tanto que ela fala um pouco da rotina na clÃnica de reabilitação, porque isso é algo que interessa a ele. Ela não se demora muito falando da má relação com a mãe biológica, porque sabe que com ele a relação se deu de forma diferente. Nesse sentido, a narradora tem claramente a noção de que seu interlocutor não é alguém passivo, que só receberá o conteúdo da narrativa: ele vai julgar, assumir posições, levantar questões, como ela deixa parecer muito bem. Como podemos avaliar a posição da narradora no instante em que, no capÃtulo 2, a fala de Hakim é representada? E do mesmo modo, no capÃtulo 7, quando é a fala de Hindié Conceição que aparece manifestada? 4. PERSPECTIVA DO NARRAR De fato, o belo se encontra na extensão e na ordenação, eis por que um ser vivente não seria belo se fosse muito pequeno (pois a visão se confunde na duração que se constitui de modo imperceptÃvel), assim como também não o seria se fosse muito grande (pois a visão não se constituiria numa única visada, escapando à percepção dos espectadores a unidade e a totalidade), tal como ocorreria no caso de um ser que medisse dez mil estádios. Aristóteles 4.1 Os acontecimentos como objeto da perspectiva Quando W. Schmid chamou a atenção para a categoria da Perspectiva nos estudos narratológicos, ele quis distinguir tal categoria de uma tipologia do narrador. O teórico tece crÃticas à diversidade de tipologias criadas que disputaram entre si o alcance de um maior grau de diferenciação: Enquanto Percy Lubbock (1921) distinguiu apenas quatro tipos de narrador ou de perspectiva, Norman Friedman (1955) chegou a oito, e Wilhelm Füger (1972) conseguiu encontrar doze tipos (ver a visão geral por Lintvelt 1981, 111-76). No entanto, os sistemas dessas tipologias bem diferenciados nem sempre são convincentes e a sua utilidade não é de forma alguma evidente. Esses sistemas, muitas vezes, confundem o tipo de narrador com o tipo de perspectiva e definem os critérios subjacentes imprecisamente. Além disso, nem todos os tipos de narrador obtidos pela combinação de critérios estão comprovados na literatura. Essas três falhas podem ser vistas na tipologia de Füger, na qual mais se observa a ambivalência da dicotomia “posição externa – posição interna†do narrador. Da mesma forma, como Erwin Leibfried (1970, 245-48), de quem esta oposição foi tomada de empréstimo, Füger mistura duas categorias: (1) a presença do narrador na história narrada e a (2) perspectiva do narrador. (SCHMID, 2010, p. 66) Sabendo que a confusão entre tipologia e perspectiva tem sido uma questão dentro do histórico do debate teórico da narratologia, Schmid descreve o fenômeno que, para ele, é uma categoria central dessa teoria, também conhecida como teoria do “ponto de vista†ou da “focalizaçãoâ€. O conceito “ponto de vistaâ€, dentro da teoria anglo-saxã, foi introduzido pelo inglês Henry James, no ensaio A arte da Ficção (1884), e desenvolvido no prefácio de suas novelas; posteriormente, “o conceito foi sistematizado por Percy Lubbock como ‘a relação do narrador com a história narrada’(1921)†(SCHMID, 2010, p. 89). Nas teorias alemãs se popularizou o termo “perspectivaâ€, mas, desde a década de 1980, com os estudos de Gérard Genette, o termo “focalização†ganhou bastante notoriedade e aceitação nos estudos de Narratologia pelo mundo. Para além dessas diferenças de nome, há outras diferenças que valem a retomada da teoria para a elaboração de uma nova proposta. Schmid coloca que: A variedade de concepções existentes da perspectiva nos estudos literários não é baseada tanto na diferença de terminologia ou nos diferentes princÃpios que a sublinham, mas preferivelmente e acima de tudo, na divergência de conteúdo que se ligou ao conceito. (SCHMID, 2010, p. 89) Os diferentes conteúdos atribuÃdos ao conceito levaram Schmid a constatar a necessidade de maior investigação sobre o fenômeno, que ainda precisava de maiores esclarecimentos. Antes de dar a sua proposta de definição para o fenômeno, ele examinou os modelos mais influentes dessa teoria, dentre eles, a de Franz K.Stanzel, Gérard Genette e Mieke Bal22. Por nenhum dos modelos vistos expressarem, satisfatoriamente, a quais conteúdos se referem ao se projetar o conceito, Schmid propõe a questão: “O que poderia ou deveria significar ‘a perspectiva da narrativa’ no sentido narratológico?†(SCHMID, 2010, p. 99) e, em seguida, estabelece, “Perspectiva é definido aqui como o complexo formado por fatores internos e externos de condições para a compreensão e representação de acontecimentos.†(SCHMID, 2010, p. 99). Para Schmid, “não se aplica a perspectiva a uma história constituÃda, mas ao acontecimento que forma sua base†(SCHMID, 2010, p. 99). Contrariando outras referências sobre o assunto, como Genette, que postulou a “focalização zero†em seus estudos, Schmid defende que, sem perspectiva não pode haver história, uma vez que essa é constituÃda de acontecimentos submetidos à seleção e hierarquização de uma perspectiva. Ele coloca, ainda, que uma das premissas de seus estudos sobre o assunto “é que cada representação de realidade implica perspectiva nos atos de seleção, nomeação e avaliação de seus elementos†(SCHMID, 2010, p. 99). 22 Sobre a discussão teórica dessas referências e de outras de origem eslava, ler a introdução do capÃtulo sobre Perspectiva no trabalho de Schmid (2010). Nesse sentido, para Schmid, não se pode narrar um acontecimento, sem selecionar, dentre incontáveis aspectos, caracterÃsticas e momentos referentes a tal acontecimento; por essa razão, a seleção está sempre acompanhada de uma perspectiva. Assim, em relação ao romance de Hatoum, avaliamos ser pertinente a perspectiva para pensar, inicialmente, a questão da “compreensão e representaçãoâ€, enquanto “diferentes atos de narração†(SCHMID, 2010, p. 99) realizados pela narradora. Esses diferentes atos de narração dizem respeito ao fato de que um narrador pode representar um acontecimento de uma forma diferente da maneira como ele o compreende ou o havia compreendido. Para iniciar, ciente de que temos uma narradora diegética, podemos identificá-la em duas situações: a primeira situação diz respeito ao tempo presente da enunciação do discurso; enquanto ela narra, ela é um “eu narrando†(SCHMID, 2010, p. 76); a outra situação diz respeito a um tempo passado em relação ao discurso; a narradora narra acontecimentos dos quais ela mesma participa, porque ela faz parte da história, nesse sentido, ela é um “eu narrado†(SCHMID, 2010, p. 76) e, somente nesse aspecto, se assemelha a uma personagem como as outras. O eu narrado e o eu narrando da narradora de Relato de um certo Oriente estão submetidos a uma distância temporal e psicológica. A mulher adulta que narra os acontecimentos vividos na infância já não é a “criança que chorou a morte de outra criançaâ€. A mulher que narra está mais velha e viveu a experiência de uma clÃnica de reabilitação, em razão de surtos e outras complicações não descritas no texto, portanto, já passou por mudanças significativas. Existe uma correlação entre a perspectiva do eu narrando e do eu narrado? Ou podemos enxergar a predominância de uma sobre a outra? No primeiro capÃtulo, segunda parte, em que ela fala de Soraya Ângela, a narradora inicia o relato da morte da menina na página 14 e continua até a página 22 Estavas ausente naquela manhã. Emilie te levara ao mercado, os tios dormiam e Samara Délia madrugava na Parisiense com vovô. Tudo aconteceu de uma forma rápida e inesperada, como se o golpe fulminante da fatalidade perseguisse o corpo de Soraya Ângela†(HATOUM, 2017, p. 14). Nesse trecho, onde se observa o inÃcio da narração do acontecimento com Soraya Ângela, percebemos a perspectiva da narradora, ou ainda, a “perspectiva narratorialâ€, pois não há qualquer indÃcio de que a seleção, nomeação e avaliação dos acontecimentos sejam feitas por uma personagem. Na oposição perspectiva narratorial vs. figural, o segundo elemento é marcado. Isto significa: se a perspectiva não é figural (e a oposição de pontos de vista não é inteiramente neutralizada), ela se assemelhará à narratorial. Então, a perspectiva é narratorial não somente quando o narrador apresenta traços de compreensão e representação de um narrador individual, mas também quando o narrador aparenta-se “objetivo†ou contém somente traços Ãnfimos de um ser real refratado por algum tipo de prisma. Isto se dá porque o narrador está sempre presente na obra narrativa como um fornecedor de significado, mesmo se apenas por intermédio da seleção de elementos. (SCHMID, 2010, p. 106) A perspectiva narratorial é marcante em toda descrição que a narradora realiza sobre as frutas, as flores que faziam parte do jardim onde ela costumava brincar com a menina. A narradora compara o jambo a um coração de veludo, utiliza-se de adjetivações, do grau aumentativo e advérbio, como se pode ver no trecho seguinte. Inclusive, pode-se notar também, que a própria narradora sinaliza que só foi capaz de compreeder mais tarde a necessidade que Soraya Ângela tinha de cheirar por mais tempo as frutas e as flores, evidenciando o quanto o distanciamento temporal entre eu narrando e eu narrado interfere na forma de se representar os acontecimentos na narrativa: Soraya me ajudava e era curiosa a sua maneira de colher os jambos e as papoulas umedecidos pelo sereno. Permanecia um tempão a mirar a polpa desse coração de veludo que é jambo; as papoulas, as orquÃdeas e as flores ela cheirava demoradamente e mais tarde intuà que o odor e o olhar compensavam de certa forma a ausência dos dois sentidos. (HATOUM, 2017, p. 14-5 grifos nossos) Em seguida a narração do instante da morte de Soraya. Observamos não a cena do atropelamento, porque a narradora, como vimos na seção anterior deste trabalho, não tem uma visão holÃstica dos acontecimentos, por se encontrar espacialmente fixa, mas o momento em que a narradora percebe o baque, uma vez que tudo é narrado pela perspectiva narratorial: Eu, pasmada, olhando para a rua, e aquele baque surdo que parecia flutuar no vapor emanente das pedras cinzentas. Procurava Soraya ao meu redor, por detrás dos troncos, da folhagem que lambia a terra, fingindo encontrá-la, aceitando absurdamente a hipótese de que ela teria ido ao pátio ver os animais, banhar-se na fonte, pular a cerca do galinheiro e gesticular furiosamente diante do poleiro para que, em pânico, as aves passassem do sono à debandada caótica, soltando as asas, ciscando a terra e o ar, debatendo-se, encurraladas entre a cerca instransponÃvel e a figura lânguida que com seus excessos de contorções sequer a a ameçava. (HATOUM, 2017, p. 16 grifos nossos) Como a narradora era criança também, ela aceitou a possibilidade de Soraya não estar perto dela por outras razões que não a morte. A narradora enquanto eu narrado não pensava na morte como possibilidade, mas a avaliação do eu narrando, expressa pelas palavras “fingindoâ€, “absurdamenteâ€, revela a presença de duas perspectivas coexistindo no texto, a da narradora enquanto criança e enquanto adulta. Enxergamos aà a diferença entre compreensão e representação dos acontecimentos pela narradora, mas, sem dúvida, prevalece a perspectiva do eu narrando, pois as descrições daquele acontecimento tão marcante para a narradora são narrados pelo prisma da mulher já adulta, como se pode notar pela forma como ela avalia o comportamento de Soraya e dos bichos e pelo nÃvel da reflexão que ela realiza em torno da morte de Soraya: “a chance de ter sido escutada ou percebidaâ€, já que não podia falar. Esse aspecto pode ser visto com mais clareza ainda no trecho que vem logo em seguida ao anterior: Mas essa encenação matinal, presenciada com espanto e comiseração por todos nós, talvez fosse uma festa para Soraya, uma maneira de ser escutada ou percebida sem ter acesso à palavra, um parêntese no seu cotidiano (o galinheiro, o quintal, os animais) para escapar aos olhares, aos sussurros de constatação: ela não fala, não ouve, o seu corpo se reduz a um turbilhão de gestos no centro de um espetáculo visto com olhos complacentes. (HATOUM, 2017, p. 16) A narradora narra os acontecimentos da infância com a perspectiva do eu narrando, basta notar a seleção e avaliação de certos detalhes do passado. Ela cogita hispóteses de como se sentia Soraya Ângela diante do menino mais novo, levantando questões complexas que não poderiam ser levantadas por uma criança: Na mesa, à hora das refeições, tu e Soraya eram servidos pelas mãos de Emilie, sempre em movimento: descascando frutas, separando os alimentos para cada um de vocês, mas tu já podias negar ou aceitar a comida com poucas palavras, com monossÃlabos, enquanto Soraya resignava-se a afastar o prato, negacear com a cabeça ou curvá-la em direção ao prato, à s vezes olhando para ti, para tua boca, talvez pensando: “Quando me faltou a palavra?â€, ou pensando: “Em que momento descobri que não podia falar?â€, talvez vexada porque tu, com a tua pouca idade, já eras capaz de construir frases mal acabadas, fracionadas, desconexas, é verdade, mas com um movimento dos teus lábios, alguém reagia, alguém movia os lábios, o mundo ao teu redor existia†(HATOUM, 2017, p. 16-7) A narradora retoma o momento em que tirou Hakim do sono na rede, para lhe comunicar o ocorrido e conta o que viu na cena do acidente; como Emilie passou a tratar a boneca de Soraya Ângela e todos os outros brinquedos como objetos de recordação: A boneca, por exemplo, escapou ilesa do acidente e continuou guardada entre as coisas de Emilie, que proibiu a filha de queimar o brinquedo. Foi tio Hakim que fisgou a boneca das mãos das crianças, logo após o acidente. Eu o despertei balaçando a rede, e com o susto os óculos fixados na sua testa caÃram no chão. Estava grogue de sono e custou para desgrudar as pestanas [...] então chacoalhei a rede com força, e enquanto atirava as begônias, as flores e os caroços de frutas no rosto dele, soletrei não sei o que e apontei para a rua: o lugar do desastre. Ele deu um salto, olhou para mim e eu mergulhei na rede e fiquei pensando no clarão aberto no meio da rua, preocupada contigo, te procurando, mas só havia enxergado Emilie debruçada sobre um volume coberto por um lençol manchado de vermelho. (HATOUM, 2017, p. 21-2) Qual o lugar desse acontecimento na narrativa? A narradora narra a história de Soraya Ângela exatamente depois de “saltar†do momento em que o relógio e o telefone tocam ao mesmo tempo, significando a morte de Emilie. A narradora deixa de narrar essa morte, para narrar a outra mais distante, a que aconteceu em um tempo remoto: Foi uma das imagens mais dolorosas da minha infância; talvez por isso tenha insistido em evocá-la em duas ou três cartas que te escrevi; na tua resposta me chamavas de privilegiada, porque esses eventos haviam acontecido quando eu já podia, bem ou mal, fixá-los na memória. (HATOUM, 2017, p. 22) Depois de falar tudo o que podia sobre Soraya Ângela, o relógio de Emilie passa a ser o objeto de recordação da narradora. O objeto que fascinava Soraya Ângela, a única que não se incomodava com “as pancadas graves e intensas†(HATOUM, 2017, p. 26), era curioso para todos da famÃlia, que não compreendiam o porquê do apego de Emilie pelo objeto: “Para o meu avô, para todos nós, a aquisição exigente do relógio foi um mistério durante muito tempo†(HATOUM, 2017, p. 29). A narradora continua mais adiante: “Eu também sempre fui ávida de desvendar o motivo do interesse de Emilie pelo relógio. Sabia que entre os tios, apenas Hakim era uma fonte de segredos†(HATOUM, 2017, p. 30). O relógio, nesse sentido, é selecionado como o objeto que, por assim dizer, tematiza outros acontecimentos, porque, após o enterro de Emilie, esse é exatamente o assunto sobre o qual Hakim começa a falar. Ele, e não outro, era o mais indicado para responder à s perguntas curiosas sobre a mãe. O capÃtulo 2 do romance, que inicia com a fala de Hakim, foi lido em muitos estudos como um capÃtulo “narrado por Hakimâ€. O problema dessa afirmação, muitas vezes despretenciosa, é que um personagem não pode se tornar narrador, a menos que ele funcione “como um narrador secundário†(SCHMID, 2010, p. 69). Em outras palavras, seria necessário ele contar uma outra história, dentro da qual ele já existe como personagem. De outro modo, “o narrador, como portador da função narrativa, torna-se personagem apenas quando ele é narrado por um narrador de um grau mais elevado†(SCHMID, 2010, p. 69) e essa dinâmica precisa ser esclarecida, para que não sejam feitas afirmações ingênuas ou precipitadas. Hakim não conta uma outra história, inclusive, a própria “equivalência temática†(SCHMID, 2014, p. 11) representada pelo relógio enquanto um motivo, coloca a história no mesmo nÃvel. Precisa-se ainda levar em consideração o contexto da história no momento em que esse capÃtulo muda, pois a narradora e Hakim conversavam, tratava-se, portanto, de um diálogo cujo capÃtulo consiste numa epécie de enorme resposta aos apelos da narradora. 4.2 Perspectivas narratorial e figural no romance Quando Hakim diz ter tido “a mesma curiosidade na adolescência†(HATOUM, 2017, p. 35), está fazendo referência a algo dito anteriormente pela narradora, a uma pergunta implÃcita, já que a pergunta não é expressa no texto. Nesse sentido, temos a representação da fala da personagem pela narradora. A representação dessa longa fala, que se inicia na página 35, é interrompida na página 67, quando temos o inÃcio da fala de Dorner e, depois, da fala do marido de Emilie. Os capÃtulos 3, 4 e primeira parte do 5 não podem ser examinados como os capÃtulos 2, 5 e 7, uma vez que Hakim e Hindié Conceição estão de fato em diálogo com a narradora e tudo que é dito por eles é resultado da interação com a narradora. Diferentemente de Dorner e do marido de Emilie, que não estão em contato com a narradora. A fala de Dorner está contida na fala de Hakim e a fala do marido de Emilie está contida na fala de Dorner. A disposição dessas falas em capÃtulos diferentes criam no leitor a ideia de que estamos diante de narradores diferentes e estamos certos de que esse aspecto do texto já não está mais ao encargo da narradora e sim do autor, enquanto instância abstrata que deixa suas marcas na obra, pressupondo uma leitura ou interpretação esperada. Porém, antes de chegarmos aos capÃtulos referentes à fala de Dorner e do marido de Emilie, examinaremos como ocorre a perspectiva figural na fala de Hakim. Schmid propõe cinco parâmetros para a identificação da perspectiva: perceptiva, ideológica, espacial, temporal e linguÃstica; mas, nem sempre é possÃvel identificar indicadores para os cinco parâmetros. Anos depois, ao arrancar algumas palavras de Hindié Conecição é que a coisa ficou mais ou menos clara. Ela me contou uma passagem obscura da vida de Emilie. Minha mãe e os irmãos EmÃlio e Emir tinham ficado em TrÃpoli sob a tutela de parentes, enquanto Fadel e Samira, os meus avós aventuravam-se em busca de uma terra que seria o Amazonas. Emilie não suportou a separação dos pais. (HATOUM, 2017, p. 37) “Anos depois†marca o tempo sucedido após a primeira resposta de Emilie ao filho sobre o relógio e “obscura†consiste na avaliação que Hakim faz sobre o episódio da vida da mãe, que, no passado, ingressara no noviciado de Ebrin e só saiu de lá porque o irmão Emir ameaçou suicidar-se com um tiro nas têmporas. Hakim diz: Foi um golpe terrÃvel na vida de Emilie. Ela concordou em deixar o convento naquele dia, mas suplicou que a deixassem rezar o resto da manhã e tocar ao meiodia o sino anunciando o fim das orações. Foi a Vice-Superiora, Irmã Virginie Boulad, quem atribuiu a Emilie a tarefa de puxar doze vezes a corda do sino pendurado no teto do corredor contÃguo ao claustro. Essa atribuição fora fruto do fascÃnio de Emilie por um relógio negro que maculava uma das paredes brancas da sala da Vice-Superiora. Ao entrar pela primeira vez nesse aposento, exatamente ao meio-dia, Emilie teria ficado boquiaberta e estática ao escutar o som das doze pancadas, antes mesmo de ouvir a voz da religiosa. (HATOUM, 2017, p. 36) Ao advertir sobre a possibilidade de não se identificar os cinco parâmetros na identificação da perspectiva, seja narratorial ou figural, Schmid chama a atenção para uma análise básica: é preciso se questionar quem seleciona, avalia e nomeia os momentos em um determinado trecho de texto: Quem é responsável pela seleção de momentos dos acontecimentos em um dado trecho textual? A qual instância o autor responsabiliza o ato da seleção dos momentos de acontecimentos da história narrada: o narrador ou a personagem? Se a seleção de unidades narrativas corresponde ao horizonte da personagem, a pergunta é, se essas unidades são conteúdo atual da consciência do personagem ou se o narrador somente as reproduz de acordo com os modos da personagem de compreensão e pensamento. (SCHMID, 2010, p. 117) A seleção dos momentos de acontecimentos da história é da responsabilidade de Hakim, que tem o domÃnio desse conteúdo graças a Hindié Conceição, que lhe revelou essas passagens da vida da mãe. Percebemos também que essa seleção corresponde ao horizonte de Hakim, pois, ao mencionar determinados elementos do passado, como a estadia de Emilie no convento, ele atualiza as suas reflexões e conclusões quanto ao valor que a mãe atribuia ao relógio: “Talvez por isso Emilie parava de viver cada vez que o eco quase imperceptÃvel das badaladas da igreja dos Remédios pairava e desmanchava-se como uma núvem sobre o pátio onde ela polia os anjos de pedra após extrair-lhes o limo e os carunchos†(HATOUM, 2017, p. 37). Nesse sentido, a perspectiva perceptiva figural pode ser identificada por meio da seleção dos momentos, mas a linguagem, na expressão dessa percepção da personagem, não se altera. Não há nada que identifique a perspectiva figural linguÃstica. Inclusive há semelhanças muito grandes entre a linguagem da narradora e a do personagem. Na seção anterior, em que foram analisados os trechos referentes ao discurso da narradora, apontamos um aspecto linguÃstico muito caracterÃstico dela, suas constantes comparações e usos de metáforas para realizar descrições. A fala de Hakim não se distancia muito disso. Ele parece, inclusive, ter tanta sensibilidade e minuciosidade em suas descrições quanto ela ao dar conta de certos detalhes bastante especÃficos, dentre eles, o incômodo pelos “excessos†de Hindié Conceição: Hindié tratava qualquer criança como se fosse seu filho, despejando uma enxurrada de beijos, abraços e palavras carinhosas nas pequenas vÃtimas que moravam nos arredores de sua casa. Mas essa entrega parecia a manifestação de um sadismo requintado, pois o carinho exagerado que recebÃamos de uma mulher como Hindié dava-nos uma incômoda sensação fÃsica, sem a transcendência e naturalidade do gesto materno, que, para ser caloroso e sensual, não necessita de excessos nem de grandes encenações. Talvez por isso, quando criança, eu me sentia sufocado e acuado na presença de Hindié, não tanto pela feiúra e desleixo do seu corpo, e sim pela maneira que me seguia, ou melhor, me perseguia, com os dois braços abertos e agitados, que para o tamanho de uma criança, pareciam um par de tentáculos. (HATOUM, 2017, p. 39-40) Hakim recupera as impressões que tinha na infância sobre o toque da mulher, atualizando, segundo a perspectiva de um Hakim já adulto, o que lhe ocorria naquele tempo. Esse movimento também é muito semelhante ao da narradora quando lembra de passagens da infância dela. Observamos agora a descrição que Hakim faz do cheiro que sentia na infância de Hindié Conceição: Mas havia algo mais forte e repulsivo no corpo dela: o cheiro, o odor de azedume que flutuava ao redor daquela mulher como uma aura de fétidos perfumes. Na infância há odores inesquecÃveis. Durantes esses anos de ausência, não sei se seria capaz de recompor na memória o corpo inteiro de Hindié, mas o bafo que se despregava dela, mesmo à distância, me perseguiu como a golfada de um vento eterno vindo de muito longe. Meu pai dizia que era um cheiro mais enjoativo que o do gato maracajá. Com uma ponta de ironia, ele me segredava: se esta mulher entrar no mato, jaguatirica no cio vai lamber as pernas dela. (HATOUM, 2017, p. 40 – grifo nosso) Observa-se a presença da comparação na fala de Hakim, “me perseguiu como a golfada de um vento eterno vindo de muito longeâ€, o que faz lembrar as comparações feitas pela narradora, ricas em imagens. Se utilizássemos a linguagem, com o objetivo de diferenciar a perspectiva narratorial da figural, correrÃamos o risco de enxergar somente a narratorial. O curioso é que o tema da linguagem aparece de fato na fala de Hakim, quando ele diz mais adiante sobre como iniciou seus estudos de lÃngua árabe, depois que viu a mãe escrever um bilhete em árabe para o marido e passá-lo por debaixo da porta: Desde então, cresceu em mim um fascÃnio, uma curiosiade desmensurada pelas três linhas rabiscadas por Emilie e pela voz de meu pai. Já estava me habituando à quela fala estranha, mas por algum tempo pensei tratar-se de uma linguagem só falada pelos mais idosos; ou seja, pensava que os adultos não falavam como as crianças. Aos poucos me dei conta de que eles gesticulavam mais ao falar naquele idioma, e houve casos em que intuà ideias através dos gestos. (HATOUM, 2017, p. 54-5) Nas próximas três páginas, Hakim fala de como era curiosa aquela forma de falar, para ele, na infância. Ele recorda o que pensava sobre a fala dos pais, “linguagem dos mais idososâ€, caracterÃstica que os tornavam diferentes das crianças. Emilie, diante do interesse de Hakim pelo que ouvia, tomou uma decisão naquele tempo: Nessa noite, ao me acompanhar até o quarto, minha mãe sussurrou que no próximo sábado começarÃamos a estudar juntos o “alifebataâ€. Sentada na cama, me confidenciou que sua avó lhe ensinara a ler e escrever, antes mesmo de frequentar a escola. Para comentar a aprendizagem da lÃngua-mãe, me contou sucintamente como falecera, Salma, minha bisavó, aos cento e cinco anos de idade. (HATOUM, 2017, p. 55) Hakim recorda a ansiedade pelo dia em que teria sua primeira aula: “Esperei o sábado, ansioso para que evaporassem as horas e os minutos, redobrando a atenção quando o meu pai deixava escapar uma frase no outro idioma†(HATOUM, 2017, p. 56). Citaremos as passagens em que ele descreve a sua primeira aula, verificando que, curiosamente, nenhuma palavra em árabe é citada. As primeiras lições foram passeios para desvendar os recantos desabitados da Parisiense, os quartos e cubÃculos iluminados parcialmente por clarabóias: o corpo morto da arquitetura. Sentia medo ao entrar naqueles lugares, e não entendia por que o contato inicial com um idioma inaugurava-se com a visita a espaços recônditos. Depois de abrir as portas e acender a luz de cada quarto, ela apontava para um objeto e soletrava uma palavra que parecia estalar no fundo de sua garganta. (HATOUM, 2017, p. 56) A tentativa de uma “descrição fonológica†que Hakim faz se assemelha a de alguém que sente o idioma com o estranhamento da primeira vez, nesse sentido, ele recupera as suas impressões iniciais ocorridas na infância sobre a pronúncia das palavras. Do mesmo modo ele também descreve a sua descoberta da lÃngua escrita: ela escrevia cada palavra, indicando as letras iniciais, centrais e finais do alfabeto. Eu copiava tudo, esforçando-me para escrever da direita para a esquerda, desenhando inúmeras vezes cada letra, preenchendo folhas e folhas de papel almaço pautado. No fim da tarde, corria para mostrar ao meu pai as anotações, que ele corrigia [...]. Ela ensinava sem qualquer método, ordem ou sequência. Ao longo dessa aprendizagem abalroada eu ia vislumbrando, talvez intuitivamente, o halo do “alifebataâ€, até desvendar a espinha dorsal do novo idioma: as letras lunares e solares, as sutilezas da gramática e da fonética que luziam em cada objeto exposto nas vitrinas. (HATOUM, 2017, p. 57) A seguir as comparações, as metáforas cheias de imagem em torno das letras e da pronúncia: Passei cinco ou seis anos exercitando esse jogo especular entre pronúncia e ortografia, distinguindo e peneirando sons, domando o movimento da mão para representá-los no papel, como se a ponta do lápis fosse um cinzel sulcando com esmero uma lâmina de mármore que aos poucos se povoava de minúsculos seres contorcidos e espiralados que aspiravam à s formas dos caracóis, das goivas e cimitarras, de um seio solitário que a lÃngua ao contato com o dorso dos dentes e ajudada por um espasmo fazia jorrar dos lábios entreabertos um peixe FenÃcio. (HATOUM, 2017, p. 57) Dentre tantos outros episódio relatados: os objetos secretos que Emilie guardava, como correspondências, as festas em sua casa, Hakim fala em Emir, o irmão de Emilie que cometeu suicÃdio e cujo nome era pouco pronunciado em reuniões de famÃlia: “O nome de Emir quase nunca era mencionado nas horas das refeições ou nas conversas animadas por baforadas de narguilé, goles de áraque e lances de gamão†(HATOUM, 2017, p. 63). Emir é a segunda “equivalência temática†(SCHMID, 2014, p. 11), pois, ao falar nele, Hakim aciona uma conversa que teve com Dorner. Vejamos: Dorner fotografou Emir no centro do coreto da praça de PolÃcia. Foi a última foto de Emir, um pouco antes de sua caminhada solitária que terminaria no cais do porto e no fundo do rio. A história desse retrato me contou o próprio Dorner, anos depois, com palavras medidas para não revelar um fato atroz que eu já havia intuÃdo ao ler as cartas de Virginie Boulad. A foto contava o que Dorner não me pôde dizer: o rosto tenso de um corpo que caminhava em cÃrculo ou sem rumo; uma das mãos de Emir desaparecia no bolso da calça, e a outra mão acariciava uma orquÃdea tão rara que Dorner nem atinou ao desespero do amigo. (HATOUM, 2017, p. 67) O capÃtulo 3 inicia com a fala de Dorner, que tem Hakim como seu interlocutor, mas, diferentemente do que ocorre entre a narradora e Hakim, que estão juntos no tempo e no espaço, a fala de Dorner está no passado, é uma lembrança de Hakim. Do mesmo modo, é também uma lembrança de Dorner a fala do pai de Hakim. Caracterizaremos os capÃtulos 3 4, 5 e 7 de antemão como uma amostra mais acentuada da “super-determinação funcional†(SCHMID, 2010, p. 119) da fala das personagens no texto narrativo, isto é, enquanto essas falas: expressam, de um lado, os conteúdos figurais por outro lado, esses segmentos assumem a dupla tarefa de caracterização figural e de sustentação da narração. Isso significa que as palavras usadas por uma personagem falante intencionadas como ato comunicativo servirão, também, ao narrador em sua reprodução narrativa, à caracterização da personagem como a representação da história (diegese). (SCHMID, 2010, p. 119) Vejamos a fala de Dorner sobre Emir: Na manhã em que avistei Emir no coreto da praça, eu me encaminhava para a moradia de uma dessas famÃlias que no inÃcio do século eram capazes de alterar o humor e o destino de quase toda população urbana e interiorana, porque controlavam a navegação fluvial e o comércio de alimentos. (HATOUM, 2017, p. 68) O capÃtulo 3 inicia com essa equivalência temática. Emir é esse elo que interliga a fala de Hakim e a fala de Dorner e que não nos leva a concluir que Hakim se torna um narrador hierarquicamente secundário. Hakim não ascende ao status de narrador e, ainda que não esteja naquele mesmo tempo e espaço da enunciação do discurso ao lado de Dorner, o que se vê no texto é mais uma vez a representação de um diálogo, pois há marcas de interlocução na fala de Dorner. No trecho em que se observa a fala de Dorner, identificamos a perspectiva figural, uma vez que o fotógrafo menciona acontecimentos dos quais a narradora não participa e de cujos detalhes ela desconhece. Dorner foi o último a ver Emir antes do suicÃdio. No inÃcio de sua fala, Dorner se situa no tempo, no espaço e diz aonde pretendia ir naquele momento em que a tragédia ocorreu. A perspectiva figural do personagem fica evidente também pela presença bem marcada da avaliação de Dorner quando ele se refere à quelas famÃlias; há uma perspectiva ideológica da personagem sobre elas. Vejamos como a “super-determinação funcional†se desenvolve quando Dorner caracteriza Emir: Enquanto fazia as fotos da famÃia Ahler, eu pensava nas conversas que tivera com Emir, ele falava uma algaravia, era difÃcil compreendê-lo; me sentia diante de um narrador oral do norte da Ãfrica, ele tinha esse dom de narrar e convencer com a voz o interlocutor, com a voz, não exatamente com as palavras, porque muitas frases eram incompreensÃveis. Também não entendia o passeante solitário que de manhãzinha deixava o hotel FenÃcia, acordava um catraieira na beira do mercado, e na canoa os dois remavam até a outra margem do igarapé dos Educandos; depois ele continuava a pé, alcançava o centro da cidade, e eu o seguia pelas ruas estreitas, alinhadas por sobrados em ruÃnas. Não, Emir não era como os outros imigrantes, não se emaranhava no interior enfrentando as feras e padecendo as febres, não se entregava ao vaivém incessante entre Manaus e a teia de rios, não havia nele a sanha e a determinação dos que desembarcam jovens e pobres para no fim de uma vida atormentada ostentarem um império. Emir se esquivava de tudo, ele tinha um olhar meio perdido, de alguém que conversa contigo, te olha no rosto, mas é o olhar de uma pessoa ausente. (HATOUM, 2017, p. 69) Nessa transcrição de sua fala, identificamos a caractertização de Emir e não se trata de uma caracetrização qualquer: Ele diz que Emir “falava uma algaraviaâ€, Dorner não conseguia compreendê-lo. A relação feita entre o amigo e um narrador oral do norte da Ãfrica evidencia o conhecimento cultural do persoangem viajante. Dentre tantos aspectos de Emir, Dorner elege a voz do amigo como algo que convencia o interlocutor. O fotógrafo não esconde o quanto o amigo árabe era interessante aos seus olhos e o quanto atraÃa a sua atenção, ao ponto de dizer que Emir não era como os outros imigrantes, pois não ficava encantado pelo exótico, não se deixava atrair pelos caminhos aventureiros que aquele espaço continha. Emir não tinha os objetivos que os imigrantes que ali chegavam tinham em comum, pois carregava uma expressão desorientada, distante. As escolhas dessas caracterÃsticas são feitas em função da perspectiva figural de Dorner. Emir era diferente justamente porque ele era o contrário de Dorner, que se embrenhava pelos rios e se relacionava com Ãndios e toda a gente que vivia à s margens dos rios. A “super-determinação funcional†nesse caso serve à caracterização de uma personagem que não é conhecida pela narradora e à caracterização do próprio Dorner. Por meio da expressão de sua fala, de suas seleções, avaliações, compreendemos mais a seu respeito. Do mesmo modo, sua fala sustenta a narrativa, conferindo conteúdos para a história. Dorner fala de seus sentimentos em relação à essa morte: “Não sem um certo arrependimento, eu pensava: por que não levara Emir para a casa dos Ahler? Por que fotografá-lo com a orquÃdea na mão e deixá-lo vagar, atordoado, a um passo do desastre?†(HATOUM, 2017, p. 74). Como notamos nos demais capÃtulos, no discurso da narradora e na fala de Hakim, há na fala de Dorner também a presença de uma linguagem cheia de metáforas, que provoca um efeito estético: Nos sonhos, eu e Emir aparecÃamos à beira do cais, cujo limite era a espessa cortina do chuvisco num momento do dia marcado pelo silêncio. O que dizÃamos um ao outro não delineava exatamente uma conversa e sim um amálgama de enigmas, de vozes refratárias, pois recorrÃamos à nossa lÃngua materna, que para o outro nada mais era senão sons sem sentido, palavras que passam por um prisma invisÃvel, melodia pura tragada pelo vento morno, sons lançados na atmosfera e engolfados pela bruma. (HATOUM, 2017, p. 75) Além de essa fala do estrangeiro não ser representada nem por meio de uma palavra ou outra em alemão, ou ainda por uma estrutura sintática diferente, o que se observa é uma semelhança entre a linguagem do personagem alemão e da narradora. Dando prosseguimento à compreensão da “super-determinação funcional†de sua fala, Dorner conta como conheceu o pai de Hakim, ocasião em que encontraram o corpo do amigo no fundo de um igarapé: Quem encontrou o corpo foi Lobato, um Ãndio que teu pai conhecera antes de se casar com Emilie. Teu pai não era esquivo aos da terra, mas sempre foi imbuÃdo de uma indiferença glacial para com todos, inclusive os filhos, como tu deves saber. Interessava-lhe conferir mercadorias, lustrar vitrinas e sobretudo orar em alguma caverna de Hira, nos confins da casa ou da loja. Ele se encontrou com Emilie pela primeira vez no dia em que o corpo de Emir foi localizado. (HATOUM, 2017, p. 75-6) Dorner conta que foi o pai de Hakim que encontrou uma prova irrefutável de que o corpo achado no fundo do igarapé era mesmo de Emir e que isso o aproximou afetivamente de Emilie. “Ele retirou da algibeira uma caixinha, colocou-a na palma da mão direita e a ofereceu a Emilie†(HATOUM, 2017, p. 77) e se casaram meses após o enterro de Emir. A fala de Dorner também presta a uma caracterização de si mesmo, quando ele imagina como seria visto pelo casal de amigos, Emilie e o marido: “Nunca me perguntaram se eu era religioso, mas talvez condenassem secretamente este estrangeiro que vivia no mato entre os Ãndios, que nunca entrara numa igreja, e no entanto podia rezar uma Ave-Maria em nhengatu†(HATOUM, 2017, p. 77). Depois de dizer que presenciou o inÃcio da relação de Emilie com o marido, Dorner se dedica a falar desse personagem tão curioso, até para ele mesmo: “Aproveitei sua disposição para uma conversa (pois não poucas vezes ele sentenciou que o silêncio é mais belo e consistente que muitas palavras), e tentei sondar algo do seu passado†(HATOUM, 2017, p. 79). Nesse ponto da narrativa, há a interrupção da fala de Dorner, para a apresentação da fala do marido de Emilie, resultado de uma sondagem sobre o passado do muçulmano: “A mania que cultivei aqui, de anotar o que ouvia, me permitiu encher alguns cadernos com transcrições da fala dos outros. Um desses cadernos encerra, com poucas distorções, o que foi dito por teu pai no entardecer de um dia de 1929†(HATOUM, 2017, p. 79). A “equivalência temática†que conecta a fala de Dorner à fala do pai de Hakim é o passado do imigrante libanês, que chegou ao Brasil, para cumprir uma missão familiar, atender ao chamado de seu tio Hanna: Passados onze anos, talvez em 1914, Hanna enviou-nos dois retratos seus, colados na frente e no verso de um papel-cartão retangular; dentro do envelope havia apenas um bilhete em que se lia: “entre as duas folhas de cartão há um outro retrato; mas este só deverá ser visto quando o próximo parente desembarcar aquiâ€. Ao ler o bilhete, meu pai, dirigindo-se a mim, sentenciou: chegou a tua vez de enfrentar o oceano e alcançar o desconhecido, no outro lado da terra. (HATOUM, 2017, p. 81) A fala do muçulmano pode ser notada pela presença da perspectiva figural: quando recebeu a carta do tio, ele se encontrava em seu paÃs de origem e precisaria fazer esse deslocamento sentenciado pelo pai, “alcançar o desconhecidoâ€, “no outro lado da terraâ€. Atentamos para a linguagem marcadamente rica em comparações e metáforas e, sobretudo, para o tom religioso empregado nas descrições do personagem e que configuram a sua percepção dos elementos da natureza: Ansioso, esperei o amanhecer: a natureza, aqui, além de misteriosa é quase sempre pontual. Às cinco e meia tudo ainda era silencioso naquele mundo invisÃvel; em poucos minutos a claridade surgiu como uma súbita revelação, mesclada aos diversos matizes do vermelho, tal um tapete estendido no horizonte, de onde brotavam mirÃades de asas faiscantes: lâminas de pérolas e rubis; durante esse breve intervalo de tênue luminosidade, vi uma árvore imensa expandir suas raÃzes e copa na direção das nuvens e das águas, e me senti reconfortado ao imaginar ser aquela árvore do sétimo céu. (HATOUM, 2017, p. 82 grifo nosso) A descrição do céu e do horizonte na ótica do recém-chegado à nova terra enfatizam, portanto, a presença da perspectiva figural: “Antes das seis, tudo já era visÃvel: o sol parecia um olho solitário e brilhante perdido na abóboda azulada; e de uma mancha escura alastrada diante do barco, nasceu a cidade†(HATOUM, 2017, p. 82). A seguir, destacamos outros trechos para mostrar o quanto a fala da personagem cumpre, nesse capÃtulo 4, a “superdeterminação funcional†de caracterização e de sustentação da narrativa: “Morei alguns anos no povoado, conheci os rios mais adustos e logo aprendi que o comércio, além das quatro operações elementares, exige malÃcia, destemor e descaso (senão desrespeito) a certos preceitos do Alcorão†(HATOUM, 2017, p. 85). O capÃtulo 4, o mais curto de todos, com sete páginas, finaliza com o personagem contando como conheceu Emilie. As quatro primeiras páginas do capÃtulo 5 trazem a continuação da fala de Dorner, interrompida no fim do capÃtulo 3: “Foi assim que teu pai resumiu sua vinda ao Brasil, numa tarde em que o procurei para puxar assunto. Curiosa era a maneira como se dirigia a mim: sempre olhando para o Livro aberto†(HATOUM, 2017, p. 87). O texto do capÃtulo 4 é o único que não apresenta marcas de interlocução, o que serve à caracterÃstica do personagem, homem de poucas palavras, não habituado a conversas. Dorner conta a Hakim, no capÃtulo 5, sobre uma influência: O convÃvio com teu pai me instigou a ler As mil e uma noites, na tradução de Henning. A leitura cuidadosa e morosa desse livro tornou nossa amizade mais Ãntima; por muito tempo acreditei no que ele me contava, mas aos poucos constatei que havia uma certa alusão à quele livro, e que os episódios de sua vida eram transcrições adulteradas de algumas noites, como se a voz da narradora ecoasse na fala do meu amigo (HATOUM, 2017, p. 90) Trata-se da única referência feita ao clássico famoso no romance e que ainda sim é feita na perspectiva figural do personagem alemão diante do amigo muçulmano árabe. Essa fala serve à caracterização dos dois personagens: Tanto um quanto o outro eram amantes de literatura e cultuavam as grandes obras; há uma passagem em que Dorner diz ter trocado todo seu laboratório e material fotográficos por uma biblioteca com obras raras. Nesse sentido, a perspectiva figural presente na fala de Dorner faz uma alusão a algo muito importante, para o qual a nossa análise encaminha: a identificação de indÃcios da presença do autor na obra. Observamos esse trecho em que o alemão continua a caracterizar o amigo árabe, vejamos, inclusive a beleza e o sentido da frase que constitui o primeito perÃodo: Às vezes, a leitura de um livro desvela uma pessoa. Mas o curioso é que ele sempre deixava uma ponta de incerteza ou descrédito no que contava, sem nunca perder a entonação e o fervor dos que contam com convicção. Os fatos e incidentes ocorridos na famÃlia de Emilie e na vida da cidade também participavam das versões confidenciadas por teu pai aos visitantes solitários da Parisiense. O que me fez pensar nisso foi a coincidência entre certas passagens da vida de outras pessoas, que mescladas a textos orientais ele incorporava à sua própria vida. Era como se inventasse uma verdade duvidosa que pertencia a ele e a outros. Fiquei surpreso com essas coincidências, mas, afinal, o tempo acaba borrando as diferenças entre uma vida e um livro. (HATOUM, 2017, p. 90 grifo nosso) Assim finaliza a fala de Dorner. Ao longo da observação da fala desse personagem e da fala dos demais e da descrição do tipo de narradora que identificamos nesse romance, não não foi possÃvel notar qualquer diferença entre o discurso da narradora e as falas das persoangens, a não ser pela alteração da perspectiva. A constante presença dos verbos em primeira pessoa e de dêiticos que situam os personagens no espaço e no tempo contribui para que enxerguemos semelhanças quanto à forma como a narradora se expressa, com seus traços diegéticos, marcas de pessoalidade, subjetividade e de instrospecção, e as persoangens isto é, podemos atribuir à fala das personagens os mesmos sintomas que encontramos no discurso da narradora; tanto ela, quanto eles, demonstram limitação do conhecimento sobre os fatos, o que torna mais relevante as mudanças de perspectiva narratorial e figural no texto. No estudo teórico de Schmid, a análise dos sintomas da linguagem presentes no discurso do narrador aparece no estudo da Perspectiva, em que o estudioso mostra a possibilidade de diferentes variantes linguÃsticas contribuÃrem para a identificação da perspectiva narratorial ou figural. Em Relato de um certo Oriente, examinar a perspectiva linguÃstica não ajuda a perceber as diferenças entre o que é discurso do narrador e a fala da personagem, muito pelo contrário, esse exame nos diria que são uma coisa só. Não é uma variação de nÃvel de linguagem ou de qualquer natureza sintática que chama atenção no texto quando se quer examinar discurso e fala, mas uma semelhança de caráter estético, pois todas as falas, incluindo o discurso da narradora, são carregadas de uma linguagem rica em metáforas; existe uma beleza estética na fala dos personagens que acompanha a mesma caracterÃtica presente no discurso da narradora. Não é difÃcil compreender por que é muito fácil imaginar que cada personagem desses seja também narrador da história, pois a cada um deles é dada uma função muito semelhante à desempenhada pela narradora e eles, inclusive, falam como ela. A fim de enfatizar nossa afirmação sobre a semelhança entre o discurso da narradora e a fala das personagens, concluiremos nossa análise da perspectiva na narrativa, observando a fala de Hindié Conceição que compõe todo o capÃtulo 7. A narradora encontra com Hindié Conceição no domingo e descreve a aflição ainda presente nos olhos da mulher, quando cede a palavra a ela. Notemos que o inÃcio da fala da personagem não é o inÃcio de uma narrativa, de uma história a ser contada, mas a resposta a um apelo feito pela narradora, sua interlocutora naquela ocasião: Não apenas os amigos, também os curiosos vinham falar comigo, sabiam que eu era uma irmã para Emilie; alguns levaram ramalhetes de flores que exalavam o aroma de uma morbidez antecipada, pois no sofá da sala, Emilie ainda respirava, como um corpo que ainda vive, mas à sombra da morte. Sim, flores brancas e ramagens verdes, telefonemas e mensagens de luto, tudo isso era como levar o túmulo para dentro da casa. (HATOUM, 2017, p. 162 grifo nosso) A perspectiva figural, marcada pela perceção da personagem sobre os acontecimentos, reforça o papel da fala de Hindié para a narradora, que é o de dar conta daquilo que não foi vivido, experenciado por ela, que preferiu manter-se distante daqueles acontecimentos. Os sentimentos da mulher pelos filhos homens mais novos de Emilie fica exposto: Um outro fato também me incomodou: a presença daqueles dois desaforados, não falaram comigo, nem sequer tocaram no corpo de Emilie, era como se uma estátua estivesse ali deitada. Lembro que na adolescência faziam danações com todo mundo, foram expulsos de todas as escolas da cidade, e muitas vezes castigados pelos padres, uma punição amarga: ficar de joelho sobre um monte de milho, em pleno sol do meio-dia, até aparecer na noite a primeira estrela. Emilie não perdia a paciência, tolerava essas diabruras, ao contrário do marido dela, que certa vez amarrou os dois na mesa da sala, onde permaneceram sozinhos, como alimárias sem dono, até Emilie convencer o marido a soltá-los. (HATOUM, 2017, p. 163) A fala de Hindié também é um exemplo de “super-determinação funcional†à medida que adiciona mais conteúdos para a história e apenas reforça tudo aquilo que já conhecemos dos personagens a quem ela se refere: sabemos sobre o mal caratismo desses filhos de Emilie, sobre a condescendência dessa mãe para com eles e sobre a discordância do marido em relação ao tratamento dispensado a esses filhos. A leitura ou opinião sobre esses personagens não se altera conforme lemos as falas dos outros personagens, assim como, nem por um “descuidoâ€, o nome do marido de Emilie é revelado. Vejamos: Também não atenderam ao pedido do pai, que muitos anos antes de morrer reuniu os homens da casa e pediu ao único filho letrado para traduzir em voz alta um versÃculoda surata das Mulheres, a fim de que todos entendessem que na palavra de Deus, o MisericordiosÃssimo, sempre havia perdão e clemência. Admitiu que a filha nascera e crescera diante de um espelho mal polido, mas que uma mulher tentada pelo pecado pode arrepender-se meditando sozinha num quarto vedado à luz do sol e a todos os olhares durante cinco dias e cinco noites. Mas nem isso os tornou sequer tolerantes com a irmã. Na verdade, passaram a desprezar o pai por ter recorrido a um texto sagrado para perdoar o imperdoável (HATOUM, 2017, p. 163-4) Todo o capÃtulo 7 é um resumo dos últimos anos e dias de Emilie: Mas desde o ano passado, não sei por que cargas-d’água, ela se convenceu de que a volta de Samara dependia unicamente dos dois filhos. Já um pouco fora de si, ela queria que ambos fizessem uma declaração pública em que juravam uma reconciliação definitiva com Samara Délia. Eu e EmÃlio conseguimos persuadÃ-la a deixar de lado essa ideia tantã, que era um sinal de desespero e descontrole, e não um ato pertinente. Mesmo assim, ela tentou tudo para persuadÃ-los a reatarem com a irmã. [...] Fizeram pouco das palavras da tua avó, e um deles cuspiu à queima-roupa uma frase que a deixou transtornada nestes últimos dias: “A senhora deu à luz a uma mulher da vida; a senhora devia se odiar, e mais que ninguém entender o ódio†(HATOUM, 2017, p. 173) Observamos que, em meio a fala de Hindié Conceição, também aparece a fala de Emilie representada em discurso direto: – O pouco que durmo é para sonhar – disse no domingo passado, enquanto arrumava fotografias e cartas, e remexia sem parar os objetos mofados dentro de um baú. Nesses últimos dias conversamos algumas vezes sentadas no pátio onde ela recordava o nome de uma planta e acrescentava: “Foi a Anastácia que plantou, e aquela trepadeira foi presente de uma empregada que fugiu de casa com medo dos meus meninosâ€. (HATOUM, 2017, p. 174) Notemos que em um momento a fala de Emilie é precedida pelo travessão e depois aparece entre aspas. Ocorre uma alternância na escolha do recurso gráfico para representar a fala de Emilie, semelhantemente ao que foi identificado na fala de Adamor Piedade no último capÃtulo do romance. Que instância é responsável pela representação dessas falas de Emilie dentro da fala de Hindié Conceição? No discurso da narradora, no capÃtulo 8, observamos a mesma alternância do uso do recurso: ora aparece o travessão, ora aparecem as aspas para indicar a fala do outro. Em todo caso, a narradora é a instância fictÃcia, criada pelo autor, responsável por representar a fala das personagens, mas no caso da fala de Hindié Conceição, a quem atribuÃmos o poder de representar a fala de Emilie, muito embora pareça ser a própria Hindié Conceição a responsável por isso? A história como é contada, a construção da narrativa provoca uma ilusão, isto é, acompanhamos a fala da personagem Hindié Conceição, acreditando que ela pode representar a fala de Emilie, quando a própria fala de Hindié já é uma representação. A linguagem e, nesse caso, o uso dos recursos gráficos apontam uma semelhança entre o discurso da narradora e a fala das personagens. Seguindo essa linha de raciocÃnio, apresentaremos a formulação teórica de Wolf Schmid em torno do problema do texto do narrador e do texto da personagem, a fim de compreendermos melhor em que medida a instância fictÃcia da narradora está presente em todos os capÃtulos do romance e não somente onde ela parece estar. 4.3 Os dois componentes do texto narrativo Schmid lembra-se de Platão e do reconhecimento do filósofo de que “o texto da obra literária narrativa é configurado por dois componentes†(SCHMID, 2010, p. 118). Para Platão, a epopeia seria um “gênero misto†por conter tanto o narrar (diegesis), quanto a “imitação†(mimesis) das falas das personagens. Nesse sentido, Schmid parte do pressuposto de que: o texto narrativo é configurado por dois componentes: o discurso do narrador e as falas das personagens. Enquanto o discurso do narrador é produzido primeiramente no ato do narrar, as falas das personagens são fingidas como tendo existência antes do ato de narrar e meramente reproduzidas na realização desse ato. (SCHMID, 2010, p. 118) Em Relato de um certo Oriente, essa configuração do texto narrativo descrita por Schmid, segundo Platão, coloca-se de maneira mais visÃvel; a narradora mesma expõe a sua tarefa de ter de lidar com a fala das personagens que aparecem no texto. A narradora do texto, enquanto narra, fala das anotações que precisou fazer para “reproduzir†as falas de seus conhecidos, o que se assemelha à formulação teórica da condição das falas das personagens que aparecem no texto como se existissem antes do ato de narrar. Nesse sentido, essa questão puramente teórica é colocada de forma explÃcita, quando a narradora, em seu discurso, diz que não foi fácil dar conta da fala engrolada de uns, do sotaque de outros. A justificativa sobre a incapacidade de reproduzir as especificidades da linguagem de cada personagem contada por ela toca em primeiro plano nessa tarefa do narrador, que é a de unificar o seu discurso e a fala das personagens para configurar o texto narrativo. Sem dúvidas, em um segundo plano, podemos tocar na questão da competência do narrador em diferenciar as falas de seus personagens, mas, por ora, falemos dessa tarefa do narrador: No texto narrativo, o discurso do narrador e a fala das personagens são unificadas pelo narrador. As falas das personagens são citações no discurso do narrador que as seleciona. A subordinação básica da fala da personagem já foi indicada por Platão: na IlÃada, na reprodução do discurso dos heróis, Homero “não procura levar a nossa atenção para outra parte nem se esforça por parecer que não é ele, mas outra pessoa que está com a palavra†(República, 393ª). A autonomia da fala da personagem é, de acordo com Platão, ilusória; na realidade, a instância discursiva da personagem ainda é o poeta (que nós dirÃamos: o narrador). (SCHMID, 2010, p. 118) Se a autonomia da personagem é ilusória, conforme já discutido há tantos anos por Platão, não pensaremos, dentro dessa abordagem narratológica do texto, a personagem como ser ontológico. Sabe-se que o interesse pela personagem nos estudos narrativos, depois do tratamento estruturalista que a colocou à margem de seus interesses investigativos, elevoua a um novo lugar de importância à medida que cresceram as relações de identificação entre o leitor e ela. Sobre essas relações de indentificação e a forma como implicaram em uma abordagem ontológica da categoria, vale lembrar Carlos Reis no artigo Narratologia(s) e a teoria da Personagem: “Refiro-me aqui a uma espécie de disseminação da figura ficcional no nosso viver e no nosso agir empÃricos, quando em alguém notamos propriedades quixotescas, edipianas, hamletianas ou bovaristasâ€. (REIS, 2006, p. 34). A própria interdisciplinaridade valorizada pelos estudos narrativos contemporâneos conferiu à personagem um tratamento mais aproximado da ideia de um ser, visto que a personagem ganhou um “vigor de transcendência que é também efeito directo do potencial semântico desta crucial categoria narrativa†(REIS, 2006, p. 34) Em Milton Hatoum, a identificação da personagem como ser pode ser enxergada nas leituras em que se estabelecem relações entre a vida ficcional das figuras e as teorias que refletem sobre a vida do homem real, suas culturas, identidades, seus movimentos migratórios, preconceitos e etc. Nesse sentido, ainda que cada personagem carregue em si esse potencial semântico, uma vez que suas experiências representam mimeticamente a complexidade das experiências humanas, encararemos sua existência como representações de um discurso sobre os homens e mulheres reais e não como homens e mulheres. É exatamente por isso que examinamos seus textos cientes de que toda a fala que parece ser autenticamente deles, nada mais é que uma artifÃcio da própria construção do discurso do narrador.Dentro de nossa abordagem, então, identificamos a personagem como produto do discurso do narrador. Schmid coloca que “a inclusão do discurso da personagem no texto narrativo não significa, necessariamente, que se trata de uma reprodução autêntica†(SCHMID, 2010, p. 119) e que até mesmo quando o narrador é capaz de reproduzir autenticamente a fala do outro, sendo fiel ao seu conteúdo, aos aspectos axiológicos e estilÃsticos do discurso, até mesmo na expressão personalizada da personagem, ele empresta a sua narratorialidade, pois seleciona partes de um contÃnuo de fala e de pensamento dela. Schmid fala de casos em que o narrador causa realmente a impressão de uma reprodução autêntica, mas em Relato de um certo Oriente temos o caso oposto, pois não é difÃcil enxergar a narratorialidade presente nos capÃtulos da fala de Hakim, de Dorner, do muçulmano e de Hindié Conceição, isto é, a presença da narradora é evidente nesses capÃtulos. Conforme colocamos na seção anterior, “a super-determinação funcional†que ocorre da presença das extensas falas dos personagens contribui para as suas caracterizações enquanto figuras e para a própria representação da história, mas serve, sobretudo, à tarefa de narrar da narradora. Assim, podemos complementar dizendo que “o narrador, por citar as palavras (ou pensamentos) da personagem, emprega o discurso de outrem para suas próprias finalidades narrativas. A fala da personagem assumiria um papel narrativo substituindo o discurso do narrador†(SCHMID, 2010, p. 119). Como pensar, então, essa presença da narradora nas falas das personagens no romance de Milton Hatoum? Schmid observa que desde o inÃcio da narrativa moderna no século XVIII, o chamado discurso do narrador não corresponde ao puro e não mesclado texto do narrador. Por conseguinte, ao falarmos em discurso do narrador, estamos tratando de um discurso que contém caracterÃsticas das falas das personagens. Schmid introduz, então, uma diferenciação entre os dois componentes que se misturam no discurso do narrador da prosa moderna: texto do narrador e texto das personagem. Ele continua: De modo geral, o texto da personagem “finge†como se fosse a representação totalmente mimética nas falas das personagens. Isto é, as regras da ficção determinam que o leitor compreenda que as falas das personagens são a reprodução autêntica do texto figural não mesclado. (SCHMID, 2010, p. 120) Ainda que faça parte das regras da ficção a ilusão de que as falas das personagens correspondem ao texto figural, o que pode se observar em Relato de um certo Oriente é que nas falas das personagens não é reproduzido inteiramente o texto figural. A narradora adiciona elementos narratoriais ao texto figural em função de sua falta de competência de reproduzir autenticamente a fala do outro. Vejamos um trecho em que Schmid coloca que essa introdução do elemento narratorial ao texto figural pode ocorrer por pura intencionalidade: Nas anotações de sua obra O Adolescente, Dostoiévski expressava, repetidamente, a ideia de que o jovem narrador não seria suficientemente hábil para reproduzir com autenticidade a concreta forma da fala de adultos em todas as suas caracterÃsticas. O próprio narrador então admitia por vezes, que ele estava reproduzindo a fala do outro unicamente para indicar que havia compreendido o que fora dito e que podia se lembrar disso. (SCHMID, 2010, p. 120) Coincidentemente a mesma observação feita sobre o narrador de O Adolescente pode muito bem ser aplicada à narradora de Hatoum. A diferença entre os dois casos é que o narrador de O Adolescente tinha uma competência superior ao que se poderia esperar de um adolescente, daà a necessidade de ele justificar aquele conhecimento; já a narradora de Relato de um certo Oriente traz a questão da sua competência para o seu discurso, ela alerta para essa dificuldade de dar conta da fala do outro. Tanto no caso de Dostoiévski quanto no caso de Hatoum, essa falta de compatibilidade entre o que se espera do narrador e a competência demonstrada coloca em risco a regra da ficção, o que obriga o narrador, no primeiro caso, a simplesmente justificar de onde vem todo aquele conhecimento e, no segundo caso, a colocar explicitamente o problema em questão e dizer a solução encontrada, mesmo depois de o leitor já a conhecer. Em Relato de um certo Oriente, que é um exemplo de prosa moderna, o discurso do narrador é resultado de uma complexa mistura de caracterÃsticas indicadas pelo texto do narrador e pelo texto das personagens. Schmid distingue o termo texto de discurso/fala: Para nosso uso, o termo texto será distinguido de discurso/fala quando estiver na esfera subjetiva da respectiva instância, sua perspectiva perceptiva, ideológica e linguÃstica na sua forma pura e não mesclada. Essa forma pura e genotÃpica, na qual o texto do narrador e o texto das personagens devem ser concebidos, será, claramente, uma abstração da forma fenotÃpica na qual o discurso do narrador e a fala das personagens estão presentes. (SCHMID, 2010, p. 121) Schmid deixa evidente que o texto do narrador e o texto da personagem são apenas uma abstração, uma vez que essas duas formas puras não podem ser identificadas isoladamente no texto. O conceito de texto se estende à s falas exteriores e interiores, pensamento, e percepção tanto do narrador quanto das personagens. Dentro de nosso estudo, pensar o conceito de texto contribui para o entendimento da presença do componente narratorial nas falas das personagens do romance de Milton Hatoum, de maneira que se pode enxergar a presença da narradora nos capÃtulos em que falam as personagens. A caracterização da tipologia da narradora revela sintomas no discurso da narradora, que podem ser encontrados nas falas das personagens. Todas as falas são carregadas de subjetividade, pois o conteúdo delas é repleto de experências Ãntimas. Nesse sentido, podemos falar de uma “figuralização da narração†(SCHMID, 2010, p. 120), que consiste na orientação da narração a partir da perspectiva das personagens. A figuralização da narração também é um traço caracterÃstico da prosa moderna. O narrador observa os acontecimentos pela perspectiva figural, e o que ficam expostas são as percepções, ideologias e linguagem da personagem. Isso tudo ficaria mais evidente se o narrador de Milton Hatoum fosse não diegético, pois enxergarÃamos os verbos em terceira pessoa, fazendo referência à s ações das personagens, mas toda a narração de um determinado acontecimento carregaria traços de uma percepção, ideologia ou linguagem da personagem. Como em Relato de um certo Oriente temos uma narradora diegética e os verbos estão em primeira pessoa, identificamos praticamente uma repetição do seu discurso na fala das personagens, que, ao fazerem referência a si mesmas, também falam na primeira pessoa. 5. NARRATOLOGIA E INTERPRETAÇÃO DA OBRA Assim, tal como em outras artes miméticas, é necessário que haja mimese de um único evento, como ocorre com o enredo, que é a mimese de uma ação, ou seja, de uma ação única e que forma um todo; desse modo, as partes, que constituem os acontecimentos ocorridos, devem ser compostas de tal modo que a reunião ou a exclusão de uma delas diferencie e modifique a ordem do todo. Aristóteles 5.1 Interferência Textual Já é sabido que a narradora de Relato de um certo Oriente é tipologicamente subjetiva, uma vez que a leitura analÃtica mostrou esse sintoma no texto. Contudo, quando identificamos sua presença ainda nos capÃtulos em que as falas das personagens cumprem uma “super-determinação funcionalâ€, percebemos a necessidade de caracterizar esse fenômeno como uma “interferência textual†(SCHMID, 2010, p. 137) que, de acordo com Schmid, é um fenômeno hÃbrido, no qual a mÃmeses e a diegese (no sentido platônico) estão amalgamadas como uma estrutura que une duas funções: a reprodução do texto das personagens (mÃmeses) e a real narração (diegese)†(SCHMID, 2010, p.137). Esse fenômeno pode acontecer de formas diferentes e se tornou comum na prosa narrativa a partir do final do século XVIII. Schmid exemplifica a interferência textual ocasionada pela interferência do texto da personagem no texto do narrador, para lançar as bases do conceito de discurso vivenciado23, caracterizado justamente por essa identificação da subjetividade da personagem no discurso do narrador em um dado segmento do texto narrativo, isto é, da subjetividade figural que penetra na estrutura do discurso do narrador. 23“O discurso vivenciado é um segmento do discurso do narrador que reproduz palavras, pensamentos, sentimentos, percepções ou posição de sentido de uma personagem narrada, enquanto a reprodução do texto da personagem não é marcada, nem gramaticalmente, nem por nenhum tipo de indicador explÃcito.†(SCHMID, 2010, p. 157) Essa presença simultânea do texto do narrador e do texto da personagem em um dado segmento já havia sido discutida por Mikhail Bakhtin (1934/1935; tr. 1981, 304), aponta Schmid. Bakhtin, ao notar essa dupla estrutura caracterÃstica do fenômeno, chamou o fenômeno de “construção hÃbridaâ€, mas o conceito “interferência textual†foi traçado a partir da “interferência do discurso†discutida por Valentin Voloshinov (1929; tra. 1973, 137), embora, ressalta Schmid, esse termo não se refira exatamente ao mesmo conteúdo que o conceito em questão. O conceito usado por Voloshinov de “interferência do discurso†pressupõe uma dupla-acentuação pela “entonação†(ideológica) dos dois discursos. Ao contrário, a nossa interferência textual está presente mesmo quando as caracterÃsticas de um segmento se referem uma vez a uma, outra vez à outra instância. Uma determinada diferença das posições avaliativas dos dois textos em presença não são necessárias para a interferência textual. A concordância ideológica total entre dois textos é também possÃvel como um caso fronteiriço. Então, o conceito de interferência textual é usado aqui com um escopo mais amplo do que a “interferência do discurso†de Voloshinov, e não implica automaticamente aquelas estruturas agonais que Bakhtin e Voloshinov posicionam debaixo das estruturas “dialógicas†tais como interferência e dialogicidade. (SCHMID, 2010, p 138)24 24 Schmid escreveu mais sobre a diferença entre o seu con ceito de “interferência textual†e a “interferência do discurso†de Voloshinov, e a respeito da concentração da estrutura de textos agonais de Bakhtin e Voloshinov (Schmid 1989). Nesse sentido, o conceito proposto por Schmid não está “amarrado†a uma necessária co-existência de discursos diferentes em um dado segmento do texto, pois, como veremos mais adiante, os indicativos presentes no texto que apontam para o texto do narrador ou para o texto da personagem não irão necessariamente coincidir, ou ainda, podem muito bem aparecer de forma neutralizada no fenômeno da interferência textual. Schmid, então, apresenta um catálogo de caracterÃsticas que servem à diferenciação entre o texto do narrador e o texto da personagem, que são as mesmas caracterÃsticas usadas para a identificação das perspectivas narratorial e figural, vejamos: Parâmetros da perspectiva CaracterÃsticas para diferenciação de TN e TP Percepção Temática Ideologia Ideológica Espaço gramaticais Tempo gramaticais Linguagem EstilÃsticas Fonte: SCHMID, 2010, p.141 Segundo as caracterÃsticas temáticas, o texto do narrador e o texto da personagem podem se diferenciar conforme a seleção dos temas caracterÃsticos; segundo as caracterÃsticas ideológicas, podem diferenciar na avaliação das unidades temáticas individuais; segundo as caracterÃsticas gramaticais de pessoa, o texto do narrador e o texto da personagem podem se diferenciar no uso da pessoa gramatical, pronomes e formas verbais. Para fazer referência à s personagens do mundo narrado, o narrador não diegético usa pronomes e formas verbais apenas em terceira pessoa. Já no texto da personagem, as três pessoas gramaticais são usadas da seguinte forma: a instância falante é designada com a primeira pessoa, a personagem endereçada com a segunda pessoa e a personagem em discussão é referida com a terceira pessoa; segundo as caracterÃticas gramaticais de tempo verbal, tanto o texto do narrador quanto o texto da personagem podem ser diferenciados no uso dos tempos verbais; Segundo as caracterÃsticas gramaticais de sistema dêitico, os dois textos podem usar diferentes dêiticos para designar espaço e tempo; Segundo a função da linguagem, podem ser diferenciados pelas funções da linguagem (representativa, expressiva e apelativa); Segundo caracterÃsticas estilÃsticas do léxico, Schmid exemplifica que os dois textos podem ser diferenciados pelo uso de diferentes nomes para o mesmo objeto e pelo repertório lexical em geral; Segundo caracterÃsticas estilÃsticas de sintaxe, os dois textos podem ser caracterizados por padrões sintáticos distintos. A fim de exemplificar a presença dessas caracterÃsticas capazes de opor texto do narrador e texto da personagem em um dado segmento de texto, Schmid apresentou dois quadros que simulam a análise de textos puros, vejamos: Texto do Narrador (TN) 1 Tema 2 Avaliação 3 Pessoa 4 Tempo 5 Sistema dêitico 6 Função da Linguagem 7 Léxico 8 Sintaxe TN X X X X X X X X TP SCHMID, 2010, p. 143 Texto da Personagem (TP) 1 Tema 2 Avaliação 3 Pessoa 4 Tempo 5 Sistema dêitico 6 Função da Linguagem 7 Léxico 8 Sintaxe TN TP X X X X X X X X SCHMID, 2010, p. 143 Uma vez que esses dois quadros apenas ilustram a distribuição dessas caracterÃsticas segundo a identificação do texto do narrador e do texto da personagem, Schmid coloca que esse pureza não será vista na realidade em textos literários, ocorrendo com frequência a neutralização de uma ou mais caracterÃsticas. Essa neutralização será representada com a marcação com X na caracterÃstica do texto do narrador e do texto da personagem. A neutralização da oposiçao entre os dois textos ocorrerá quando alguma caracterÃstica não aparecer no segmento ou quando os dois textos coincidirem em alguma. Para dizer melhor ainda, “a coincidência do TN com o TP em uma caracterÃstica acontece quando os dois textos são idênticos com respeito a uma mesma caracterÃstica. Então, o uso do passado gramatical pelo TP pode coincidir com o pretérito épico do TN.†(SCHMID, 2010, p. 143). Em Relato de um certo Oriente, o texto da narradora e o texto da personagem estão separados pelas determinações dos capÃtulos, mas, conforme construÃmos essa tese, verificamos a continuidade da narradora nos capÃtulos referentes à fala das personagens. Por meio desse quadro, estabeleceremos as relações de oposição e neutralização entre os textos da narradora e das personagens, com a intenção de visualizar melhor o fenômeno que já vÃnhamos identificando. Fala de Dorner, no capÃtulo 3: “Mesmo de longe foi possÃvel divisar os mergulhadores: duas figuras negras, como se pairassem na atmosfera embaçada pelo chuvisco.†(HATOUM, 2017, p. 71) 1 Tema 2 Avaliação 3 Pessoa 4 Tempo 5 Sistema dêitico 6 Função da Linguagem 7 Léxico 8 Sintaxe TN X X X X X TP X X X X X X X X Indicamos que o tema pertence ao texto da personagem, pois Dorner falava do dia em que Emir cometeu suicÃdio. Ele foi a única testemunha próxima da famÃlia no local do acontecido e descreve a cena dos mergulhadores em busca do corpo. A avaliação pertence ao texto da personagem também, porque, conforme visto na seção referente à perspectiva, a perspectiva é figural, a partir de seu conhecimento, seu ponto de vista, os acontecimentos são apresentados. No entanto, na caracterÃstica 3 ocorre neutralização das oposições: os personagens falam em primeira pessoa, tal como a narradora (sem contar os trechos em que o personagem se dirige a um “tu†e faz referência a “elesâ€, como também ocorre no texto da narradora); O tempo também é neutralizado porque Dorner se refere a um acontecimento passado e os verbos encontram-se no passado, exatamente como acontece no texto da narradora; Quanto ao sistema dêitico, “mesmo de longe†identifica o distanciamento da personagem em relação ao ponto espacial a que ela se refere; a função de linguagem informativa também aparece neutralizada porque não diverge do texto da narradora que informa ao irmão tudo o que ela vê quando chega a Manaus; O léxico e a sintaxe aparecem também neutralizados, porque nem mesmo a nacionalidade de Dorner alterou seu léxico e sintaxe em comparação com o léxico e sintaxe do texto da narradora. Fala de Hakim, no capÃtulo 5: “Quando lhe comuniquei diante dos outros irmãos a minha decisão de ir embora daqui, ela expressou sua supresa com uma torrente verbal que só nós dois entendemos.†(HATOUM, 2017, p. 116). 1 Tema 2 Avaliação 3 Pessoa 4 Tempo 5 Sistema dêitico 6 Função da Linguagem 7 Léxico 8 Sintaxe TN X X X X X TP X X X X X X X X O tema pertence ao texto da personagem, pois Hakim fala de quando comunicou à mãe sobre sua partida para outro estado. A avaliação também pertence ao texto da personagem, pois a perspectiva é figural, ele sabe o que a mãe sentiu ao ouvir o filho. Da terceira caracterÃstica em diante, aparecem os casos de neutralização das oposições. Em relação à pessoa, Hakim fala em primeira pessoa, tal como a narradora; O tempo nos textos da personagem e da narradora é o passado; O sistema dêitico pertence ao texto da personagem, pois “quando lhe comuniquei†diz respeito a uma marcação temporal que só existe para Hakim, muito embora o dêitico “aqui†possa sugerir tanto a localização espacial de Hakim quanto a da narradora, que se encontrava frente a ele; A função de linguagem também é neutralizada por ser referencial; o léxico e a sintaxe também são neutralizados, ainda que Hakim tenha um bom conhecimento da lÃngua árabe e fale em algumas passagens sobre o idioma, ele não diz uma palavra sequer. Fala do pai de Hakim, no capÃtulo 4: “Não procurei saber como e quando morrera. Após ter vivido alguns anos naquele lugar, foi possÃvel presumir uma causa: as febres proliferavam tanto quanto as facadas que rasgavam o ventre dos homens†(HATOUM, 2017, p. 85) 1 2 3 4 5 6 7 8 1 Tema 2 Avaliação 3 Pessoa 4 Tempo 5 Sistema dêitico 6 Função da Linguagem 7 Léxico 8 Sintaxe TN X X X X X TP X X X X X X X X O tema e a avaliação pertencem ao texto da personagem: a morte de seu tio Hanna e o seu raciocÃnio em busca da causa da morte; A personagem faz referência a si mesma na perimeira pessoa como a narradora, neutralizando a oposição entre os dois textos. O tempo também é neutralizado, pelo emprego dos verbos no passado; O sistema dêitico indica o texto da personagem, pois a referência de tempo e de espaço diz respeito à personagem: “após ter vivido anos naquele lugarâ€. A função de linguagem referencial também é neutralizada, tal como léxico e sintaxe. Não há vocabulário nem sintaxe variada para caracterizar o texto do pai de Hakim. Fala de Hindié Conceição, no capÃtulo 7: “Com a morte do teu avô, tentaram ir mais longe. Enviavam bilhetes ameaçadores, telefonavam em plena madrugada insultando-a de filha disso e filha daquilo, e uma vez pegaram uns moleques para apedrejar a clarabóia do quarto onde ela dormia sozinha.†(HATOUM, 2017, p. 164). 1 Tema 2 Avaliação 3 Pessoa 4 Tempo 5 Sistema dêitico 6 Função da Linguagem 7 Léxico 8 Sintaxe TN X X X X X TP X X X X X X X X Semelhantemente ao que ocorre com os outros personagens, as caracterÃsticas 1 e 2 pertencem ao texto de Hindié Conceição. Ela fala das ações dos filhos de Emilie, após a morte do pai e emprega sua avaliação sobre o acontecimento: “tentaram ir mais longeâ€, “bilhetes ameaçadoresâ€. Quanto à pessoa, ocorre uma neutralização, pois a personagem também faz referência a si mesma com uso da primeira pessoa e considera a segunda pessoa do discurso, tal como a narradora. O tempo é uma caracterÃstica neutralizada, em função dos verbos no passado. O sistema dêitico também caracteriza o texto da personagem, pois “com a morte do teu avô†marca um tempo, seguido de acontecimentos, conhecido somente por ela e não pela narradora. A função de linguagem tem uma caracterÃstica, nesse segmento, que é a expressividade, Hindié fala com emoção, mas esse traço não distingue seu texto do texto da narradora, que também tem emoção. O léxico e a sintaxe também não são caracterÃsticas que distinguem os dois textos, ainda que Hindié seja estrangeira como Emilie. Schmid explica que a proliferação da interferência textual é: uma consequência do aumento da figuralização do narrar, isto é, o deslocamento da perspectiva narratorial para figural. Essa figuralização à s vezes dá a impressão de que o narrador está abdicando de sua função narrativa em favor da personagem e, como se o fosse, ‘abandona o palco’. (SCHMID, 2010, p. 146) Caracterizar esses breves segmentos de texto das personagens, segundo as caracterÃsticas sugeridas por Schmid, ajuda-nos a refletir sobre o grau de neutralização desses textos e, antes de mais nada, concluir que mesmo com a figuralização do narrar, a interferência textual revela a presença da narradora até mesmo na fala dos personagens. Sem dúvida, esse dado contribui para identificar o quanto que o texto literário em si e toda a sua estrutura narrativa encaminham o leitor para determinadas leituras já apontadas no discurso da crÃtica. Não vendo uma oposição entre o texto da narradora e o texto da personagem, a crÃtica questiona a narradora, agarrando-se à justificativa dada pela própria narradora: a de que ela não foi capaz de dar conta do sotaque e fala engrolada de cada um. E chegamos a uma conclusão muito semelhante, porém, não levando em consideração o discurso dela, mas a análise do texto. A narradora de Hatoum é como o jovem narrador de O Adolescente, porque precisou explicar no próprio texto a problemática competência narrativa. Conforme apontou Schmid em suas pesquisas, o acesso a anotações do autor, Dostoiévski, revelam a sua preocupação com a questão, o que, evidentemente, contribui para que Schmid não descarte a presença do autor no texto da obra, não como instância concreta ou fictÃcia, mas como instância abstrata que deixa suas marcas na própria criação. Chamar a atenção para a instância do autor em uma análise narratológica é algo que podemos por em destaque na teoria de Schmid, principalmente, desde que Roland Barthes (1968) no conhecido texto A morte do autor coloca o autor como uma espécie de invenção moderna e defende a supremacia da escrita, reforçando o papel do leitor nesse processo de mudança do olhar crÃtico. Certamente, ainda podemos observar as marcas dessa “morte do autor†quando lemos as ressalvas em trabalhos acadêmicos sobre a utilização de dados biográficos para tratar do texto literário de Milton Hatoum. No últimos tempos, essa instância vem reaparecendo nos trabalhos de crÃtica, se é que podemos dizer que algum dia despareceu. Milton Hatoum está sempre muito próximo de seus leitores e, principalmente, da leitura de sua obra, quando participa de eventos, bate-papos literários que acabam por promover a sua obra. A crÃtica também questiona a instância do autor, não à toa, Tolledo pergunta se a narradora seria então Milton Hatoum? Ele teria se escondido por trás da narradora? Em que lugar podemos colocar o autor Milton Hatoum dentro de nossa leitura? 5.2 A presença do autor no texto Quando nos referimos à instância do autor, empregamos o conceito de autor abstrato de Schmid. De fato, não estamos falando do homem Milton Hatoum, o autor concreto, tampouco intencionamos, nesse ponto de nossa pesquisa, recorrer a dados biográficos, a fim de justificar qualquer acontecimento dentro da história narrada no livro. O autor deve ser compreendido aqui como um conjunto de marcas textuais que já não poderão ser atribuÃdas à narradora: Se os signos indiciais contidos em um texto narrativo podem expressar tanto autor quanto narrador, cada exemplo levanta a questão de para qual das duas instâncias os indiciais devem ser aplicados. Esse é um problema hermenêutico que pode ser respondido apenas com observações muito gerais. (SCHMID, 2014, p. 78) As observações muito gerais sugeridas por Schmid serão feitas, a fim de pensarmos a estrutura e organização dos “relatos†elaborados pela narradora. Uma vez que observamos “bem de perto†a presença da narradora em todo romance e de como a perspectiva figural na narrativa garante a configuração das personagens, que contam acontecimentos que não fazem parte do domÃnio dessa narradora, resta-nos refletir sobre a organização textual do todo desse Relato de um certo Oriente. O fingir de uma história e de um narrador que a apresenta é questão do autor. Em cada um desses atos, todos os Ãndices apontam para o autor como a última instância responsável por eles. A seleção de momentos dos eventos narrados, suas combinações em uma história, suas avaliações e nomeações são operações que caem na competência do narrador, que revela a si mesmo neles. (SCHMID, 2014, p. 78) É esse fingir de uma história e de uma narradora que pretendemos enfatizar agora: os acontecimentos apresentados no romance não estão dispostos de forma ordenada cronologicamente, caracterÃstica da prosa moderna, porém a própria narração aponta para uma descontinuidade. A análise do discurso da narradora mostra que a ação de narrar não ocorreu de uma vez só. Conforme vimos na segunda seção desse trabalho, na página 9 do romance, encontramos um dêitico que aponta que enquanto a narradora enunciava o discurso ela estava fora de Manaus. Enquanto ela fala da visita que fez à casa da mãe, enquanto esperava dar a hora de visitar Emilie, ela já não está em Manaus. Já nas páginas 186 e 188, encontramos dêiticos que revelam que ela narra estando em Manaus, o que nos leva a concluir que a própria narração também é retalhada. Se somarmos essas fragmentações da narrativa e da narração, mais as lacunas impreenchÃveis da própria história, como o mistério em torno dos nomes das personagens, a exata origem da narradora, poderemos dizer que o romance de Milton Hatoum é aberto, porque abre inúmeras possibilidades de interpretação. A crÃtica, sem dúvida, percebeu isso e leu o romance apoiando-se nas principais temáticas: identidade, migração, memória. Sabemos que apesar do forte apelo presente na obra em torno desses temas, há muitos outros que podem ainda ser explorados, porque o romance abre espaço para isso. Ao final dessa análise, concluÃmos também que não se pode confiar nessa narradora e crer que “os relatos†são resultados puros de suas anotações e gravações, esses “relatos†não são transcrições. A escrita é dela não porque ela se desculpa ao dizer que não conseguiu reproduzir aquelas falas, mas porque a análise do texto de fato aponta isso. A desculpa é um acessório pensado muito provavelmente pelo próprio autor. O autor é, conforme diz Schmid, responsável por esse fingir da narradora, pois ele é a última instância após ela. À narradora cabe a responsabilidade de selecionar os acontecimentos e, inclusive, de indicar os momentos em que as personagens irão falar. Toda a ordenação dessas falas que aparecem dispostas em capÃtulos é de responsabilidade dela. Mas ressaltamos que estamos falando da disposição das falas apenas e não dos capÃtulos propriamente ditos: acreditamos que a titulação de cada fala desses personagens como 3, 4, 5, 6, 7, é uma marca do autor, no sentido de dar acabamento à obra, de dar confirmação ao trabalho que a narradora executa, até porque ela não está escrevendo um livro, mas uma enorme carta ao irmão. Quanto à ordem das falas das personagens, até mesmo essas aparecem no texto fora de uma ordem cronológica: a narradora conversa com Hindié, no domingo de manhã e, com Hakim, no domingo à noite. A fala de Hindié é a última a ser representada. O conteúdo da fala de Hindié Conceição tem um caráter melancólico, tem um conteúdo de revolta, diferente do conteúdo da fala de Hakim, que prioriza as recordações da história daquela famÃlia, sobretudo, a história das divergências culturais e sociais presentes na casa onde viveu. A fala de Hakim tem um apelo muito forte aos temas caros à memória, que estão bem mais de acordo com os objetivos da narradora naquela viagem de volta ao lugar da sua infância. Para reforçar mais uma vez a ideia que defendemos: No texto figural, é principalmente o falar, o pensar ou a percepção da personagem que expressa a si mesmo. No entanto, existe um componente narratorial contido em cada manifestação do texto dos personagens. O narrador é, afinal, fingido como a instância que seleciona palavras, pensamentos e percepções dos personagens e – pelo menos no caso do discurso indireto ou indireto livre – tornaos mais ou menos narratoriais. (SCHMID, 2014, p. 78) Nas falas e percepções das personagens podemos enxergar as suas configurações, as suas “existências†no texto, porque as falas servem à expressão da própria figura, de modo que cada personagem, ou melhor, a fala de cada personagem cumprirá de um modo especÃfico a sua “super-determinação funcionalâ€. A fala de Hakim é a mais extensa de todas as personagens. Ele tem maior quantidade de texto, depois da narradora. Evidentemente que isso não ocorre em vão: ele é aquele que mais sabe, é o filho preferido de Emilie, o único que aprendeu árabe com a mãe. Nesse sentido, ao refletirmos sobre o componentente narratorial na fala desse personagem, especificamente, podemos dizer que o conhecimento que ele tem sobre a intimidade e a história dessa famÃlia, mais a sua sobriedade diante da morte da mãe, é o que confere a ele tanto espaço na narrativa, uma vez que a seleção da personagem segue as escolhas da narradora. Além disso, é por meio desse personagem que o marido de Emilie e Dorner são lembrados e “trazidos†ao texto de forma mais contundente, a expressão de suas falas e a escolha da narradora por representá-las é o que determina isso. Destacados os papeis da narradora e do autor na ordenação das falas das personagens em capÃtulos, lembraremos outro aspecto que recebeu atenção da crÃtica: o emprego das aspas no inÃcio e fim de cada uma das falas: Todos os atos que revelam o personagem e o narrador, naturalmente também, funcionam, em última análise, como Ãndices para o autor, responsável pela criação das duas instâncias fictÃcias. Mas os processos narrativos não alcançam uma função indicial para o autor direta e imediatamente, mas sim com certa refração ou deslocamento. (SCHMID, 2014, p. 78) No caso do romance que estudamos, podemos relativizar a fala de Schmid: em Relato de um certo Oriente os processos narrativos alcançam diretamente uma função indicial para o autor. Sendo a narradora uma instância fictÃcia criada por ele para apresentar a história, a responsabilidade sobre ela, sobre a configuração dela é grande. Qualquer incoerência na construção dessa instância põe em risco a narrativa enquanto discurso e a história. Como a narradora conserva um certo anonimato e mistério, e o discurso e a história se encontram fragmentados, os indÃcios do autor aparecem no acabamento da obra. As aspas parece-nos os indÃcios desse acabamento dado pelo autor. As autoras dos trabalhos acadêmicos que discutiram a presença dessas aspas no texto, Maquêa (2007) e Ribeiro (2013), encararam a questão como um produto gerado no mundo narrado pela instância responsável, a narradora. As conclusões de Maquêa (2007) foram as que mais se aproximaram das nossas, mas é preciso estabelecer aqui as diferenças. Maquêa recorreu à ideia de autor enquanto figura do discurso, traçada por Foucault, afirmando que a narradora se desloca da figura de relatora para a de autor. Para Maquêa, esse autor representado pela narradora é alter-ego de Milton Hatoum. Nosso percurso de análise diferente revelou que a narradora não compôs capÃtulos e muito menos colocou entre aspas o seu próprio discurso e as falas das personagens. De fato, o autor, não como figura do discurso, mas como instância abstrata deixou marcas concretas no texto, nesse caso, totalmente intencionais. Somente o capÃtulo inicial do livro não recebe aspas e o critério claramente não foi empregar as aspas apenas nas falas das personagens, caso contrário, os capÃtulos 6 e 8 não receberiam aspas. Se os capÃtulos 6 e 8 não estivessem entre aspas também seria fácil atribuir essa ação à narradora, a justificativa seria simples. Esse indÃcio do autor revela uma preocupação com a forma como ele presumiu que o leitor recebesse o texto. O autor confere à narradora a responsabilidade da apresentação da história, logo, inicialmente, o discurso dela não poderia vir entre aspas. Ela prescisa convencer o leitor, ganhar sua confiança. Ao passar do primeiro capÃtulo, o leitor já entende que ela tem uma posição hieraquicamente diferente no texto, até mesmo aqueles que crêem na ideia de vários narradores, como foi possÃvel ler nos trabalhos acadêmicos que defendem a mesma ideia. Ocorre que a quebra temporal no discurso da narradora e nas sequências dos acontecimentos transformam o todo do texto em retalhos e as aspas são a representação desses fragmentos, desses recortes. As aspas aparecem no texto como recurso estético, tal como a capitulação das falas das personagens. Isso tudo nos diz muito sobre o leitor presumido para essa obra. O leitor vai seguindo as pistas fornecidas pelo autor, que ao criar a obra inscreve nela seus indÃcios: as aspas chamam logo a atenção, depois ocorre o salto de página e o salto no tempo, a presença do leitor fictÃcio (o irmão da narradora) e as marcas de interlocução no texto convidam o leitor concreto, que sente maior proximidade com a narradora, envolvido por ela. Em seguida, a apresentação das longas falas das personagens quase fazem com que a narradora seja esquecida pelo leitor, que passa a “ouvi-las†como novas narradoras do texto, até porque o leitor não precisa se adaptar a um texto diferente, a linguagem é a mesma do capÃtulo inicial. Depois de muitas páginas, a narradora retorna, retomando a história interrompida logo nas primeiras páginas do primeiro capÃtulo e expõe, no fim do texto, seus problemas de saúde e a dificuldade que sentiu em representar todos os textos das personagens. É preciso dizer que Milton Hatoum de fato ousou na técnica, para repetir a fala de Flora Süssekind, e conseguiu muitos admiradores. Mesmo com as dificuldades que qualquer ficcionista deve sentir em fazer valer as regras da ficção, o seu conhecimento técnico contribuiu para arrematar as possÃveis dissonâncias estilÃsticas a favor do seu engenho e do seu trabalho como romancista do século XXI. CONSIDERAÇÕES FINAIS Cada escritor tem suas particularidades, que estão na sua vida, na sua linguagem, no modo de ser, do seu registro cultural. Se eu fosse um escritor paulistano, é provável que eu já tivesse escrito muita coisa sobre São Paulo. O que mais interessa é como eu transfiro, usando um termo freudiano, a minha experiência de vida para a linguagem, de vida e de literatura. Porque a leitura, a realidade lida, é tão importante quanto a realidade vivida para quem escreve Milton Hatoum O romance é [...] um trabalho paciente e exaustivo de engenharia, em que as partes vão sendo construÃdas lentamente. [...]a forma depende[da] experiência, que pode ser vivenciada, sonhada ou ouvida pelo escritor. Eu fiz um projeto para o romance, trabalhei que nem um arquiteto, pois naquela época eu ainda fazia projetos de arquitetura. Fiz gráficos, desenhos, esboços, mas perdi tudo numa das minhas mudanças ou andanças. Milton Hatoum A leitura analÃtica do romance Relato de um certo Oriente foi impulsionada sobretudo pela leitura dos textos crÃticos sobre a obra. Esse foi nosso ponto de partida. A compreensão dos problemas levantados pela crÃtica requeria uma teoria capaz de nomear os procedimentos textuais da obra literária e, nesse contexto, a narratologia aparece aqui como uma teoria que não só fornece nomes e conceitos adequados à s questões referentes ao texto, como também gera condições metodológicas para um trabalho prático. Durante o processo de leitura do romance, conseguimos identificar os planos de comunicação na obra e suas instâncias concretas, fictÃcias e abstratas. Conseguimos acompanhar os passos dessa narradora do romance, que tanto cede a vez de falar a seus personagens e que tanto chama a atenção dos crÃticos. Toda a análise foi possÃvel graças ao modelo teórico ajustado ao problema da pesquisa. A narratologia, no seio dos estudos literários, tem ferramentas fundamentais para a leitura e análise do texto; sem recorrer a modelos linguÃsticos, porque, de fato, não se trata de uma análise linguÃstica, mas literária. Ao final da escrita, temos consciência do deslocamento que fizemos do nosso ponto de partida até os resultados obtidos. Nesse deslocamento se encontram, de forma escrita, respostas a algumas questões feitas sobre essa pesquisa no XVII Seminário de Pesquisa em Andamento: por que fazer um estudo sobre essa narradora se há outros trabalhos que se preocuparam com o mesmo problema? Ora, essa pesquisa preencheu uma lacuna nos estudos da obra, justamente porque embora a pretensão em outros trabalhos também fosse a análise da narradora, a metodologia e os conceitos não se ajustavam ao problema identificado. Além disso, quanto vale a atividade de análise em si para a formação da pesquisadora que a realiza? Ler textos teóricos, testar formas metodológicas diferentes de se ler um texto gera não só resultados de leitura sobre a obra, mas transformam o sujeito pesquisador que se ocupa dessa atividade fundamental para a pesquisa em Literatura e para a atividade de crÃtica. Tendo em vista o cenário literário atual, em que o nome do escritor Milton Hatoum foi posto em um lugar de prestÃgio, não podÃamos deixar de considerar o quanto o seu engajamento e forte aproximação do público leitor não poderiam criar condições para certas inclinações sobre a sua obra. O interesse pela vida de qualquer escritor cuja obra alcança o grande público não é novidade nem negativo, mas essa caracterÃstica se mostra acentuada quando lemos os trabalhos escritos sobre o autor de Relato de certo Oriente. A sua infância, sua relação com a cultura árabe e o seu engajamento polÃtico e literário estão sempre associados à s leituras de seus textos. Não à toa, a coletânea Arquitetura da Memória: ensaios sobre os romances Relato de um certo Oriente, Dois irmãos e Cinzas do Norte de Milton Hatoum reúne os textos de crÃticos mais as entrevistas feitas com o autor, trazendo por vezes perguntas sobre a relação entre a vida e a obra do escritor, entre os personagens e seus familiares. Nessas ocasiões, o homem Milton Hatoum parece chamar tanta atenção quanto a sua obra. Uma das preocupações metodológicas no desenvolvimento dessa pesquisa foi não recorrer a saÃdas biográficas, ainda que a instância autor tenha sido descrita no plano de comunicação da obra. Inclusive, a reflexão sobre a presença do autor na obra, através das marcas textuais, serviu para encontrarmos o lugar do autor no plano do desenvolvimento do texto, isto é, mesmo que, no processo de criação da obra, não seja, de modo geral, intencional o aparecimento de determinadas marcas do autor no texto, ele se faz presente. No caso do romance estudado, a presença de marcas que não puderam ser atribuÃdas à narradora foi atribuÃda ao autor abstrato, que deixou indÃcios de sua presença, na busca pela configuração de um leitor abstrato que lesse a obra de forma presumida por ele. Nesse sentido, a própria teoria ilustrou o quanto a configuração do autor abstrato interfere na configuração do leitor abstrato. Com isso, conseguimos abordar a organização das falas das personagens em capÃtulos e a presença/ausência das aspas nos textos, graças à compreensão dessas instâncias no plano de comunicação da obra. Quando iniciamos a pesquisa, estávamos cientes de que alcançar os resultados de uma análise não corresponde ao mesmo que alcançar os resultados de uma interpretação. A interpretação extrapola os limites o texto, representa um “salto†das letras, daquilo que está escrito. A instância autor, dentro da teoria de Schmid, dá a possibilidade de interpretar a obra, mas, sem dúvidas, os ganhos em relação aos resultados de análise são maiores. Nesse sentido, a realização desse trabalho representou um verdadeiro exercÃcio de prática de estudo do texto literário. O trabalho teórico de W. Schmid nos permitiu descrever, caracterizar todas as instâncias presentes na obra e, principalmente, organizar as informações sobre a narradora dentro do quadro da tipologia do narrador: identificamos uma única narradora diegética, primária, bem marcada, pessoal, espacialmente fixa, subjetiva, de conhecimento limitado. A narradora do romance tem um leitor fictÃcio bem marcado no texto, que serve a ela como uma orientação para as suas estratégias narrativas. Ela narra para ele tudo aquilo que ele há tempos não vê, por se encontrar fora do paÃs, mas, sem dúvida, como a leitura revelou, o evento dessa narrativa é a morte de Emilie, a matriarca da famÃlia. A comunicação dessa morte ao irmão é também o que constitui a narratibilidade da obra. A narrativa tem sua razão fundada nesse acontecimento, que gera e motiva o esforço da narradora em organizar todo o relato para o irmão distante. O entendimento da morte de Emilie como evento responde a todos os critérios estabelecidos por W. Schmid em seu estudo teórico: um acontecimento inesperado pela narradora e pelos personagens, de grau irreversÃvel e que modifica as atitudes de todos os personagens dentro da história. O que era para ser uma simples viagem de retorno à cidade natal e de reencontro com a avó, acaba se tornando um momento doloroso de perda e de reencontros inesperados. Da mesma forma, os demais personagens não esperavam se reunir naquele espaço. Todo esse conjunto de dados confirma o evento. A morte de Emilie faz emergir outras mortes, que marcaram aquela famÃlia: a de Emir por suicÃdio e a de Soraya Ângela por acidente. A morte, assim, torna-se uma razão para voltar ao passado, ano de 1954, ano da morte da criança, filha de Samara Délia. O tema da morte, uma grande questão e mistério da humanidade, aparece no romance como pano de fundo e responde à questão que se pode fazer a qualquer narrativa: para quê narrar isso tudo? Por que vale à pena contar essa história? A memória não é o assunto principal do romance, mas a morte. A memória é uma das formas encontradas pela narradora para lidar com a morte. Vale lembrar que a elaboração da tese ocorreu paralelamente ao estudo e tradução do livro de Wolf Schmid, o que contribuiu muito no estudo dos fenômenos da perspectiva e da interferência textual, dois temas complexos, mas bastante interessantes porque a metodologia empregada torna a leitura produtiva. O nosso close reading do texto nos permitiu confirmar a existência de uma única narradora que, com a perspectiva figural, apresenta as personagens por meio de suas falas e experiências particulares. Ao mesmo tempo em que as personagens falam, a narração não fica parada, porque as falas têm uma “super-determinação funcionalâ€, isto é, servem à caracterização das personagens, mas sustentam a narração do mesmo jeito. Sobre a notória semelhança entre o discurso da narradora e as falas das personagens, esclarecemos a noção de texto da narradora e texto da personagem, os quais tratam de um conteúdo puro e especÃfico de cada uma dessas instâncias. A interferência de um texto no outro, a interferência textual, pode ser melhor visualizada num dado segmento de texto narrativo, com a identificação das caracterÃsticas sugeridas por Schmid, que apontam para o texto da narradora ou para texto da personagem. Em Relato de um certo Oriente, identificamos a neutralização das oposições entre texto da narradora e texto da personagem nas caracterÃsticas pessoa, tempo, léxico e sintaxe. A neutralização dessas caracterÃsticas implica dizer que elas são idênticas tanto em um texto quanto em outro. Léxico e sintaxe são caracterÃsticas que, quando neutralizadas na interferência textual, causam maior impacto quanto a não oposição entre os dois textos. O resultado é que praticamente não se identifica diferença entre o discurso da narradora e a fala das personagens, porém ambos coexistem no mesmo segmento de texto narrativo. Esses procedimentos de análise nos ampararam diante desses hibridismos presentes no texto, uma vez que identificamos a permanência do componente narratorial mesmo na fala das personagens. As falas das personagens não são apenas representação do discurso direto já que é possÃvel identificar traços do discurso da narradora nessas falas, isto é, as interferências textuais são um fenômeno muito presente no texto de Milton Hatoum, mas isso não impede que as duas instâncias narradora e personagens sejam também percebidas em suas relativas individualidades. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÃFICAS ARISTÓTELES. A Poética. Tradução: Paulo Pinheiro. 2ª ed. Editora 34: São Paulo, 2017. 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